Como Merton, buscar, encontrar, reencontrar a paz. Artigo de Riccardo Larini

Foto: Pexels

18 Dezembro 2021

 

O desejo de exploração do mistério de Deus e do ser humano que nunca deixou de arder em Merton o havia levado constantemente a desejar sair, mover-se, ir além, ser mais livre. Isso o havia deixado constantemente irrequieto, isto é, sem paz ou em busca de uma paz mais profunda.

 

O comentário é de Riccardo Larini, teólogo e ex-monge da Comunidade de Bose, da qual fez parte durante 11 anos. O artigo foi publicado em Riprendere Altrimenti, 16-12-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Em abril de 2001, os monges beneditinos de Christ in the Desert (Novo México, EUA) me presentearam com uma passagem aérea para ir visitá-los, a qual, além disso, me dava o direito de escolher outra parada em solo estadunidense (sobre o qual voltarei mais adiante).

 

Depois de uma longa viagem de quase 24 horas de Bose a Abiquiu – fazendo escala em Chicago e em Albuquerque – finalmente cheguei, exausto, à noite, às margens do rio Chama, aos pés das montanhas do Colorado, onde se encontrava o mosteiro deles.

 

Na manhã seguinte, sacudindo o cansaço da viagem e a considerável diferença de fuso horário (oito horas em relação à Itália), saindo da minha cela sob o sol feroz do deserto, intuí imediatamente por que, exatamente 33 anos antes, em abril de 1968, Thomas Merton escreveu no seu diário: “É o melhor edifício monástico de todo o país!”.

 

De fato, eu me deparei com a visão tornada realidade pelo arquiteto e carpinteiro estadunidense George Nakashima no fim dos anos 1960 de uma perfeita integração entre cores e formas do deserto, de um lado, e igreja e celas dos monges, de outro, construídas em adobe (mistura de argila, areia e palha seca ao sol, utilizado em muitos lugares do mundo para fabricar tijolos).

 

Mosteiro de Christ in the Desert, Abiquiu, Novo México, EUA (Foto: Riccardo Larini)

 

Merton era um homem em busca. De muitas coisas, é claro, mas acima de tudo de uma paz interior que ele havia cantado desde o seu célebre ingresso, 27 anos antes, na abadia trapista de Nossa Senhora do Getsêmani, perto de Bardstown, no Kentucky.

 

A paz, porém, depois das ilusões iniciais, havia lhe escapado de algum modo, e ele havia se dirigido para Christ in the Desert não só para buscar um lugar idôneo para a construção de um eremitério para viver, mas também para retomar as sendas de um caminho de esclarecimento interior ao qual ele ansiava há muito tempo.

 

De fato, apesar de ter escrito em “A montanha dos sete patamares” – sua autobiografia espiritual arquiconhecida e brilhante – que, tendo uma vez cruzado o limiar do mosteiro, “o Ir. Matthew fechou o portão atrás de mim e eu me vi trancado entre os quatro muros da minha nova liberdade”, o desejo de exploração do mistério de Deus e do ser humano que nunca deixou de arder nele o havia levado constantemente a desejar sair, mover-se, ir além, ser mais livre. Isso o havia deixado constantemente irrequieto, isto é, sem paz ou em busca de uma paz mais profunda.

 

Nas suas explorações incessantes, ele se defrontou, por um lado, com a espiritualidade das religiões orientais e, em particular (mas não só) do zen budismo, mas também compreendeu que não podia, de forma alguma, aceitar separar o seu próprio destino e a sua própria viagem interior daqueles do mundo “lá fora”, de cada uma de suas companheiras e companheiros de viagem.

 

No léxico mertoniano, ao vocabulário da paz, portanto, somaram-se cada vez mais, a partir do início dos anos 1960, palavras de conflito, de revolta, em certo sentido de plena inquietude. Uma rápida olhada nos títulos de algumas de suas publicações daqueles anos logo ajuda a entender aquilo a que me refiro: “Emblems of a Season of Fury” (1963, traduzido um tanto desajeitadamente em italiano como “Emblemas de uma era de violência”), “Seeds of Destruction” [Sementes de destruição] (1964, quase como um contrapeso a “Seeds of contemplation” [Sementes de contemplação], de 1949), “Raids on the Unspeakable” (1966, “Incursões do indizível”, em que Merton analisa a condição dos seus contemporâneos de forma sofrida e crítica), até “Faith and violence” [Fé e violência], de 1968.

