08 Março 2022
“A missão crucial de Kirill a serviço da restauração imperial também se desenrolou no exterior. O Patriarcado de Moscou é a única entidade que ainda cobre todo o território da ex-URSS. Kirill endossou a agressividade diplomática de Putin. Ele pôs em prática a ideologia do “mundo pan-russo”, garantiu hierarquias dóceis na Bielorrússia e na Ucrânia, manteve dioceses étnicas da Estônia ao Cazaquistão e uniu os ramos refratários à emigração para o Ocidente, por meio de subornos, se necessário. Mas para afirmar seu desejo de poder, Kirill vai romper com a unidade ortodoxa”, escreve Jean-François Colosimo, teólogo ortodoxo e historiador das religiões, em artigo publicado por La Croix International, 07-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Se acuado na escalada militar, irá Vladimir Putin recorrer aos ataques nucleares?
Se ele ceder a esta vertigem final, ele não deixará de invocar Serafim de Sarov, o Francisco de Assis eslavo, a quem Kirill, patriarca de Moscou, consagrou como santo padroeiro do arsenal nuclear russo.
Uma característica pessoal? Os dois poderosos não precisam de nenhuma ajuda a fim de ser autocongratulatórios. O pacto que foi firmado por eles há 20 anos tem sua parcela de kitsch diabólico que é não intencionalmente cômico. A guerra na Ucrânia revela suas dimensões lucíferas.
Em 23 de fevereiro, um dia antes da invasão, Kirill emitiu uma declaração de sua residência no Mosteiro Danilov, parabenizando Putin pela celebração do feriado do “Dia do Defensor da Pátria”.
Em sua homilia na Catedral de Cristo Salvador em 27-02, no meio da ofensiva, Kirill castigou as “forças do mal” que queriam evitar Putin de alcançar “a unidade de todos os russos”.
O domingo antes da Quaresma é conhecido na Igreja Ortodoxa como Domingo do Juízo Final. Os calendários civil e litúrgico colidem no balé mortífero dos últimos chefes da Igreja e do Estado que emergiram do homo sovieticus.
Esta aliança sacrílega é um legado da era totalitária. Depois de 1989, apenas o Patriarcado e a KGB permaneceram como instituições na Rússia. Mas estes são laços antigos.
Sob Brejnev, o metropolita Nikodim de Leningrado (que morreu em 1978), filho da perseguição, trocou a colaboração internacional pela moderação interna.
Seus seguidores ocuparam os principais assentos da União Soviética, o vicariato de Moscou, os bispados de Minsk e Kiev.
Entre eles estava Kirill de Smolensk, que assumiu o Departamento de Relações Externas da Igreja Russa antes de ser eleito patriarca em 2009.
As ascensões de Kirill e Vladimir Putin foram paralelas. O pontificado de um e o reinado do outro acabaram se fundindo.
Para crescer com o novo czar, o patriarca não apenas abençoou o mecanismo político-religioso do Kremlin, mas também o maximizou.
Ele se tornou um administrador de religiões minoritárias, um codificador do sagrado e da moralidade, um capelão de instituições e oligarcas, absolvendo a corrupção generalizada enquanto conquistava uma fortuna pessoal.
Mas a missão crucial de Kirill a serviço da restauração imperial também se desenrolou no exterior. O Patriarcado de Moscou é a única entidade que ainda cobre todo o território da ex-URSS.
Kirill endossou a agressividade diplomática de Putin. Ele pôs em prática a ideologia do “mundo pan-russo”, garantiu hierarquias dóceis na Bielorrússia e na Ucrânia, manteve dioceses étnicas da Estônia ao Cazaquistão e uniu os ramos refratários à emigração para o Ocidente, por meio de subornos, se necessário.
Mas para afirmar seu desejo de poder, Kirill vai romper com a unidade ortodoxa.
Ele confunde a capacidade de dominação e seus danos resultantes desde 2016, quando se recusou a participar do grande concílio pan-ortodoxo convocado pelo Patriarcado de Constantinopla.
Ele então voltou seu rumo para a Terra Santa, onde procurou instrumentalizar o Patriarcado de Jerusalém. Embarcando na guerra na Síria, ele tentou subjugar o Patriarcado de Antioquia.
Aproveitando as incursões feitas pelo Grupo Wagner da Rússia, um grupo sombrio de empreiteiros militares privados que ajudam o Kremlin a exercer sua influência na África, ele tentou torpedear o Patriarcado de Alexandria.
E quando o Patriarca Ecumênico Bartolomeu I, primaz da Igreja Ortodoxa mundial, concedeu profeticamente à Ucrânia o status de Igreja independente em 2019, Kirill a declarou “apóstata” e entrou em cisma.
Mas desta vez é demais.
Até mesmo o metropolita Onofre, seu legado que lidera a parte da Igreja ucraniana que permanece fiel ao Grande Irmão, acaba de pedir uma resistência patriótica. Ficou claro que, privado de sua significativa base ucraniana, o Patriarcado de Moscou se tornaria apenas mais uma Igreja Ortodoxa.
Está feito.
Cabe agora ao Patriarca Bartolomeu e ao Papa Francisco agirem juntos para que o terrível conflito na Ucrânia não desperte as divisões assassinas do passado entre ortodoxos, católicos latinos e católicos gregos.
O futuro da Europa está em jogo – o futuro do Evangelho vivido.
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Kirill vai romper com a unidade ortodoxa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU