Na raiz de toda forma de vida religiosa ou consagrada, há uma busca “monástica”, no sentido de um desejo de moldar e desenvolver a própria vida disciplinando-a a partir de valores inspiradores. Em outras palavras, o monaquismo na raiz da busca da vida religiosa é uma “disciplina da espiritualidade”.
A reflexão é de Riccardo Larini, teólogo e ex-monge da Comunidade de Bose, da qual fez parte durante 11 anos. O artigo foi publicado em Riprendere Altrimenti, 14-11-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nem sempre nos é dado compreender as razões daquilo que acontece e que nos toca profundamente. Quer se trate de eventos repentinos ou de situações anunciadas de longe, quando a nossa percepção das coisas é abalada, além das reações mais imediatas (todas, no fim das contas, legítimas), pouco a pouco podem se iniciar processos de aprofundamento, de reavaliação, de assunção das crises.
O grande pedagogo Jean Piaget defendia que a inteligência e a aprendizagem funcionam por meio de contínuos processos de assimilação e de acomodação, em que o encontro com aquilo que é novo, inusitado ou até em contradição com a construção global da nossa compreensão atual do mundo faz com que, pouco a pouco, possa haver uma assunção das novas “informações recebidas”, até compor um quadro novo e modificado das coisas.
Ainda mais profundamente, gosto de recorrer a outro grande filósofo, cujo pensamento merece ser constantemente explorado e retomado, para descrever o que ocorre quando a cristalização das formas de vida e de pensamento colide com a força que move a vida, com a própria vida que, por definição, é contínuo movimento e mudança.
Estou falando de Henri Bergson, segundo o qual o “impulso vital”, isto é, aquela espécie de motor ou alma secreta da vida natural e espiritual, leva constantemente a romper as estreitas fronteiras de todas as coisas definidas e a dar vida a um além, a novas formas, por meio de um contínuo processo de “evolução criativa”.
Quando Bergson fala sobre essas coisas, ele certamente está ciente do fato de que as formas em que a vida se cristaliza e que, antes ou depois, serão superadas podem ser, mesmo assim, muito significativas e duradouras: espécies de sínteses necessárias e sólidas, mas não menos transitórias, por um período de tempo que será a própria vida quem determinará.
Se vocês sobreviveram até aqui a essas considerações aparentemente muito abstratas (e talvez abstrusas!), vocês merecem que eu revele o tema que está no meu coração e que me levou gradualmente não só a refletir sobre situações contingentes e que também me diziam respeito muito de perto, mas também a ampliar o horizonte, a ponto de projetar novos caminhos de pesquisa (e um livro para sintetizar pelo menos uma parte deles).
A forma de vida que normalmente definimos de vários modos como monaquismo, vida religiosa, vida consagrada, indubitavelmente e em muitos aspectos está em crise. Mas está igualmente em vias de desaparecimento e será superada, como tantas outras cristalizações, todas transitórias, da evolução humana e social que ocorreu ao longo da história da humanidade?
Certamente, muitos de vocês começaram a se interrogar em anos muito recentes sobre esses temas, que antes eram levantados apenas por um pequeno punhado de comentaristas clarividentes, sistematicamente não ouvidos dentro de muitas Igrejas. Um estímulo nesse sentido veio, por exemplo, estou certo disto, do contínuo declínio, há pelo menos sete anos, dos religiosos e das religiosas católicos em todo o mundo (e não mais apenas na Europa ou na Itália, onde essa queda está em curso há muito tempo e com dimensões decididamente impressionantes).
No entanto, um fato que suscitou mais reflexões e, de certa forma, abalou um número cada vez maior de pessoas foi o surgimento de uma série notável de crises e de episódios e comportamentos pouco claros ou até mesmo impróprios dentro de muitas comunidades e movimentos religiosos, também de natureza e matriz ideológica muito diferentes.
Algumas dessas comunidades, como L’Arche ou Bose, certamente eram consideradas por muitíssimas pessoas como verdadeiros baluartes de uma vida religiosa e comunitária saudável e evangélica.
As respostas dadas até agora ao aparecimento desses fenômenos têm sido, na minha modesta opinião, largamente insuficientes, por vários motivos.
No pano de fundo e a longo prazo, como eu sublinhei nas análises do meu livro sobre a Comunidade de Bose, não serviu de ajuda a relativa fragilidade da teologia contemporânea da vida religiosa, que já emergiu na estrutura insuficiente, seja em relação à análise, seja em relação ao pensamento, do decreto sobre a renovação da vida religiosa promulgado pelo Vaticano II, Perfectae caritatis.
O surgimento de muitos problemas nas comunidades de “consagrados” também teve que enfrentar a confusão entre comunidades e movimentos de natureza variada, especialmente à luz do notabilíssimo apoio dado a estes últimos durante o longo pontificado de João Paulo II, mesmo quando – como muitos sabiam – a gestão das relações internas era, para usar um eufemismo, “pouco transparente”.
Isso levou, por um lado, a um desejo de revanche em relação a tais movimentos e, por outro, a uma identificação extremamente simplista dos problemas das formas de vida religiosas comunitárias sob a única categoria, ainda a ser totalmente esclarecida, dos “abusos” (além disso, certamente presentes amplamente).
Além disso, não serviu de ajuda ao aprofundamento a tendência da rede de polarizar e achatar as posições, ainda mais em âmbito religioso, no qual a radicalização já está, em si mesma, em pauta.