 

No mesmo período – para ser mais preciso, a partir de 1961 e, depois, de forma estável a partir de 1965 – o célebre trapista começou a viver em um simples eremitério nos arredores da abadia do Getsêmani, continuando por mais alguns anos (até 1965) desempenhando o papel de mestre dos noviços, que assumira em 1955. E começou, graças também ao afrouxamento das rígidas regras monásticas iniciado pelo Concílio Vaticano II, a somar à exploração interior que sempre o caracterizara uma série cada vez maior de contatos e de viagens para fora do mosteiro.

 

A minha segunda etapa estadunidense, por isso, não poderia ter sido outra, senão uma visita à abadia do Getsêmani. Tendo que viajar forçosamente com uma companhia aérea que não atendia aos aeroportos do Kentucky, deixei Abiquiu e Christ in the Desert e voei para Nashville, no Tennessee, fazendo escala em Dallas. E me aventurei pelo Kentucky alugando um velho Pontiac de memória gucciniana, com câmbio automático e um rádio que oferecia como única alternativa música country ou discursos evangélicos em forma melódica.

 

Na abadia do Getsêmani, o então mestre dos noviços e responsável pelos retiros, Matthew Kelty, além de me dedicar muito tempo, em certo momento me disse: “O eremitério de Merton está disponível neste período: você quer morar lá por alguns dias?”. Nem preciso dizer que eu não poderia desejar mais nada dessa minha viagem ao exterior...

No eremitério do Pe. Louis (era assim que Merton era conhecido no mosteiro), eu pude ler, pensar e meditar muito sobre a sua vida, sobre a minha e sobre a de cada um de nós, seres humanos, projetados pelo destino a viver uma vida que é um entrelaçamento de luzes e sombras, de grandezas e misérias, de alegrias e sofrimentos. E fiquei muito impressionado, em particular, por dois escritos mertonianos: “Conjectures of a Guilty Bystander” (1966, “Conjecturas de uma testemunha culpada”) e “Asian Journal” (“Diário asiático”, publicado postumamente em 1973, mas escrito em 1968).

 

Mesa de Thomas Merton no seu eremitério no Kentucky, EUA (Foto: Riccardo Larini)

 

O primeiro desses dois textos conta aquela que poderíamos descrever como uma espécie de “redescoberta do mundo” por Merton, quando ele começou a meter o nariz frequentemente para fora do mosteiro. Foi então que ele teve a célebre “iluminação” pelas ruas de Louisville, assim descrita nas suas anotações inseridas posteriormente naquele livro e às quais eu já dediquei indiretamente outra contribuição do meu blog [disponível em italiano aqui]:

 

“Em Louisville, na esquina da Fourth com a Walnut, no centro do distrito comercial, fiquei subitamente maravilhado ao me dar conta de que eu amava todas aquelas pessoas, de que elas eram minhas e eu delas, de que não podíamos ser estranhos uns aos outros, embora fôssemos totalmente desconhecidos. Era como acordar de um sonho de separação, de autoisolamento espúrio em um mundo especial, o mundo da renúncia e da suposta santidade.”

 

Já o segundo livro conta a viagem à Ásia, longamente preparada por Merton e que não teria volta. Uma viagem importante, “decisiva” em muitos sentidos, para tentar religar os fios de muitos discursos, viagens interiores e exteriores, buscas espirituais e existenciais que o haviam levado a se enriquecer enormemente, mas também a esperar encontrar a paz tão ansiada e muitas vezes perdida.

 

Entre encontros com figuras espirituais proeminentes e peregrinações a lugares sagrados, pouco a pouco o trapista do Kentucky parecia encontrar vislumbres de luz dignos desse nome. O que mais me impressionou e que também me levaria, muitos anos depois, a fazer uma longa viagem-peregrinação nas pegadas desse homem único e não convencional, iluminado e irrequieto foi o que ele escreve ao chegar ao Gal Vihāra, um templo budista rupestre, situado na antiga cidade de Polonnaruwa, no Sri Lanka:

 

Polonnaruwa com suas vastas áreas arborizadas. Cercas. Poucas pessoas. Nada de mendigos. Uma estrada de terra. Perdido. Então, encontramos Gal Vihāra e os outros stūpas do complexo monástico. Celas. Montanhas distantes, como o Yucatan.

