O órgão das Nações Unidas que estuda as mudanças climáticas alerta sobre como o nosso mundo está mudando de modo rápido e irreversível. E avalia o impacto econômico e as consequências para a saúde nos próximos anos.
A reportagem é de Mariella Bussolati, publicada em La Repubblica, 28-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O IPCC, o órgão das Nações Unidas que lida com as mudanças climáticas, nos acostumou com dados evidentes que nos permitiram entender como o nosso mundo está mudando irreversivelmente. No segundo volume do sexto relatório de avaliação do IPCC intitulado “Climate Change 2022: Impacts, Adaptation and Vulnerability” [Mudanças climáticas 2022: impactos, adaptação e vulnerabilidade], recém-publicado, porém, a perspectiva muda.
O estudo se concentra em como o aquecimento global afetará a vida das pessoas. O texto põe em segundo plano os dados relativos à elevação dos mares e ao aumento da temperatura para entrar no detalhe de como a sociedade vai mudar nos próximos anos, levando em atenta consideração o que está ocorrendo nas cidades, onde já vive mais da metade da população humana.
O relatório lança um alerta: “As mudanças climáticas estão modificando a natureza, a vida das pessoas e as infraestruturas por toda a parte. Seus impactos perigosos e invasivos são cada vez mais evidentes em todas as regiões do mundo. Elas estão impedindo os esforços para atender às necessidades básicas da humanidade e ameaçando o desenvolvimento sustentável em todo o mundo”.
E chega à conclusão de que a magnitude dos efeitos em curso é muito mais grave do que o estimado anteriormente, apesar dos esforços feitos até agora.
“Este – enfatizou com palavras duras o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres – é o relatório mais importante da história do IPCC, aquele que nos coloca diante das nossas responsabilidades. A população do planeta está duramente afetada, e os ecossistemas já estão em um ponto sem retorno. Portanto, é fundamental respeitar o corte de 45% das emissões até 2030 e chegar ao net zero até 2050. Por isso, não faz mais sentido financiar os combustíveis fósseis. Qualquer outra atitude é criminosa. Mas, mais do que retardar os combustíveis fósseis, agora é importante aumentar a produção de energia verde, a única que assegura segurança energética, acesso universal, postos de trabalho”.
O relatório evidencia como a nossa capacidade de produzir alimentos e de fornecer água potável está diminuindo. Mesmo em um mundo com baixas emissões de dióxido de carbono, 8% da terra cultivável hoje se tornará inutilizável até 2100. E atingir um aumento de 1,5°C na temperatura inevitavelmente aumentará os desastres ambientais.
Risco global e regional para níveis crescentes de aquecimento global (Foto: IPCC/La Repubblica)
“O relatório é publicado em um momento muito crítico. Uma guerra está em curso, e, no período anterior, prevaleceram lógicas de defesa das fronteiras nacionais, geoestratégias nacionalistas. Aqui, em vez disso, os cientistas olham para a Terra como uma entidade única e lançam a mensagem de que somente a cooperação poderá resolver os problemas globais. A visão é a de uma humanidade fraterna que não atua às custas dos outros, mas de forma interconectada. Pela primeira vez, relaciona-se o sistema geofísico e o ser humano, mostrando uma estreita dinâmica de interação. O âmbito inanimado (os oceanos, as terras, a atmosfera), o animado (os ecossistemas e os organismos), nós: são anéis da mesma rede. Nenhuma solução é possível se esses três componentes não forem levados em consideração. E devemos nos apressar: se ultrapassarmos os limites, não haverá mais nada a ser feito, pontos sem retorno se desencadearão. Até agora, tivemos que fazer as contas com as potenciais situações piores, especialmente aquelas que podem se manifestar em longo prazo. Olhar apenas para a emergência imediata é miopia. Precisamos ir além e pensar em ações de mitigação e de adaptação estrutural”, afirma Antonello Pasini, físico, climatologista do CNR e professor de Física do Clima na Universidade Roma Tre.
Do risco climático ao desenvolvimento resiliente ao clima: clima, ecossistemas (incluindo biodiversidade) e sociedade humana como sistemas acoplados (Foto: IPCC/La Repubblica)
De acordo com o relatório, são esperadas grandes perdas nas produções agrícolas na Europa, que não serão repostas pelas regiões mais ao norte. A irrigação se tornará indispensável, mas, na realidade, será limitada pela disponibilidade de água.
“Este relatório contém capítulos dedicados a áreas geográficas específicas e abrange todo o globo, identificando pontos críticos em escala local. Os mecanismos de adaptação de cada região são diferentes. Derivam disso avaliações econômicas, estimativas da redução do PIB, custos e indicações sobre os danos. Há aspectos sobre a produção de alimentos e as doenças. Depois, são identificadas as possibilidades de adaptação, de acordo com o grau de aquecimento e os riscos que não podem ser evitados”, explica Piero Lionello, professor de Oceanografia e Física da Atmosfera na Universidade de Salento, diretor do Med-Clivar Project e membro do CMCC (Centro Euro-Mediterrâneo sobre Mudanças Climáticas), o ponto focal italiano do IPCC.
