Com lei ignorada e falta de fiscalização, bioma do RS tem sido convertido em lavoura, principalmente de soja.
A entrevista é de Luciano Velleda, publicada por Sul21, 15-09-2021.
Logo nas primeiras páginas do livro Fim do futuro? Manifesto ecológico brasileiro, obra célebre do movimento ambientalista no País, José Lutzenberger critica a falta de limites para o “desenvolvimento” e o “crescimento econômico”. O agrônomo argumenta que o pensamento econômico que permitiu o surgimento da sociedade industrial e de seu auge, a sociedade de consumo, parte de um modelo que chamou de “divorciado da realidade”.
“Encara-se a economia como se ela existisse em um plano que transcende a natureza e que com ela não tem contato, a não ser naqueles pontos em que ela é explorada como fonte gratuita de matéria-prima”, disse Lutzenberger.
No livro, publicado em 1980, o ambientalista gaúcho afirma que tal modelo ignora o funcionamento da ecosfera — porção do planeta que abrange a biosfera e todos os elementos com influência sobre os organismos vivos, incluindo solos e rochas (litosfera), mares e rios (hidrosfera) e a atmosfera. “A visão da economia como algo que transcende a natureza leva à cegueira ambiental por um lado e a contas fictícias e ilusórias por outro. É porque a natureza não entra em nossas cogitações econômicas que não nos damos conta da gravidade de nossas agressões, não vemos que nos encontramos em pleno processo de desmantelamento da ecosfera, cujo fim significará o fim também da economia humana”, sentenciou um dos maiores ambientalistas brasileiros.
Lutzenberger certamente ficaria desapontado com o que acontece atualmente no Pampa, o bioma característico do Rio Grande do Sul e que tem sofrido a maior remoção da vegetação nativa dentre todos os biomas do Brasil. A área total mapeada no Pampa pelo IBGE, em 2019, foi de 19,3 milhões de hectares. Deste total, os remanescentes de vegetação nativa campestre ocupavam, em 2018, 6,5 milhões de hectares, representando 33,6% do território do bioma.
A agricultura já é o tipo de uso do solo predominante no Pampa, ocupando 38,3% do seu território. As florestas nativas cobrem 13,2% do bioma e a silvicultura 2,4%, sobretudo com eucalipto e pinus, enquanto que os corpos d’água representam 9,6%. A soja tem sido o principal cultivo a ocupar as áreas originalmente constituídas de vegetação nativa campestre. Entre os anos 2000 e 2015, a área plantada com soja no Pampa cresceu 188,5%.
Nessa entrevista ao Sul21, o professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Valério Pillar, aborda o que tem acontecido no bioma típico do RS e quais as consequências da perda anual de cerca de 125 mil hectares de campos nativos transformados em lavoura ou silvicultura. Efeitos inclusive na produção pecuária, que tem perdido cada vez mais espaço.
“A economia, dizem, se beneficia, dependendo de como se mede esse ganho econômico, mas se perde também nos serviços ecossistêmicos, que são os benefícios que a natureza oferece e que vão além da produção de alimentos. Então se produz mais grãos, mas se diminui a produção pecuária e de lã. Se produz mais grãos, mas se aumenta a perda de solo por erosão, esse solo acaba nos cursos d’água, assoreando e contaminando os cursos d’água, não só pelos sedimentos, mas também pelos adubos e agrotóxicos, e isso acaba afetando a vida aquática. Então nós perdemos biodiversidade aquática, perdemos biodiversidade que talvez nunca venhamos a conhecer”, explica Pillar.
O professor da UFRGS critica fortemente a omissão da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema), órgão responsável por fiscalizar a preservação do Pampa. A Lei 12.651/2012, conhecida como Lei de Proteção da Vegetação Nativa, estabelece que 20% de cada propriedade deve ser preservada como “reserva legal”. A lei, entretanto, está longe de ser cumprida no RS. Em agosto, o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais (InGá) encaminhou ao Ministério Público Estadual (MPE) denúncia de omissão da Sema na proteção dos campos nativos do bioma Pampa.