No nível das Igrejas “institucionais” (e de grande parte da intelligentsia católica, especialmente na Itália, que nas últimas décadas certamente não se destacou pela coragem e pela capacidade de ir além dos clichês consolidados ou de dissentir das hierarquias eclesiásticas), o debate foi reduzido durante muito tempo a um problema de pastoral vocacional e de tentativas mais ou menos abstratas de “entender os jovens de hoje”, sem pôr em discussão, de modo algum, os pressupostos das formas de vida religiosa atualmente vigentes.
Quando o tema dos problemas dentro das comunidades religiosas foi abordado, isso ocorreu muitas vezes mediante a distinção entre “comunidades tradicionais” – nas quais certos problemas não existiriam ou as quais pelo menos estariam dotadas dos instrumentos necessários para enfrentá-los e resolvê-los – e “novas comunidades” – principalmente de natureza “carismática” e sob a insígnia da improvisação e do “liderismo”.
Ao fazer isso, além de generalizações muito questionáveis e de desejos quase pueris (ou de conveniência) de defender a instituição a todo o custo, acabou-se perdendo de vista problemas profundos e reais que, em vez disso, quem viveu na vida religiosa de todos os tipos, tanto de tradição antiga quanto mais recente, sabe que estão amplamente presentes e enraizados provavelmente em dimensões estruturais e filosófico-religiosas que devem ser trazidas à tona e analisadas com honestidade.
De fato, está em jogo não apenas e não tanto o futuro do testemunho cristão ou religioso de determinadas formas de vida, mas também e principalmente a capacidade que elas têm de permitir o desenvolvimento em seu interior de personalidades maduras, adultas, realizadas, sem cerceamentos de qualquer tipo da sua humanidade. E é um fato de enorme importância, também “religiosa”.
Eis-me, então, sem modéstia, mas de modo convicto, propondo que se “retome de outra forma” a vida religiosa, que ela seja repensada com honestidade e profundidade, para entender se o impulso vital que é o único capaz, em última instância, de produzir sentido e dar origem a modalidades de vida não sufocantes e abertas nos levará simplesmente a rever as formas de vida religiosa que conhecemos há séculos (ou, em alguns casos, há mais de um milênio) ou se, ao contrário, nos indicará algo novo, em conformidade com o trajetória de sentido cristão que começou há 2.000 anos e que chamamos de evangelho, mas que requer manifestações diferentes, uma evolução criativa.
Para fazer isso, acho importante que nos interroguemos qual é o núcleo a ser salvaguardado e retomado de outra forma de toda forma de vida religiosa, para depois abordar criticamente cada um dos elementos acessórios que também a tornaram reconhecível ao longo dos séculos, até aos nossos dias.
Do ponto de vista metodológico, portanto, acho que devem ser formuladas duas hipóteses fundamentais.
A primeira é que, na raiz de toda forma de vida religiosa ou consagrada, há uma busca “monástica”, no sentido de um desejo de moldar e desenvolver a própria vida disciplinando-a a partir de valores inspiradores. Como Selene Zorzi sugeriu em uma definição lapidar por ocasião de uma pesquisa preliminar que eu lancei na minha página pública no Facebook, o monaquismo é, na raiz, um desejo de “dar forma à vida”, mais do que uma “forma de vida” específica.
Em outras palavras, o monaquismo na raiz da busca da vida religiosa é uma “disciplina da espiritualidade”, que como tal se baseia sobretudo em princípios (que não são necessariamente “universais”, mas podem ser específicos de determinadas culturas ou religiões) e em métodos e técnicas (que, por sua vez, às vezes podem transcender as fronteiras das ideologias e das culturas), muitas vezes remontando a períodos muito antigos da sabedoria humana.
A segunda hipótese, corroborada também pela história da evolução do monaquismo, assim como pela sua análise também sincrônica, é que a vida em comunidade não é um elemento estritamente necessário para a busca monástica. Com isso, não quero dizer que não se deva analisar o tema da vida comum e das formas de comunidade (muito pelo contrário!), mas que isso deve ser feito separando até certo ponto essa questão da questão da busca monástica em sentido estrito.
Sobre o segundo tema, o da comunidade, já formulei várias hipóteses na série de artigos que publiquei no meu blog e em parte na revista Rocca em 2021, que reuni em um e-book gratuito intitulado “Insieme altrimenti” [disponível em italiano aqui].
Na obra em que estou trabalhando, porém, irei mais longe, tentando desentranhar todos os temas problemáticos ligados às comunidades religiosas, da sacralização da autoridade (raiz da maioria das distorções e das desumanidades vividas no seio da vida religiosa e nas Igrejas em geral) à gestão das relações humanas e do poder, até à relação entre poder e disciplina da sexualidade.
Sobre o primeiro, pretendo dar origem a uma nova série de artigos, que serão publicados também na revista Rocca a partir de janeiro de 2022 e que tentarão explicar por quais razões a fundamental busca monástica deve ser salvaguardada e tornada acessível a todos, sem confiná-la a nenhuma “forma de vida” religiosa específica.
Ao longo de todo o itinerário, promoverei seminários diretamente por meio do meu blog e das minhas páginas, e participarei de seminários que não deixarei de assinalar [...].
Comecemos a viagem, portanto, e como diz um dos protagonistas de Nomadland, “I’ll see you down the road” (vejo você na estrada)!