“A busca e a eventual posse de determinadas virtudes ou faculdades morais, espirituais e/ou intelectuais sempre levam os seres humanos à tentação de dividir a humanidade inteira, a sociedade e as próprias comunidades primárias em que vivem em grupos de ‘mérito’ ou de ‘nível’, e a estabelecer hierarquias.”
Publicamos aqui a segunda contribuição de Riccardo Larini dedicada ao monaquismo e à sua relevância, que apareceu no número 3/2022 da revista Rocca. Depois de explicar na primeira contribuição (reproduzida em boa parte no artigo “Um monaquismo para todos”, publicado nestas páginas) como pretende retomar de outra forma a vida religiosa e eventualmente publicar um livro sobre o assunto, o autor repassa aqui as sombras do imaginário monástico. Seguir-se-á a isso uma próxima contribuição dedicada às suas “luzes”.
Larini é teólogo e ex-monge da Comunidade de Bose, da qual fez parte durante 11 anos.
O artigo foi publicado em Riprendere Altrimenti, 27-01-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Como dito na primeira contribuição desta série dedicada ao monaquismo, para compreender as suas grandezas e as suas misérias, seus nós não resolvidos, seus curtos-circuitos e potencialidades, é preciso, acima de tudo, retomar de maneira crítica o imaginário tradicional a ele ligado.
De fato, “monaquismo” é uma palavra que evoca uma multiplicidade de imagens, emoções e sentimentos, muitas vezes de teor contrastante e às vezes extremo, dependendo da cultura, do credo e das experiências pessoais de quem as ouve.
Quer se entenda mais tecnicamente com esse termo aquelas pessoas que se dedicam à estabilidade em um determinado lugar para levar uma vida de trabalho e de oração à parte, quer se incluam nele todas as formas de consagração mediante votos específicos (a partir do século XIII representados no Ocidente cristão pela conhecida tríade pobreza – castidade – obediência), o imaginário que ele sempre suscitou é extraordinário.
Os “religiosos” são amados e odiados, exemplos como poucos de grandeza humana, mas também de miséria e fanatismo a ponto de fazer estremecer, provavelmente pelo radicalismo ligado às suas escolhas de vida, que podem se manifestar e se desenvolver em abertura ilimitada ou em obtusidade e obscurantismos inenarráveis (ou em uma mistura de tudo isso).
De fato, se indivíduos ou grupos de homens e de mulheres acreditam ter descoberto alguma “verdade” profunda sobre a vida e sobre o mundo, a linha entre o testemunho puro e as cruzadas para o exterior, entre o simples gozo ou contemplação daquilo que se acredita ter descoberto e o desejo de transmiti-lo de maneira mais ou menos respeitosa aos outros torna-se muitas vezes difícil de rastrear.
A busca e a eventual posse de determinadas virtudes ou faculdades morais, espirituais e/ou intelectuais sempre levam os seres humanos à tentação de dividir a humanidade inteira, a sociedade e as próprias comunidades primárias em que vivem em grupos de “mérito” ou de “nível”, e a estabelecer hierarquias.
Sem tirar nada da diversidade de talentos e de carismas dentro de qualquer grupo humano, tais divisões correm o risco de se fossilizar a ponto de darem origem a grupos separados, nos quais o princípio da responsabilidade e das capacidades individuais é substituído pelo princípio da pertença a uma “casta”.
Em âmbito religioso, a categoria de “santidade” confere outros elementos problemáticos à tentação recém-descrita, que René Girard sublinhou de modo magistral ao descrever o vínculo profundo e muitas vezes invisível entre violência e sagrado.
Por isso, não é de se surpreender que, muito cedo, os cristãos começaram a separar e a sacralizar algumas figuras: os anciãos e os superintendentes das suas comunidades, transformados em “sacerdotes” já no fim da época neotestamentária; os “filhos do pacto” na Igreja siríaca do século III, que se dedicavam ao celibato, à abstinência de vinho e carne e ao uso de roupas especiais; os “gnósticos” na Igreja alexandrina dos tempos de Clemente e Orígenes, considerados um grupo de cristãos mais evoluídos do que os dotados apenas da “fé”; e depois os monges e as monjas que surgiram no deserto egípcio no século IV e se espalharam por todo o mundo cristão então conhecido.
O próprio cristianismo, por isso, nascido da dessacralização substancial de qualquer autoridade e figura humana por parte de Jesus de Nazaré, logo acabou restituindo às inevitáveis manifestações humanas da autoridade uma estruturação em níveis não apenas funcionais ou transitórios, mas também em certa medida “eternos”, “sacrais”, assim como “patriarcais”. E autorizando uma divisão em “gêneros de cristãos”, totalmente incompatível com a revelação cristã e, no entanto, até mesmo sancionada no primeiro grande texto do direito canônico ocidental: o Decretum Gratiani, do século XII.
