06 Março 2014
A mensagem de Martini era marcada por duas linhas principais: sua fidelidade à história e sua fidelidade ao Eterno. E ele continuamente tentou conjugar essas duas fidelidades.
A opinião é do teólogo italiano Bruno Forte, arcebispo de Chieti-Vasto, na Itália, nomeado pelo Papa Francisco como secretário especial do Sínodo dos Bispos de outubro deste ano. O artigo foi publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 02-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O cardeal Martini é um daqueles mestres em relação aos quais a distância temporal não faz diminuir o interesse, mas de algum modo o aumenta, levando a descobrir novas ressonâncias e significados inéditos da mensagem que eles nos deixou. Qual é essa mensagem no caso de Martini?
Tento resumir as suas linhas principais: fiel à história, fiel ao Eterno, ele continuamente tentou conjugar essas duas fidelidades. A urgência de ser fiel à história nascia nele da convicção de que, para o cristão, a transcendência divina também deve ser entendida sempre como uma iminência [imminenza], que toca e transforma de dentro o coração humano. Inspirador dessa concepção era o pensamento de outro grande jesuíta, Karl Rahner.
Rahner soubera conjugar os direitos do sujeito, reivindicados pela razão moderna, com os da verdade objetiva, postulados pelo pensamento clássico: o homem não é nem um sujeito prisioneiro do próprio mundo interno, incomunicável ao outro, nem um simples caso do universal, medido por leis abstratas e absolutas. Ser da abertura ao Transcendente, o homem é o "ouvinte da Palavra", projetado para fora de si em um êxodo livremente orientado ao advento de Deus.
Essa visão encontra-se no pensamento de Martini acima de tudo na estrutura dialógica que sempre retorna nele, na ênfase posta na relação de aliança entre o homem que sai de si e o Deus que vem até ele. No entanto, é interessante notar as correções que Martini introduz na concepção de Rahner: lá onde ela corre o risco de ser excessivamente otimista e obscurecer a trágica realidade do pecado e dos seus efeitos, Martini extrai da Escrituras e da sabedoria pastoral da Igreja o sentido do drama do mal e das suas consequências (pense-se na análise do Salmo 50, o Miserere). Lá, onde a atenção ao indivíduo poderia prevalecer sobre a necessidade da mediação comunitária, em Martini, é muito acentuado o sentido da pertença à Igreja.
Então, é possível perceber como as intuições de Rahner encontraram no cardeal um mediador criativo, que soube adaptá-las às exigências com que o serviço pastoral o colocou em contato, para ajudar a fé e o amor ao próximo na vivência do seu povo.
Uma segunda característica da mensagem que Martini nos deixou é constituída pela sua vontade de ser firmemente fiel ao Senhor. Quer exaltando a dimensão contemplativa da vida, quer convidando a pôr-se à escuta da Palavra de Deus, quer evidenciando a centralidade da Eucaristia e a exigência que dela brota de se fazer próximo, Martini tem presente como meta e critério a busca de Deus e da Sua glória. Ressoam aqui alguns motivos fundamentais dos Exercícios inacianos: "O homem é criado para louvar, respeitar e servir a Deus, nosso Senhor, e com isso salvar a própria alma. As outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, para ajudá-lo a atingir o fim para o qual foi criado" (Princípio e fundamento).
O primado de Deus é afirmado sem reservas: tudo, mesmo o ser e o agir eclesiais, deve ser submetido a essa suprema medida, e é isso que insere na consciência da Igreja a necessidade de uma contínua renovação e de uma incessante reforma. Aqui também se capta a razão do forte apego de Martini à "santa raiz" da árvore cristã, a fé de Israel, que, de maneira única e singular entre os povos, testemunhou o primado do Deus da aliança na história: ele sempre foi ao encontro dessa seiva, até o fim, como demonstra o seu amor pelo povo judeu e por Jerusalém, a cidade onde ele tinha sonhado em morrer.
É esse mesmo "pathos" do absoluto primado de Deus que torna o pensamento do grande biblista e pastor singularmente aberto ao diálogo ecumênico, assim como ao diálogo com os mundos religiosos diferentes do cristianismo e com a experiência da não crença: na plena consciência da graça que é pertencer à Igreja, Martini reconhece no "Deus sempre maior" o termo pelo qual é possível medir a relatividade de toda presunção, mesmo religiosa. Em relação ao Absoluto divino, cada fé religiosa tem sementes de verdade que devem ser reconhecidas e apreciadas: até mesmo na não crença pode se reconhecer uma "cátedra", porque, na voz dos que lutam com Deus, pensando não acreditar n'Ele, é sempre a medida do Seu mistério maior que se assoma.
