Em uma ampla entrevista à revista America, o padre Hans Zollner, jesuíta alemão e um dos maiores especialistas da Igreja no campo da salvaguarda e proteção de menores e pessoas vulneráveis contra abusos, debateu o tão divulgado relatório sobre como os casos de abuso foram tratados na Arquidiocese de Munique e Freising, a resposta do Papa Emérito Bento XVI a esse relatório, a situação da Igreja Católica na Alemanha hoje e o que mais Roma poderia fazer para ajudar a eliminar essa praga da Igreja.
A reportagem é de Gerard O’Connell, publicada em America, 04-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Pe. Zollner é o presidente fundador do Centro de Proteção aos Menores da Pontifícia Universidade Gregoriana, que agora se tornou o Instituto de Salvaguarda da universidade (IADC).
Ele foi uma das poucas pessoas em Roma dispostas a falar oficialmente sobre o relatório de Munique, Bento XVI e a Igreja na Alemanha. Falei com ele no escritório do instituto, no Colégio Bellarmino, no dia 28 de janeiro.
A investigação sobre como o abuso clerical de menores foi gerido por aqueles que lideravam a Arquidiocese de Munique e Freising entre 1945 e 2019 foi encomendada por essa diocese em fevereiro de 2020. Ela foi conduzida pelo escritório de advocacia Westpfahl Spilker Wastl, e o relatório foi apresentado em uma coletiva de imprensa em Munique no dia 20 de janeiro.
As descobertas revelaram que pelo menos 497 pessoas foram abusadas na arquidiocese naquele período de 74 anos. A investigação mostrou que a maioria das vítimas eram jovens, 247 homens e 182 mulheres, e 60% tinham entre 8 e 14 anos. Ela identificou 235 perpetradores de abuso, incluindo 173 padres, nove diáconos, cinco agentes de pastoral e 48 pessoas do ambiente escolar. Ela deu nome aos arcebispos e lideranças da Igreja que, de acordo com as descobertas, geriram mal os casos de abuso, incluindo o cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI.
Comecei perguntando ao Pe. Zollner se ele acha que o maior dano à Igreja veio do fato de Bento XVI ser identificado como alguém que geriu mal os casos de abuso. Sua resposta foi impressionante: “Embora a maior atenção tenha sido atraída para isso, o maior dano à Igreja, o fato mais chocante, é que nenhum dos arcebispos – conservador ou liberal – da Arquidiocese de Munique-Freising de 1945 a 2019 fez consistentemente o que deveria ter feito ao lidar com casos de abuso”.
Por outro lado, “eles eram mais consistentes com os leigos do que com os padres: quando um leigo era acusado, eles o removiam do serviço na Igreja, mas o padre, não”.
Observei que, desde o início do escândalo dos abusos, colocar a instituição antes da vítima era identificado como um dos maiores problemas. Embora o Pe. Zollner tenha concordado, ele acrescentou: “Era algo do círculo interno, do clube de dentro: ‘Nós resolvemos o problema entre nós mesmos’”. Em vez disso, afirmou, “lidar com o problema do abuso pede uma partilha do poder, a inclusão de peritos, auditorias independentes. Temos isso em algumas partes do mundo hoje, mas precisamos disso também para estratégia de pessoal, para a comunicação e assim por diante. Esse é um chamado para a Igreja se abrir e não permanecer em uma mentalidade de fortaleza”.
Quando observei que o processo sinodal iniciado pelo Papa Francisco visa a alcançar isso, o Pe. Zollner disse: “Sim, vai bem ao encontro disso”. Mas, acrescentou, o desafio central “é a relação entre a Igreja e o mundo”, uma questão que “o Vaticano II começou a abordar, mas não seguimos com isso, e então uma mentalidade defensiva do século XIX ainda prevalece, como o cardeal Martini observou quando disse que a Igreja estava 200 anos atrasada”.
A partir da sua experiência ao longo dos anos, o Pe. Zollner disse que entendeu que, “no abuso e em seu encobrimento, você vê a vida em ‘brennpunkt’ [palavra alemã que significa ‘foco’]; você vê as grandes questões concentradas ali – sexo, dinheiro, poder, liderança, relacionamentos, relação com o Estado, com especialistas externos e com a mídia, e, portanto, o nosso trabalho no nosso Instituto de Salvaguarda não diz respeito apenas ao abuso sexual, mas também à estrutura, ao abuso sistêmico, à responsabilização, à transparência e muito mais”.
Em outras palavras, “o abuso e toda sua má gestão podem ser considerados como um microcosmo dos desafios que a Igreja enfrenta hoje”.
O cardeal Ratzinger, futuro Bento XVI, foi arcebispo de Munique e Freising de 1977 a 1982, e os advogados que investigam a arquidiocese o consideraram negligente em quatro casos.
Tal como ocorre com outras pessoas que supostamente também falharam, eles lhe enviaram uma série de perguntas relativas a esses quatro casos, pedindo a sua resposta.