“Se a Secretaria se mexesse pra aplicar a lei, essas propriedades deveriam se regularizar e atender aquilo que a lei obriga, que é ou restaurar a reserva legal da propriedade ou compensá-la em outra propriedade”, explica.
Qual a realidade da preservação do Pampa?
Essa negligência geral em relação à conservação dos campos nativos no Sul do Brasil vem já de muito tempo. Ela tem origem numa visão generalizada na sociedade de que áreas onde não há floresta seriam áreas necessariamente degradadas, porque ali deveria haver uma floresta e não há. Essa visão se criou até na educação ambiental, de que a árvore representa a natureza, e não que não represente, mas há outros ecossistemas que também são importantes conservá-los e valorizá-los. E entre eles, os campos nativos têm uma riqueza excepcional de espécies.
Aqui no Rio Grande do Sul, quando os pecuaristas, representados pela Farsul, orientam a preencher o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e declarar campos nativos não como remanescentes de vegetação nativa, mas como área rural consolidada, porque estão sendo usadas na atividade pecuária há tempos, tem esse viés.
Por que não fizeram o mesmo com as florestas, que há séculos são utilizadas de maneira sustentável pra extração de lenha ou moirões pra cerca? As florestas estão no Cadastro Ambiental Rural demarcadas como áreas remanescentes de vegetação nativa. Aqueles poucos que declararam floresta legal o fizeram, mas os campos não, praticamente não há reserva legal em campo nativo no Rio Grande do Sul.
Isso está relacionado com a perda de 125 mil hectares por ano só no bioma Pampa, que no Brasil só existe no Rio Grande do Sul. São 125 mil hectares de campos nativos que são transformados em lavoura ou silvicultura por ano. Imagina se fossem 125 mil hectares de florestas, será que já não teriam autoridades e a população com campanha “salvem as florestas do Pampa”?
E por que não temos campanha pra salvar os campos nativos do Pampa?
Não temos esse movimento, ninguém se importa. As autoridades não se importam, a começar pelos pecuaristas que não se importam. A base da pecuária de cria são os campos nativos. É um serviço ambiental oferecido pela natureza que permite a produção de carne de alta qualidade, desde que seja possível o manejo adequado dessas áreas. Bem ou mal, a pecuária em campo nativo tem preservado a biodiversidade. Esses mesmos pecuaristas que têm esse benefício, acham que esses campos produzem pouco, então há uma pressão para que essas áreas sejam transformadas em lavouras e silvicultura. É uma pressão econômica pra melhoria de renda, enquanto há opções de melhoria de renda simplesmente com o manejo dos campos nativos, preservando a biodiversidade. Nem os 20% que a lei obriga de reserva legal tem sido atendido.
Por que a soja tem sido a grande responsável pela transformação dos campos nativos em lavouras?
A soja tem sido há algumas décadas o motor dessas transformações. Teve um período, em 2005 e 2006, que a silvicultura teve grande expansão, mas hoje já não é mais tão interessante para os proprietários. O arroz foi há muito mais tempo, mas o arroz tem uma grande limitação que são as várzeas, e as várzeas praticamente já se esgotaram no Rio Grande do Sul, então não há tantas possibilidades para expansão da lavoura de arroz como havia antes. Agora pra soja ainda há áreas de campos nativos, em algumas regiões com solos adequados e que logo serão convertidos a continuar a inação do poder público.
Cada novo recorde da safra de soja costuma ser comemorado, mas o que estamos perdendo de biodiversidade em nome desse benefício econômico?
A produção agrícola de grãos é importante. Nós consumimos grãos, então não é que a agricultura não tenha seu espaço no Rio Grande do Sul e no bioma Pampa, são solos adequados à agricultura, o clima ainda permite a produção agrícola. Então a questão não é essa, não é que a agricultura não tenha que ter seu espaço, a questão é a escala com que esse processo tem acontecido. Regiões inteiras têm se transformado, fazendas inteiras têm se transformado pela conversão de campos nativos, altamente biodiversos.
Fazendas inteiras são transformadas em lavouras e aí se perde, inclusive, o benefício da diversificação da produção agrícola. A pecuária perde tanto espaço que ela se inviabiliza. Mesmo em áreas agrícolas em que seja interessante a criação de animais pra abate, as regiões de cria são de campo nativo, e esse campos estão desaparecendo, então estão diminuindo as áreas de produção pecuária extensiva, pra cria, e isso acaba sendo um problema.
Então nós ganhamos produção de grãos para exportação. A economia, dizem, se beneficia, dependendo de como se mede esse ganho econômico, mas se perde também nos serviços ecossistêmicos, que são os benefícios que a natureza oferece e que vão além da produção de alimentos. Então se produz mais grãos, mas se diminui a produção pecuária e de lã. Se produz mais grãos, mas se aumenta a perda de solo por erosão, esse solo acaba nos cursos d’água, assoreando e contaminando os cursos d’água, não só pelos sedimentos, mas também pelos adubos e agrotóxicos, e isso acaba afetando a vida aquática. Então nós perdemos biodiversidade aquática, perdemos biodiversidade que talvez nunca venhamos a conhecer.
Nos levantamentos dos nossos grupos de pesquisa, frequentemente são encontradas espécies que nunca haviam sido descritas pela ciência, ou seja, há espécies ainda por serem descobertas que talvez nunca venham a ser descobertas porque se extinguirão antes. É algo assustador. Estamos perdendo biodiversidade antes mesmo de conhecê-la.
Então é isso que se perde, se perde qualidade de vida, paisagens agradáveis e atrativas com potencial turístico estão se perdendo. A economia no geral perde, porque perde as possibilidades de diversificação, porque cada vez fica mais focada na agricultura e, na agricultura, numa cultura. Até o arroz está perdendo área, e é um alimento de primeira necessidade.
É um erro antigo apostar na monocultura…
Os agrônomos aprendem nas escolas de agronomia que devemos diversificar a produção agrícola, não cultivar a mesma coisa todos os anos na mesma área. Quem faz isso hoje em dia, com o preço da soja?
Os bancos financiam a monocultura, o poder público coloca restrições… mesmo áreas já convertidas poderiam ser mais “amigáveis” com a biodiversidade, mantendo as beiras de lavouras com plantas nativas, mantendo as faixas de domínio das rodovias com vegetação nativa.. mas não, hoje até as faixas de domínio das rodovias vêm sendo convertidas, ilegalmente porque são terras públicas.
As regiões classificadas em situação péssima ou ruim, ainda podem ser recuperadas ou não há mais volta?
As regiões classificadas como em péssima situação é que a proporção de vegetação nativa de campo remanescente é muito baixa. Têm municípios que chegam a 6%, a 3%. Não permite nem que tenha 20% das propriedades com vegetação nativa preservada, que é o que a lei diz. A Lei de Proteção da Vegetação Nativa, que era denominada de Código Florestal até 2012, deixa clara que todos os tipos de vegetação nativa estão protegidos por essa lei. E um dos artigos dessa lei obriga que toda propriedade tem que delimitar uma área chamada de “reserva legal”, e a reserva legal fora da Amazônia corresponde a, no mínimo, 20% da propriedade com a vegetação nativa preservada. Nem isso nós temos em muitas propriedades no Rio Grande do Sul e no bioma Pampa.
Nesses municípios que estão em situação péssima, se o órgão ambiental que é a Secretaria Estadual do Meio Ambiente se mexesse pra aplicar a lei, essas propriedades deveriam se regularizar e atender aquilo que a lei obriga, que é ou restaurar a reserva legal da propriedade ou compensá-la em outra propriedade. Ambas as opções melhorariam a situação.
Pesquisadores classificam os municípios conforme a perda histórica estimada de campos originais: péssima (0 a 25%); ruim (26 a 50%); e regular (acima de 50%). (Foto: MapBiomas)
Então é possível haver um restauro?
