25 Outubro 2021
"Não tenho nenhum título - e nem remotamente teria a autoridade intelectual - para tentar uma síntese dos tantos legados deixados pelo arcebispo de Milão. Mas se eu tivesse que tentar fazer isso, diria que ele deixou um profundo testemunho de espiritualidade em uma sociedade que estava perdendo materialmente o sentido da vida. Tão límpido e surpreendente que resiste ao desgaste do tempo. Não há questão da atualidade que não possa ser aprofundada graças à sabedoria do pensamento de Martini", escreve Ferruccio De Bortoli, jornalista, em artigo publicado por Corriere della Sera, 21-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Martini gostaria de ter sido jornalista. Certa vez, disse a ele que seria uma honra, como categoria profissional, tê-lo entre os colegas. Com um aviso: o dano que tal escolha teria acarretado à Igreja (e não só) teria sido irreparável. É imperdoável. (...)
Até poucas semanas antes de sua morte, o Cardeal foi um colaborador assíduo e pontual do Corriere della Sera. Sua coluna parecia uma semeadura mensal. Muito esperada. Sempre generosa de reflexões e de conselhos. Dirigidos especialmente a quem não tinha fé e talvez nem a buscasse. Aos nossos olhos leigos, aquela semeadura tinha um aspecto milagroso. (...)
Não tenho nenhum título - e nem remotamente teria a autoridade intelectual - para tentar uma síntese dos tantos legados deixados pelo arcebispo de Milão. Mas se eu tivesse que tentar fazer isso, diria que ele deixou um profundo testemunho de espiritualidade em uma sociedade que estava perdendo materialmente o sentido da vida. Tão límpido e surpreendente que resiste ao desgaste do tempo. Não há questão da atualidade que não possa ser aprofundada graças à sabedoria do pensamento de Martini. Ele era o pai que não tivemos. O amigo que desejávamos. O confessor em cujo ombro gostaríamos de deitar a cabeça em momentos de dor ou desespero. Martini se foi, mas muito dele permanece. A semeadura continua.
Há alguns anos li um extraordinário trabalho de pesquisa de Alberto Guasco (Martini. Os anos de formação 1927-1962, em tradução livre). O cardeal não gostava muito que se falasse de sua juventude, de sua carreira como sacerdote e biblista. A discrição típica de sua origem piemontesa mesclava-se com um certo distanciamento acadêmico (aquele que havia nos enganado sobre sua capacidade de comunicação, na época de sua nomeação como arcebispo de Milão em 1980). E, além disso, cada príncipe da Igreja parece não ter tido uma infância, uma juventude. Quase como se a púrpura, ou simplesmente a batina, as apagassem.
Não foi por acaso que os diários da juventude de Martini foram destruídos. O autor do livro, entretanto, nada fez senão aplicar, com discernimento inaciano, o método do estudo e trabalho do Cardeal, norteado pelo exame rigoroso dos papéis e testemunhos. (...) Martini recebeu uma educação para a honestidade mental. Nessa frase, aliás, lembrada pelo próprio Cardeal, está tudo. É quase um manifesto educacional. Porque não existem esquemas, ideologias. Existe um coração aberto. Aberto ao encontro com a fé, mas não fechado à razão. Martini foi um garoto de sorte porque cresceu no seio da melhor burguesia piemontesa. Afinal, foi a passagem da Bíblia sobre o jovem rico que o aproximou da Igreja. Se ele tivesse tido uma família diferente, mais pobre, se ele não tivesse a sorte de ter um curso de estudos tão privilegiado, ele teria se tornado o Martini que sentimos saudade? Não sabemos, mas certamente seus estudos no Instituto Social dos Jesuítas o colocaram em uma posição em que a vantagem da riqueza era efetivamente anulada. “Recebi uma educação séria, austera e ao mesmo tempo muito livre”. Num curso de estudos que de alguma forma o protegeu das ingerências do regime. Seu pai ficou "pior do que pasmo" com a notícia de que ele teria escolhido se tornar jesuíta. E constante foi a preocupação, nos anos seguintes, em demonstrar a bondade de sua irresistível tentação. “O Senhor dê-lhes resignação e conforto”.
Por que escolhi esta referência ao Martini jovem? Por uma razão simples. Os fatos que nos chamam a atenção e nos surpreendem nos rejuvenescem de um só golpe. Diante das tragédias, reaparecem os temores da infância. Sentimo-nos perdidos e abalados como naqueles momentos da nossa infância ou adolescência em que pensávamos que não conseguiríamos, que não teríamos força para compreender antes mesmo de encontrar aquela de reagir. Aconteceu por causa da pandemia que nos levou de volta a tantas precauções - excessivas e enfadonhas aos nossos olhos - dos nossos pais obcecados com o tifo, o tétano, as doenças infantis. Na época, o progresso não parecia tê-las eliminado. Tínhamos consciência da nossa fragilidade.
Aquela consciência que se perdeu e se desfez na nossa presunção de ter derrotado as epidemias da história. E quando nos vimos tendo que conviver com um vírus desconhecido e mortal, voltamos todos a ser crianças, perseguidos pelas vozes familiares que nos diziam para ter cuidado com tudo. Mas não nos diziam para desistir de viver. Longe disso.
Com tudo o que aconteceu nos últimos anos, a memória de 11 de setembro de 2001 se afastou no tempo. Virou história muito cedo. Como se pertencesse a outro século. Quando nos vimos perdidos e vítimas dos medos da infância, naquela distante terça-feira, as palavras do arcebispo nos pareceram tão tranquilizadoras quanto as de um pai diante dos perigos da vida. Era como se o Cardeal tivesse dado a nós jornalistas uma lanterna capaz de iluminar com sabedoria e verdade momentos impregnados de morte, dor e raiva. “Ver a morte e contemplar a vida é o binômio que acompanha a viagem a Jerusalém”, escreve Marco Garzonio no seu livro (Con Martini in Terra Santa) em que se encaminha, com o Cardeal, no seu regresso (que infelizmente durou pouco) ao lugar símbolo das religiões monoteístas.
Eis Martini, no dia em que o Ocidente se sentiu perdido e sob ataque, vítima de uma violência movida também pela fé misturada com o sentimento de ódio, encorajando a não se entregar ao mal e a olhar para a vida. Na coletânea Le cattedre dei non credenti (prefácio do Papa Francisco), Martini retoma uma reflexão lúcida de Pierangelo Sequeri intitulada “Por que o mal?”. É a questão central daquele 11 de setembro e, infelizmente, das frequentes ações terroristas nos anos seguintes que ensanguentaram ruas, escolas, locais de culto. Martini escreve que a atenção a quem sofre é o ideal que ele busca. "Olhar para ele me dá confiança."
A seguir cita um trecho, extraído de uma carta de Dietrich Bonhoeffer, escrita em 1944. Termina assim: “Viver a partir da Ressurreição, isso significa a Páscoa”.
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A semeadura espiritual de Martini nunca se interrompeu - Instituto Humanitas Unisinos - IHU