O escritório de advocacia enviou as perguntas a Bento XVI acompanhadas da documentação pertinente. A KNA, uma agência de notícias católica alemã, informou que o arcebispo Georg Gänswein, secretário particular de Bento XVI, recrutou a assistência e de um padre e canonista alemão, Stefan Mückl, professor da Universidade da Santa Cruz, em Roma, dirigida pelo Opus Dei, junto com um advogado leigo alemão, Carsten Brennecke, do escritório de advocacia de Colônia que está defendendo o cardeal Rainer Woelki em relação aos seus problemas de governo na diocese. Solicitados a examinar as questões à luz da documentação de fundo, os advogados inicialmente desaconselharam a responder, mas posteriormente decidiram trabalhar na preparação dessa resposta.
O Pe. Zollner acredita que “foi bom, em princípio, que Bento XVI tenha mostrado vontade de cooperar. Isso mostrou que ele levou a questão a sério”.
Bento XVI “está lúcido” e “tem uma memória de longo prazo muito boa”, como disseram ao Pe. Zollner as pessoas que o visitaram no Natal, e ele assinou as 82 páginas de respostas que foram enviadas ao escritório de advocacia por volta do dia 15 ou 16 de dezembro, assumindo assim a responsabilidade por elas.
O Vaticano não se envolveu na preparação ou aprovação das respostas, e o cardeal Pietro Parolin, secretário de Estado, só foi informado sobre isso no dia de Natal.
Depois de ler as perguntas e as respostas do papa emérito, o Pe. Zollner, assim como muitos outros, concluiu que os conselheiros de Bento XVI não o ajudaram muito. Ele identificou vários problemas na resposta de 82 páginas, além do fato de que é óbvio que a resposta não foi escrita por Bento. Isso ficou imediatamente evidente, pois foi escrita em um estilo diferente de alemão do que Bento normalmente usa.
O Pe. Zollner disse que o primeiro problema está relacionado ao fato de que Bento XVI, em sua resposta, disse que, como arcebispo de Munique (1977-1982), ele foi influenciado pelo “zeitgeist” daquela época – enquanto até então ele sempre insistiu que, como cristãos, não deveríamos ser influenciados pelo zeitgeist, porque temos valores e padrões morais que são independentes dele.
Além disso, em um artigo de abril de 2019, o Papa Bento XVI acusou o zeitgeist dos anos 1960 pelos escândalos de abuso na Igreja.
Um segundo problema está relacionado com a abordagem que a resposta ofereceu às questões morais e canônicas, disse o Pe. Zollner. A resposta, assinada por Bento, afirma que a masturbação na frente de meninas que não envolve toque não é abuso sexual. O Pe. Zollner disse que, embora alguns canonistas argumentem que definir o abuso sexual como ofensa ao sexto mandamento evita reduzi-lo a uma definição legal restrita e dá a oportunidade de aplicá-lo mais adequadamente à situação concreta, neste caso, esse ponto é usado para deliberadamente evitar dizer que se trata de uma ofensa sexual.
Um terceiro problema é que a resposta de Bento XVI diz que o bispo não é responsável por um padre que abusa “privadamente”, ou seja, quando ele não está usando trajes clericais e não pode ser reconhecido como padre. O Pe. Zollner perguntou se isso significa que o sacerdócio está relacionado ao traje clerical.
Além disso, essa resposta revela uma “inconsistência” com a própria teologia de Bento e, de fato, com a teologia do Sacramento da Ordem. Por causa disso, o Pe. Zollner disse: “Certamente não é uma resposta dele, embora ele a tenha assinado”.
Apontando para um quarto problema, o Pe. Zollner disse que achou “surpreendente” que, embora o arcebispo Gänswein e os advogados que auxiliam Bento XVI tenham recebido a documentação relevante, incluindo as atas da reunião do dia 15 de janeiro de 1980 que mostravam que o cardeal Ratzinger havia participado da reunião onde discutiram o pedido da Diocese de Essen para permitir que um abusador, o Pe. Peter Hullerman, fosse a Munique para tratamentos psicoterápicos.
No entanto, Bento, em sua resposta, “afirmou em três ocasiões diferentes que ele não estava presente”. Após a publicação do relatório, no entanto, Bento XVI “teve que recuar e admitir que estava presente”, mas atribuiu o equívoco a “um erro de edição”.
Questionado sobre o que espera que ocorra em relação a Bento XVI, já que, segundo o arcebispo Gänswein, Bento está lendo o relatório cuidadosamente e preparando uma resposta, o Pe. Zollner repetiu o que está ele teria dito anteriormente: ele acha que Bento deve simples e humildemente dizer algo como: “Posso ter cometido erros, peço perdão por isso, peço perdão às vítimas”.
Ele acredita que, nesta fase, a tentativa de discutir detalhes será vista como uma tentativa de autojustificação. Ele observou ainda que alguns bispos declararam publicamente que Bento deveria simplesmente reconhecer seus erros e pedir perdão.
Quando perguntei ao Pe. Zollner o que ele vê que está ocorrendo na Igreja alemã, dado o impacto do escândalo dos abusos, ele disse que “há uma grande saída de fiéis”, e isso, combinado com a pandemia, resultou no fato de que muitas pessoas não vão mais à igreja e não voltam mais.