“As informações sobre os efeitos do aumento da temperatura por zona já tinham sido divulgadas no primeiro volume do relatório, no qual, por exemplo, se verificou que a zona mediterrânica tende a aquecer mais do que a média, com uma clara redução das precipitações e um aumento da aridez. Agora, constatada essa realidade, procura-se entender quais são as consequências reais e quais são as possibilidades de adaptação, conservando o estado dos ecossistemas e preservando faixas de vida e bem-estar. Portanto, há uma maior atenção a essas questões do que em trabalhos anteriores”, explica Lionello.
O documento é o segundo dos três volumes preparados por cada grupo de trabalho do IPCC (o Grupo de Trabalho I se ocupa das bases científicas das mudanças climáticas; o II, dos impactos, da adaptação e da vulnerabilidade; e o III, da mitigação) e que formam o Sexto Relatório de Avaliação.
Desde 1988, o IPCC preparou outros cinco relatórios que incluem os três volumes dos grupos de trabalho, uma síntese e três relatórios especiais. É um trabalho conspícuo, que conta com a participação de centenas de cientistas que redigem rascunhos, recebem milhares de comentários de outros especialistas, discutem-nos, recebem outros comentários, até chegarem a uma conclusão comum. Todas as vezes, é feito um quadro preciso que evidencia o colapso que estamos indo ao encontro.
No primeiro volume do sexto relatório, divulgado em 9 de agosto de 2021, foram avaliadas as bases físicas do fenômeno, atualizando os dados anteriormente elaborados. Foi ele quem avisou que aquilo que fizemos é grave e irreversível: as mudanças são visíveis em todas as regiões do mundo, sem excluir nenhuma, nunca se verificou nada comparável nas centenas de milhares de anos anteriores, e o efeito que provocamos durará outras centenas de anos, senão milhares.
No entanto, ele terminava com uma nota positiva. Estamos chegando perto de superar os limites de 1,5-2°C de temperatura e já chegamos a 1,09°C, mas ainda é possível parar tudo isso reduzindo drasticamente as emissões de dióxido de carbono.
O terceiro volume, que será lançado em abril, diz respeito à mitigação e em particular à sua aplicação nos setores da energia, dos transportes, da construção, da indústria, da agricultura.
O relatório do Grupo de Trabalho II enfatiza o papel da justiça social e do respeito aos conhecimentos indígenas e locais. São examinados os aspectos relativos à segurança alimentar, ao porte das infraestruturas e à saúde, incluindo a mental.
Os cientistas italianos que contribuíram com o relatório identificam quatro categorias de risco para a Europa: as ondas de calor com um número dobrado ou triplicado de mortes e pessoas em risco devido a um aumento de 3°C na temperatura, contra 1,5°C; a produção agrícola será afetada pelo calor e pela seca; os recursos hídricos serão cada vez mais escassos; a probabilidade de as inundações aumentarem.
O Mediterrâneo é muito frágil devido a uma alta concentração da população urbana, um número elevado de pessoas que vivem ao longo das costas ameaçadas pelo aumento do mar, uma alta dependência do turismo que corre o risco de ser afetado pelo calor, a perda dos ecossistemas marinhos e dos recursos ícticos.
No sul da Europa, o número de dias com recursos hídricos insuficientes (disponibilidade interior à demanda) e secas estão aumentando. Na perspectiva de um aumento da temperatura global de 1,5°C e 2°C, a escassez hídrica diz respeito, respectivamente, a 18% e a 54% da população. Se a temperatura aumentasse 3°C, a aridez do solo seria 40% maior do que um aumento de 1,5°C.
O relatório fornece uma avaliação detalhada sobre os impactos das mudanças climáticas, dos riscos e da adaptação nas cidades. A saúde, a vida e os meios de subsistência das pessoas, assim como os imóveis e as infraestruturas cruciais, incluindo os sistemas de energia e de transporte, são cada vez mais afetados pelos perigos relacionados a ondas de calor, tempestades, secas e inundações.
Mas as cidades podem oferecer soluções: edifícios e telhados verdes, energias renováveis, sistemas de transporte sustentáveis são iniciativas que podem levar a uma sociedade mais inclusiva, mais justa, mais em sintonia com o ambiente.