“A trilha desce até Gil Vihāra: uma depressão ampla e silenciosa, cercada por árvores. Um afloramento rochoso baixo, com uma caverna dentro dele e, ao lado da caverna, um grande Buda sentado à esquerda, um Buda reclinado à direita e Ananda, acho eu, de pé ao lado da cabeça do Buda reclinado. Na caverna, outro Buda sentado. Consigo me aproximar dos Budas descalço e sem ser perturbado, meus pés sobre a grama molhada, sobre a areia molhada. O silêncio dos rostos extraordinários. Os grandes sorrisos. Enormes, mas sutis. Repletos de todas as possibilidades, não questionando nada, não sabendo nada, não rejeitando nada, a paz não da resignação emocional, mas do Mādhyamika, da śūnyatā, que viu através de todas as questões sem tentar desacreditar ninguém ou nada – sem refutação –, sem estabelecer algum outro argumento. Para o doutrinário, a mente que precisa de posições bem estabelecidas, essa paz, esse silêncio pode ser assustador. Fui derrubado por uma onda de alívio e de gratidão diante da clareza óbvia das figuras, a clareza e a fluidez de formas e linhas, o desenho dos corpos monumentais compostos sob o molde da rocha e da paisagem, figura, rocha e árvore. E a extensão de rocha nua inclinada do outro lado da cavidade, onde você pode voltar e ver diferentes aspectos das figuras.

“Olhando para essas figuras, fui repentinamente, quase forçosamente, arrancado da visão habitual e meio cansada das coisas, e uma claridade interior, uma clareza, como que explodindo das próprias rochas, tornou-se evidente e óbvia. A evidência absoluta da figura reclinada, o sorriso, o triste sorriso de Ananda em pé com os braços cruzados (muito mais ‘imperativo’ do que a Mona Lisa de Da Vinci por ser completamente simples e direto). E a questão em tudo isso é que não há nenhum enigma, não há nenhum problema, não há nenhum ‘mistério’.

“Todos os problemas estão resolvidos, e tudo está claro, simplesmente porque o que importa está claro. A rocha, toda a matéria, toda a vida está carregada de dharmakaya [...] tudo é vazio, e tudo é compaixão. Eu não sei quando na minha vida eu tive essa sensação de beleza e de vitalidade espiritual correndo juntas em uma iluminação estética. Certamente, com Mahabalipuram e Polonnaruwa, a minha peregrinação asiática se tornou clara e purificada em si mesma. Quer dizer, eu sei e vi o que estava procurando obscuramente. Eu não sei o que mais resta, mas agora vi e perfurei a superfície, e fui além da sombra e do disfarce. Esta é a Ásia em sua pureza, não coberta de lixo asiático, europeu ou americano. É clara, pura, completa. Diz tudo. Não precisa de nada. Por não precisar de nada, ela pode se dar ao luxo de ficar em silêncio, despercebida, não descoberta. Não precisa ser descoberta. Somos nós, incluindo os asiáticos, que precisamos descobri-la.”

 

O Buda reclinado de Gal Vihāra em Polonnaruwa, no Sri Lanka (Foto: Riccardo Larini)

 

Uma semana depois, Thomas Merton morreria em Bangkok, encerrando a sua fala sobre “Marxismo e perspectivas monásticas” com as célebres palavras: “So, I will disappear” [Então, eu vou desaparecer], as últimas palavras ditas em vida. Provavelmente ele “desapareceu” com muita daquela paz que havia procurado explorando todos os caminhos humanos e espirituais possíveis, na companhia dos seus contemporâneos, atravessando dificuldades e desertos de várias naturezas.

 

Pensando no que escrever para este Natal que já está às portas, resolvi então compartilhar a sua busca, que também é a minha e a de muitos, talvez a de todos. Na raiz, há um ser tocado pela paz. Portanto, uma vontade de desfrutar dela quase sozinho, no íntimo.

 

Depois, porém, se se abre espaço para o outro, para todos os outros, perde-se a paz no ruído e na dor do mundo, que devem ser assumidos em profundidade e na raiz se quisermos continuar sendo realmente humanos.

 

Muitas vezes, tal desorientação dura muito tempo, e somos chamados a novos caminhos, a fazer novas “incursões no indizível” e no ainda não dito. Mas a luz, de alguma forma, permanece e pode retornar à superfície das nossas consciências. Deve ser (re)descoberta, deve-se permitir que ela aflore.

 

O meu desejo para todas vocês e para todos vocês é que a luz sempre retorne, mais cedo ou mais tarde, para abrir uma brecha nas suas vidas. A luz da vida, do nosso impulso vital, que, no seu mistério, talvez seja mais simples e mais límpida do que imaginamos.

 

Feliz Natal! Que a luz e a paz resplandeçam sobre vocês, em vocês e com vocês!

 

Leia mais