Como o número de pessoas que se declaram membros da Igreja Católica na Alemanha “tem diminuído”, o Pe. Zollner previu que isso terá um impacto negativo nas finanças da Igreja e terá implicações mais amplas, porque a Igreja Católica alemã é uma das três principais doadoras ao Vaticano e às Igrejas em missão.
Além disso, afirmou, como resultado da impressão de uma falta de liderança na Igreja local, os leigos sentem que precisam fazer seus próprios esforços de arrependimento e conversão: por exemplo, ele disse que em pelo menos uma paróquia no norte da Baviera “eles cancelaram a missa por três domingos consecutivos em solidariedade às vítimas”.
Investigações semelhantes às de Munique estão sendo realizadas em outras dioceses alemãs como sequência do relatório de 2018, disse ele, e podemos esperar notícias mais perturbadoras na mídia. Ele previu, no entanto, que os dados em relatórios futuros – os próximos devem vir de Friburgo e Münster – provavelmente não serão muito diferentes dos que já vimos: em outras palavras, acusações de abuso contra 3% a 5% dos padres diocesanos, sendo que a maioria ocorreu nas décadas de 1960 e 1970.
A maioria dos abusadores tinha entre 35 e 50 anos, enquanto a maioria das vítimas eram crianças ou adolescentes do sexo masculino, especialmente nas primeiras décadas entre 1945 e 2020. “Você não tem alternativa à transparência em relação aos números dos abusos. Isso virá à tona mais cedo ou mais tarde, então você não deve tentar negar isso”, disse ele.
Eu observei que, no Chile, sete bispos tiveram suas renúncias aceitas pelo papa desde que o escândalo dos abusos eclodiu lá em 2018, e na Polônia dez bispos foram convidados a renunciar como resultado do escândalo dos abusos lá, mas até hoje nenhum bispo alemão renunciou.
Eu lembrei que, quando o escândalo dos abusos explodiu em Boston em 2002, e muitos pediram a renúncia do cardeal Bernard Law, perguntei ao cardeal estadunidense James Stafford, que então trabalhava no Vaticano, se ele achava que o cardeal de Boston deveria renunciar. Ele respondeu que, se um bispo perdeu a confiança dos seus padres e do seu povo, então ele deveria renunciar.
O Pe. Zollner disse que concordava com esse critério, mas acrescentou: “Alguém deveria ter o poder de dizer a ele para renunciar, se ele mesmo não se der conta disso”.
Em uma entrevista no dia 26 de janeiro a um site de notícias católico alemão, o Pe. Zollner disse: “Na Igreja, há uma tendência de muitos se apresentarem apenas como uma pequena roda. Isso também pode ser visto em bispos que dizem: ‘Eu gostaria de renunciar, mas o papa não me deixa’. Em vez disso, eles deveriam ser homens o suficiente e dizer: ‘Não importa o que o papa diga agora, eu não posso fazer mais e não quero mais’”.
Na entrevista à America, ele disse: “Se eu, como bispo, estiver desacreditado, o papa pode dizer o que quiser, mas, se a minha consciência me disser que é impossível continuar, eu deveria dizer isso e ir embora”.
Mas o Pe. Zollner disse: “Eu não acho que as renúncias por si mesmas mudarão a situação. Apenas ter a renúncia pela renúncia – não! Mas, como eu disse, há alguns que perderam a sua credibilidade com o povo de Deus, e eu acho que isso não pode ser consertado”.
Na mesma linha, ele lembrou que, após a publicação do relatório, o cardeal Marx, atual arcebispo de Munique e Freising, não excluiu a possibilidade de renunciar – mesmo depois de seu pedido ter sido rejeitado pelo Papa Francisco no ano passado.
“É uma questão em aberto, especialmente depois do que ele prometeu” em resposta ao relatório de Munique, disse ele. “De qualquer forma, o mais tardar dentro de um ano, ele responderá, como ele mesmo disse, e será responsabilizado pelo que fez ou deixou de fazer. Poderíamos até pensar que, uma vez completada a sua tarefa, ele poderia dizer: ‘Fiz a minha parte e agora serei pároco na Alta Baviera’”.
O Pe. Zollner acredita que um caminho crucialmente importante para a Igreja na Alemanha e em outros lugares é implementar com força as mudanças na lei da Igreja introduzidas pelo Papa Francisco e seus antecessores, e especialmente o motu proprio Vos estis lux mundi, de 2019.
Ele acredita que, se o motu proprio for totalmente implementado por bispos e superiores religiosos em toda a Igreja, isso mudará o modo como as acusações de abuso são geridas, protegerá os demandantes, imporá a responsabilização, eliminará o encobrimento e ajudará a fazer justiça às vítimas.
Ele também acha que “as Igrejas locais devem assumir mais responsabilidade nesse campo e em outros”. Ele considera que “bispos e conferências episcopais devem assumir muito mais responsabilidades para organizar a vida da Igreja em seu próprio país e decidir, por exemplo, os papéis que devem ser atribuídos às mulheres na vida da Igreja”.