Teoricamente sim, mas é muito difícil. Não é fácil restaurar campo nativo. Começa pela não disponibilidade de sementes. Se chegares no comércio e pedir sementes de espécies nativa de campo pra restaurar uma área, não existe à venda. Não há um mercado de sementes, então começa por aí a dificuldade de restaurar.
Tem outras técnicas que não dependem de sementes, mas dependem de áreas de campo nativo que podem fornecer feno, e aí esse feno é transportado pra área que está em restauração. É um processo muito caro. Então é preferível que se evite a conversão do que esse proprietário ter que restaurar, porque vai ser muito caro. Mas é possível, é algo que deveria ser buscado, e a lei obriga ou a restaurar, ou compensar, por meio de um mecanismo de cota de reserva ambiental — aquele proprietário que precisa compensar a reserva legal compra um título de outro proprietário que dispõe de vegetação nativa preservada.
Esse mecanismos é interessante porque é um mercado de reserva legal. Aqueles proprietários que preservaram a vegetação nativa, aquilo que ultrapassar 20% ele pode arrendar para outro proprietário que tem déficit de reserva legal na sua propriedade. A lei é frouxa nesse sentido porque permite que a compensação possa ser feita em qualquer município do bioma, não precisa ser na mesma bacia hidrográfica, o que é lamentável. Mas nem isso a Secretaria Estadual do Meio Ambiente está fazendo.
Em quais regiões do RS esse processo tem sido mais acelerado?
As regiões onde a conversão tem sido mais rápida, onde estamos perdendo mais vegetação nativa campestre do bioma Pampa, são municípios da Campanha, em geral, como São Gabriel, em processo acelerado de conversão dos campos nativos em lavouras. Nesses municípios a ação deveria ser estancar essa perda, já perdemos muito e não podemos perder mais. As áreas que já foram convertidas pra produção agrícola já são suficientes pra manter o nível de produção, sem falar nas possibilidades de aumento de produtividade nas mesmas áreas de cultivo. Os proprietários têm declarado como “área rural consolidada” achando que isto os vai isentar de delimitar a reserva legal. Mas isso não tá na lei. O fato de declarar “área rural consolidada” não isenta de delimitar reserva legal.
Qual o futuro do Pampa se as coisas continuarem assim?
Como está indo, vamos ter, em algumas décadas, uma situação na Campanha parecida com aquela que temos em municípios do Planalto Médio, uma situação péssima com proporção muita baixa de remanescentes de campos. Quais campos vão ser preservados? Aqueles rochosos, em que é impraticável a agricultura intensiva sobre essas áreas. Se bem quê, com algumas técnicas, áreas com solo raso têm sido usadas pra cultivo, áreas frágeis que não deveriam ser usadas pra cultivo mas são, inclusive com destruição de afloramentos rochosos. Isso se vê pelo Rio Grande do Sul, com essa ausência de fiscalização, essa omissão dos órgãos ambientais que deveriam fiscalizar e impor a lei.
A Secretaria Estadual do Meio Ambiente se omite na análise do Cadastro Ambiental Rural. O cadastro existe desde a promulgação da lei, mas foi estabelecido em 2014 ou 2015 e, desde então, a Secretaria deveria analisar o cadastro, porque o cadastro é autodeclaratório. A Secretaria é o órgão ambiental que deve analisar o cadastro e aprovar ou não. Em muitos cadastros, diria que na maior parte dos cadastros no bioma Pampa, não há declaração de reserva legal. E isso é irregular. A Secretaria deveria apontar os cadastros irregulares e exigir que os proprietários retificassem, e isso não está sendo feito.
Então o futuro é esse… a continuar nesse ritmo de 125 mil hectares por ano, em alguns anos esse processo se acelera em função do preço da soja, dos incentivos e do clima. A sequência de anos favoráveis à colheita faz com que mais áreas sejam convertidas. E como frequentemente temos secas na região da Campanha, áreas que muitas vezes são em solos que não são os mais adequados pro cultivo, estão fora das regiões mais favoráveis pro cultivo de soja, acabam sendo abandonadas e degradadas. É um processo de conversão pra cultivo durante um tempo e depois abandono. Acabam como campos degradados.