Isso constitui, para quem crê, uma formidável escola de humildade diante do Eterno e dos caminhos insondáveis que a Sua Graça escolhe para alcançar o coração dos homens. A proclamação do primado de Deus é, para Martini, a maior contribuição que os crentes podem dar para a crise da modernidade e das suas certezas ideológicas, e à insurgência inquieta do pós-moderno, com o seu rosto niilista e, ao mesmo tempo, com a sua paradoxal busca de sentido, para além das capturas ideológicas e dos atalhos da razão instrumental.
A última característica que eu gostaria de evidenciar na mensagem que Martini nos deixou é a urgência de conjugar as duas fidelidades, à terra e ao céu, ao mundo presente e ao mundo que há de vir. O biblista e pastor apreende essa tarefa da frequentação assídua à Sagrada Escritura e da espiritualidade inaciana, educada na valorização dos "sentidos espirituais". Para Santo Inácio, tanto a "aplicação dos sentidos" ao mistério mediado, quanto a "composição do lugar", onde se situa o que é objeto de meditação, são instrumentos indispensáveis para crescer na experiência de Deus e no conhecimento da Sua vontade, porque o divino sempre nos alcança através das formas do humano.
A atenção à mediação sensível se encontra difusamente em Martini: o frequente recurso às imagens, o gosto narrativo, a atenção aos detalhes, a concretude das aplicações são igualmente aspectos da valorização daquela "humanidade de Deus", que uma tradição teológica inteira exaltou, contra todo espiritualismo desencarnado e toda redução racionalista do cristianismo.
Martini se serve do mundo da sensibilidade segundo um procedimento que revela a influência de outro grande jesuíta, Bernard Lonergan: as quatro etapas do método, por ele proposto – atenção, inteligência, julgamento, decisão –, encontram-se em muitíssimos textos do cardeal. É segundo essas etapas que o cardeal gosta de marcar as suas análises, partindo da concretude percebida pelos sentidos para entendê-la e avaliá-la à luz da Palavra de Deus e chegar, assim, ao apelo à decisão, que incide sobre a mudança da existência diante do Eterno.
Essa metodologia dá os seus raciocínios uma espessura de proximidade à vivência que ajuda muito a sua assimilação espiritual, tornando-os distantes das especulações abstratas, para as quais, ao contrário, ele parece ter uma relutância instintiva. Como prova desse apaixonado compromisso de conjugação do tempo e do Eterno, gostaria de citar algumas frases da carta Alzati va' a Ninive, la grande città [Levanta-te, vai a Nínive, a grande cidade], de 1991.
Martini escreve: "O nosso problema fundamental é o de colocarmo-nos novamente em espírito contemplativo e em uma situação interior de disponibilidade (...) diante da Palavra, da promessa e da proposta de Deus que, em Jesus Cristo, oferece salvação a este nosso mundo contemporâneo (…), e mostrar a sua força hoje não menos do que nos primeiros tempos do Cristianismo. Trata-se de mostrar que, mesmo hoje – em uma civilização profundamente mudada pela técnica, marcada pelo bem-estar, atravessada por conflitos e confundida pela multiplicação das mensagens – é possível construir comunidades cristãs que seja, no nosso tempo, testemunhas de paz, de alegria evangélica, de confiança no reino de Deus que vem, comunidades missionárias que saibam agir por atração, por proclamação, por convocação, por irradiação, por fermentação, por contágio".
Esse é o sonho que o Pastor da Igreja de Santo Ambrósio e de São Carlos alimentou para si e para o seu povo, assim como para toda a comunidade eclesial e para toda a humanidade, e que também levou ao centro da sua missão de intercessão em Jerusalém, assim como à humildade da enfermaria dos jesuítas em Gallarate, onde encerrou a sua laboriosa jornada terrena.
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Cardeal Martini, mediador entre fé e humanidade. Artigo de Bruno Forte - Instituto Humanitas Unisinos - IHU