Há também um processo de profundo mal-estar psíquico. Um estudo publicado na Lancet investigou 10.000 jovens entre 16 e 25 anos e revelou que, de qualquer origem geográfica, todos expressavam preocupação. Cerca de 59% estavam muito preocupados, 84% estavam moderadamente preocupados. Mais de 50% relataram emoções como tristeza, ansiedade, raiva, impotência, falta de ajuda, sentimento de culpa. Outros 45% disseram que esses sentimentos influenciam negativamente a sua vida cotidiana, 75% disseram que o futuro é obscuro, e 83% disseram que não cuidamos do mundo.
Os desafios para a saúde mental são provocados pelo aumento das temperaturas, pelo trauma sofrido devido a eventos extremos e por uma perda de cultura e de ritmo de vida. As adaptações devem prever uma vigilância, o acesso a centros de tratamento e um controle dos impactos psicológicos, afirma o relatório do IPCC.
“As gerações mais jovens têm medos apocalípticos. Devemos estar atentos com o modo como comunicamos os resultados científicos, o colapso da biosfera e o eventual desaparecimento da humanidade. Em vez disso, o medo deve ser direcionado para quem toma as decisões políticas”, declarou Petteri Taalas, secretário geral da Organização Meteorológica Mundial, um dos autores da publicação.
“Nós dopamos a atmosfera, como se faz com os atletas, com os combustíveis fósseis. E isso já levou a um aumento dos eventos extremos e impactou a biosfera e a economia. Os desastres continuarão até 2060, e o derretimento das geleiras e o aumento do nível dos mares, mais ainda”, especificou Taalas.
As avaliações científicas são de curto prazo (até 2040), de médio prazo (2041-2060) e de longo prazo (2081-2100), evidenciando o risco para as gerações mais jovens, que completarão 80 anos em 2100.
A porcentagem da população exposta ao estresse térmico é agora de 30%, mas chegará a 76% naquela data. De 800 milhões a três bilhões de pessoas sofrerão com a escassez de água com um aquecimento de 2°C, mas, se chegar a 4°C, se tornarão quatro bilhões.
E a fome afetará até 80 milhões de pessoas, concentradas principalmente na África subsaariana, no sul da Ásia e na América Central. Algumas áreas se tornarão inabitáveis, porque estamos perdendo espaços vitais para as espécies e também para nós, devido à pressão sobre os ecossistemas, a destruição dos ambientes e a redução da biodiversidade.
Risco de mortalidade para humanos e mudanças climáticas (Foto: IPCC/La Repubblica)
Na Europa meridional, o risco de escassez de recursos hídricos já é alto. A demanda já supera as disponibilidades atuais, ameaçando o desenvolvimento econômico. No caso de um aumento de temperatura de 3°C, o risco de escassez de recursos hídricos torna-se elevado também na Europa centro-ocidental.
A adaptação poderia se basear na gestão da demanda dos recursos hídricos, com mecanismos de monitoramento, restrições, tarifas, medidas de economia e eficiência, gestão do território. A maior eficiência da irrigação já reduziu a escassez de água principalmente nas regiões meridionais. No entanto, na presença de altos níveis de aquecimento, as medidas de economia hídrica e de eficiência podem não ser suficientes para combater a disponibilidade reduzida do recurso.
O trabalho realizado pelos cientistas do IPCC também fez um balanço sobre as soluções possíveis, ressaltando a importância de mudanças substanciais na sociedade. As mudanças marginais não serão suficientes, terão que ser tecnológicas, econômicas, mas também dizer respeito a muitos outros aspectos. A natureza pode ajudar se os ecossistemas forem salvaguardados, porque ela pode regular o clima, fornecer água limpa, controlar os parasitas.
Também é proposto um programa chamado Climate Resilient Development, que combina os planos de adaptação com ações de redução dos gases do efeito estufa.
A janela de tempo para permitir um desenvolvimento resiliente ao clima está se fechando rapidamente (Foto: IPCC/La Repubblica)
As medidas defensivas que são implementadas em alguns lugares hoje, no entanto, podem não valer mais daqui a 20 anos. As estratégias de adaptação, portanto, precisam ser constantemente revisadas com base nos dados. No entanto, apenas algumas nações têm estruturas capazes de realizar essa tarefa.
Restrições e limites na adaptação por região e setor (Foto: IPCC/La Repubblica)
A mensagem é clara: o que está ocorrendo não diz respeito apenas à natureza, mas também nós vamos viver isso na nossa pele. As soluções devem ser encontradas rapidamente.
Como explica Debra Roberts, urbanista e copresidente do IPCC, “toda a sociedade deve responder agora. Os governos e as empresas privadas devem agir, mas a mudança do estilo de vida, as escolhas e também o compromisso político são fatores importantes, que, por sua vez, podem levar as instituições a fazerem o que é necessário. A ação neste momento existe, mas não é rápida. Mas agindo em todos os níveis podemos obter melhores resultados”.