Envolvendo-se em uma aura de santidade e de sacralidade, o monaquismo cristão às vezes brilhou por obscurantismo, intolerância e violência, desde os tempos da cruzada albigense do século XIII, que viu um inegável envolvimento de muitos dominicanos nas graves violências que a caracterizaram, passando pelo tristíssimo e longuíssimo período da Inquisição, até aos casos mais recentes dos franciscanos que abençoavam os massacres perpetrados na Croácia pelos ustashas contra ortodoxos e judeus, ou ao fanatismo inveterado de alguns grupos monásticos ortodoxos, que exibem com orgulho faixas com a inscrição “Ortodoxia ou morte”, oferecem refúgio a militantes neonazistas e participam tanto na Grécia quanto na Rússia de ataques violentos contra expoentes do mundo LGBT+.
Mas mesmo as “fogueiras da vaidade” promovidas no século XV pelos seguidores de Savonarola, com as quais os religiosos usavam uma tática sinistra de vigilância sobre a população para forçá-la a se converter, não podem deixar de provocar arrepios em todos nós.
Portanto, não é de se surpreender que os Iluministas tenham gastado palavras bem pouco lisonjeiras em relação ao monaquismo. Voltaire, em “O homem dos quarenta escudos” (1768), cita a máxima bem conhecida no seu tempo segundo a qual “os monges são pessoas que se reúnem sem se conhecer, vivem sem se amar e morrem sem se lamentar”. Muito mais radical e aprofundada, no entanto, é a crítica ao monaquismo de Edward Gibbon, o maior historiador inglês do século XVIII, que em muitos aspectos permeia ainda hoje o imaginário de todos aqueles que têm uma visão negativa da vida religiosa.
De fato, o grande estudioso britânico dedica várias páginas da sua “História do declínio e queda do Império Romano” em seis volumes ao tema da “Origem, evolução e efeitos da vida monástica”, em que afirma que os ascetas “obedecem os rígidos preceitos do Evangelho, abusando deles, e são animados por um entusiasmo selvagem que vê o homem como um criminoso, e Deus, como um tirano”. Por essa razão, segundo Gibbon, além de dar origem a muitas formas de fanatismo ao longo da história, monjas e monges subtraíram energias preciosas da sociedade por meio da sua fuga mundi, minando decisivamente o próprio Império Romano.
O radicalismo e o fanatismo das religiosas e dos religiosos cristãos foram denunciados, enfim, na cinematografia contemporânea por muitíssimos filmes. Em “Simão do deserto”, Luis Buñuel narra com ironia a vacuidade do sofrimento de um eremita cristão, que decide se retirar para viver em uma coluna no deserto, como fizera Simeão, o Estilita, no alvorecer do cristianismo.
Alejandro Amenábar mostra em “Alexandria” o fanatismo dos parabolanos, um grupo apenas de homens que, nos primeiros séculos, se dedicavam em nome de Cristo ao cuidado dos doentes e ao sepultamento dos mortos, e que no filme do diretor espanhol são os principais culpados pela horrível morte sofrida, pela filósofa Hipácia em Alexandria no Egito.
Stephen Frears e Peter Mullan relatam os horrores a que eram submetidas as jovens mães ou as simples meninas consideradas “pecadoras públicas” nos conventos irlandeses, respectivamente em “Philomena” e “Em nome de Deus”. E muitos outros exemplos literários e cinematográficos de teor análogo poderiam ser citados.
Certamente, os desvios e os excessos de natureza violenta não são, como se sabe, um traço exclusivo do monaquismo cristão: por exemplo, também foram protagonistas de notável fanatismo e violência, recentemente, em âmbito budista, alguns grupos de monges no Sri Lanka e o “Movimento 969” em Mianmar. O binômio aparentemente absurdo budismo – violência física afunda as suas raízes em tempos antigos e, no Japão medieval, foi até cunhado um termo, sōhei, que significa “monge guerreiro”, para falar de organizações análogas à Ordem Teutônica Cristã.
Gostaria de tranquilizar quem ficou alarmado ao ler estas coisas: da próxima vez, falarei do imaginário positivo da vida religiosa. Tentarei evidenciar ainda o que se pode aprender com as luzes e as sombras que o monaquismo disseminou na sua longa história. Só então será possível atualizar e retomar as suas maiores intuições para as mulheres e os homens de hoje.