30 Novembro 2021
O Centro Montalvo, obra social da Companhia de Jesus na República Dominicana, pronuncia-se ante as drásticas medidas tomadas por parte do governo dominicano contra cidadãos haitianos, especialmente sobre a deportação de mulheres grávidas.
A nota é do Centro Montalvo, publicada por Jesuítas da América Latina, 17-11-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Há algumas semanas, os jesuítas que desenvolvem o seu trabalho no Haiti publicaram um documento intitulado “Grito de alarme”, no qual se pronunciaram com bravura perante a gravíssima situação que atravessa o povo haitiano. Ficamos muito satisfeitos ao ver como suas palavras ecoaram nas redes sociais em muitos corações de boa vontade do lado dominicano: “Não é possível que vejamos passiva ou cinicamente como um povo inteiro definha”, alertaram nossos irmãos do vizinho.
Agora é a hora de assumir, do lado dominicano, os grandes princípios do direito internacional e a melhor experiência diplomática, resistindo à tentação de soluções precipitadas e violentas, mas sobretudo injustas, em busca de bodes expiatórios para ganhar legitimidade política. As medidas que devem ser tomadas neste momento do lado dominicano devem impedir que os justos paguem pelos pecadores. Nesse sentido, muitos atores dominicanos pediram ao governo dominicano que revogasse a decisão que havia tomado de suspender o visto para estudantes universitários. O Presidente da República apareceu no dia seguinte oferecendo esclarecimentos. No entanto, a mesma lógica política e midiática que apoiava esse absurdo continuou nos dias seguintes, primeiro criando uma linguagem de guerra contra o Haiti e depois perseguindo impiedosamente as mulheres grávidas.
Mais uma vez, o sentido político e jurídico de soberania é mal compreendido. A soberania não concede cheque em branco para fazer qualquer coisa no território nacional. A soberania é a instância suprema à qual toda a ordem do estado é submetida, que no caso dos estados contemporâneos formalmente seculares, é a ordem constitucional. A classe política parece não prestar atenção a Deus, nem se comportar com uma ética humanística; parece apenas prestar atenção à pressão da mídia e à coerção do sistema legal. Deve ficar claro que violar o próprio sistema jurídico constitui um ataque à soberania. Pois bem, o respeito irrestrito aos direitos humanos e o cumprimento dos acordos internacionais firmados pelas autoridades competentes fazem parte da ordem constitucional.
A recente medida da mídia de deportar mulheres grávidas haitianas, sustentada por estatísticas inconsistentes do Ministro da Saúde e por péssimos discursos do Diretor de Migração e do Ministro do Interior, viola a própria ordem constitucional, além de levantar questões sobre profissionais e a capacidade intelectual de importantes funcionários deste governo. A Constituição estabelece que compete ao Congresso Nacional estabelecer as normas de imigração e as leis de estrangeiros (art. 93, letra h). Em suas atribuições, o Congresso Dominicano tem consequentemente estabelecido na Lei de Migração que “nos casos em que seja cabível a deportação ou expulsão de estrangeiros, as mesmas serão realizadas com o devido respeito pelos direitos humanos, de acordo com as leis em vigor e acordos ratificados pela República Dominicana”. E esclarece imediatamente no n.º 1 do artigo 28 que:
“1. Qualquer centro de saúde que no momento de oferecer assistência ao parto a uma mulher estrangeira que não tenha a documentação que a credite como residente legal, se emitirá uma Certidão de Nascimento na cor rosa, diferente da Certidão Oficial de Nascimento, com todas as referências pessoais da mãe”.
Por sua vez, o artigo 134 do regulamento da Lei de Imigração estabelece claramente o seguinte no que diz respeito à detenção:
“PARÁGRAFO.- A detenção será o último recurso, para que a autoridade de imigração só a utilize se for considerada insuficiente. Os demais recursos descritos no presente regulamento. A detenção nunca será utilizada em casos de menores, mulheres grávidas ou lactantes, idosos e requerentes de asilo”.
Nunca significa: nunca, em nenhuma circunstância.
Finalmente, deve-se destacar que o país é signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a qual estabelece em seu artigo 28, números 8 e 9, o seguinte:
“8. Em nenhum caso o estrangeiro poderá ser expulso ou devolvido a outro país, de origem ou não, onde seu direito à vida ou à liberdade pessoal esteja sob risco de violação por motivos de raça, nacionalidade, religião, condição social ou de suas opiniões;
9. É proibida a expulsão coletiva de estrangeiros”.
A atual expulsão de mulheres grávidas tem sido feita de forma coletiva. O comunicado da ONU publicado em 16 de novembro de 2021 nada mais é do que a crônica de uma morte anunciada. A ONU não disse nada além do que a própria República Dominicana prometeu em sua ordem constitucional. Acatar o pedido da ONU de suspender a aplicação das medidas do Conselho Nacional de Migração também constitui um ato de soberania. Seria um ato razoável e responsável de soberania nacional consistente com a Carta Internacional de Direitos Humanos, da qual o país é signatário.
É difícil lidar com essa questão com um ambiente político contaminado por um ultranacionalismo oportunista que nem mesmo obtém legalidade para si. Mas sentimos a responsabilidade de insistir, mais uma vez, sabendo que os insultos acalorados virão, que é hora de reconsiderar. É hora de retomar o tom cooperativo da política bilateral proclamada no último dia 12 de janeiro no próprio Palácio Nacional. Trata-se de colocar nosso grão de areia diplomático e responsável no necessário reordenamento do Haiti. Frases retóricas em fóruns internacionais como “não há solução dominicana para o problema haitiano” não ajudam em nada. Porque, quem defendeu tal tese em qualquer lugar do planeta? Em nosso entendimento, esta é uma frase que visa obter maior aprovação política. Tampouco ajuda o manejo de uma situação tão complexa por meio de mensagens curtas e ameaçadoras nas redes sociais.
A recente encíclica Fratelli Tutti exorta-nos a enfrentar o desafio das relações internacionais com um novo ímpeto:
“...‘em alguns países de origem, os fenômenos migratórios suscitam alarme e medo, muitas vezes promovidos e explorados para fins políticos. Desse modo, espalha-se uma mentalidade xenófoba, de pessoas fechadas e retraídas sobre si mesmas’. Os migrantes não são considerados dignos o suficiente para participar da vida social como qualquer outra pessoa, e se esquece que possuem a mesma dignidade intrínseca que qualquer pessoa. Portanto, eles devem ser ‘protagonistas de seu próprio resgate’. Nunca se dirá que não são humanos, mas, na prática, com as decisões e a forma de os tratar, fica expresso que são considerados menos valiosos, menos importantes, menos humanos. É inaceitável que os cristãos compartilhem dessa mentalidade e dessas atitudes, às vezes fazendo com que certas preferências políticas prevaleçam sobre as convicções profundas de sua própria fé: a dignidade inalienável de cada pessoa humana independentemente de sua origem, cor ou religião, e a lei suprema do amor fraterno” (Fratelli Tutti, nº 39).
O Papa Francisco também diz que compreende “que, ao se deparar com os migrantes, alguns têm dúvidas e temem. Eu entendo isso como parte do instinto natural de autodefesa” (nº 41). Mas esse instinto não deve ser um obstáculo invencível para que busquemos juntos caminhos de solidariedade, promovendo uma resposta internacional efetiva ao sofrimento de todo um povo, especialmente de seus setores mais desprotegidos e vulneráveis.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
República Dominicana. Centro Montalvo, obra social jesuíta, cobra a retomada da política das relações com o Haiti e respeito às leis de migração - Instituto Humanitas Unisinos - IHU