Por: Vitor Necchi | 08 Fevereiro 2017
O geógrafo Roberto Verdum tem intimidade com o bioma Pampa. Começou a pesquisá-lo em 1985, no período em que cursava a graduação e era bolsista de iniciação científica. Em mais de três décadas, vem acompanhando as transformações da região, atento não apenas às questões geográficas, mas também às culturais, por se tratar de uma área determinante para a constituição da identidade dos povos que habitam o Pampa e, em sentido mais amplo, o próprio Rio Grande do Sul.
Nos últimos anos, a imprensa tem noticiado sobre a desertificação do Pampa. Verdum ressalta, no entanto, que o termo está equivocado, pois deserto pressupõe aridez. “No deserto tem que chover em uma faixa de 250 mm por ano. No Rio Grande do Sul, sobretudo nessa região, giramos em torno de 1.400 mm por ano. Deserto não é”, afirma em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line. A descrição correta do fenômeno refere-se a um processo de arenização, mas isso não é preocupante. O pesquisador explica que as manchas de areia observadas hoje são resquícios de uma história que remonta a no mínimo 4 mil anos, 5 mil anos.
A preocupação relativa ao Pampa provém de outra situação. A soja foi introduzida de uma forma muito forte no região: “Nunca a tínhamos visto em áreas tradicionalmente de pecuária, e agora os cultivos estão entrando a partir da monocultura”. O geógrafo afirma que não há nenhuma pesquisa sobre o tema, mas essas monoculturas são desenvolvidas à base de agrotóxicos. Assim, questiona: “Como estão as condições das águas do bioma Pampa? Não saberia dizer, porque não há um controle efetivo por parte do Estado. Acredito que aí também esteja havendo um processo de contaminação”.
A situação é preocupante porque o bioma Pampa guarda o aquífero Guarani, um grande reservatório subterrâneo de água de alta qualidade. “Por desconhecimento, estamos contaminando essa água a partir dos cultivos. É de extrema urgência se controlar essa possível contaminação da água”, garante.
Roberto Verdum | Foto: Arquivo pessoal
Roberto Verdum é licenciado e bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, mestre e doutor em Géographie et Aménagement e pela Université de Toulouse Le Mirail, França. É professor do Departamento de Geografia e dos Programas de Pós-graduação em Geografia e Desenvolvimento Rural da UFRGS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é o bioma Pampa?
Roberto Verdum - Por mais que pareçam bem claro os seus limites, se olhar os documentos que circulam nas fontes bibliográficas e também na própria internet, percebe-se que há limites variáveis, pois dependem dos critérios adotados para definição. Por exemplo, se pegarmos a classificação que foi proposta pela Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, observa-se que o Rio Grande do Sul está dividido em dois grandes biomas. Quando se fala bioma, bio está relacionado a questões botânicas e zoológicas.
O termo bioma tem esta caracterização que é essencialmente biológica. Se pegarmos o exemplo da cartografia feita pela Fundação Zoobotânica, observa-se que o bioma Pampa, por esse viés sobretudo biológico, abrange uma faixa do centro ao sul do estado, ou seja, a metade sul do Rio Grande do Sul, desde o litoral, a leste, até a fronteira com a Argentina e o Uruguai, a oeste. Já o bioma situado na metade norte do estado, a Mata Atlântica, abrange uma faixa que se inicia também no litoral até a fronteira com a Argentina, a oeste. Ou seja, o Rio Grande do Sul pode ser dividido essencialmente por esses dois biomas, um ao sul (Pampa) e outro ao norte (Mata Atlântica).
Quando a fundação lançou o mapa, se discutiu muito nas áreas da geografia, das próprias ciências sociais, da história. Ele causou muita polêmica porque, para alguns pesquisadores, falava-se do Pampa, e não do bioma Pampa, que é uma denominação muito mais recente e está associada à cartografia da Fundação Zoobotânica. Quando se falava Pampa, estava relacionado com essa unidade chamada Campanha, no Rio Grande do Sul. Então tem uma identidade mais cultural e socioeconômica, que repercute do outro lado, do ponto de vista do zoneamento tanto no Uruguai, quanto na Argentina. Agora mesmo estamos com um projeto, com colegas da Universidade Nacional de Entre Ríos, que estaria dentro do bioma Pampa na Argentina, e um dos objetivos que estamos buscando com este acordo é definir, do ponto de vista socioeconômico e cultural, o que seria o Pampa. De repente, adotamos outro critério.
É importante esclarecer que quando se fala em bioma, estamos levando em consideração, sobretudo, aspectos de fauna e flora, e não necessariamente cultural. A cartografia ou a regionalização dessas áreas são diferentes.
IHU On-Line - Como o Pampa é uma denominação muito ligada à identidade dos gaúchos por valores culturais, é uma palavra polissêmica. No imaginário popular, o Pampa é muito amplo.
Roberto Verdum - Exato. Se formos buscar aspectos socioeconômicos, e isso repercute na própria constituição de uma cultura, quando perguntamos genericamente para uma pessoa o que é o Pampa, do ponto de vista da produção agrícola é a pecuária. Associa-se historicamente à pecuária bovina e ovina. Tem esta identidade muito forte. Incluir toda a faixa que denominamos de Planície Costeira, dentro da perspectiva de uma unidade conhecida como Pampa, o que causou polêmica, tem outros aspectos envolvidos, sobretudo nas questões socioeconômicas. Mesmo que este modelo de produção de pecuária extensiva também alcance esta unidade da Planície Costeira, um modelo que se reproduz sobretudo assentado na história de ocupação dos portugueses e depois também a questão das Missões, o gado, há todo um contexto histórico que explica porque a pecuária se caracterizou como modelo produtivo dessa área.
IHU On-Line - Nessa região, ocorrem processos de arenização. Dede quando esse fenômeno ocorre e por quê?
Roberto Verdum - A ocorrência da arenização está em uma escala geológica, e não em uma escala histórica e humana. A tese do meu grupo iniciou-se nos anos 1980, com o trabalho e a pesquisa da professora Dirce Suertegaray, em Quaraí. A tese dela em Geografia, defendida na Universidade de São Paulo, a partir de indicadores de solo e rocha, de geomorfologia, ou seja, a forma do relevo, identificou que esses processos estão muito além de uma intervenção essencialmente humana, e isso nos coloca em uma história que vai a no mínimo 4 mil anos, 5 mil anos. Eram áreas onde o clima era muito mais seco do que o atual. O clima que temos hoje, úmido, estações de verão e de inverno relativamente bem definidas, isso vem em uma escala de tempo de 10 mil anos para cá, com possíveis variações. Em torno de 18 mil, 20 mil anos atrás, havia um clima muito mais seco, um semiárido, como temos no nordeste brasileiro hoje. Essas manchas de areia eram muito mais densas. A cobertura vegetal característica do Pampa é muito jovem e adaptada a essas duas transições, tanto é que estudos de colegas da Biologia e da Botânica que vieram trabalhar conosco mostram que a vegetação atual do bioma Pampa tem uns 10 mil anos. Estão adaptadas a climas mais secos do que o atual.
Podemos dizer que o processo de arenização é de um tempo passado. Com a umidificação do clima de lá para cá, a tendência é a expansão da cobertura vegetal. O que vemos hoje – esta é a tese – são resquícios desse tempo passado, mais seco e frio. Há uma grande polêmica, se essas manchas vão aumentar. Estamos acompanhando desde a década de 1980, e essas manchas de areia estão restritas a um espaço de 12 municípios do Pampa.
Em 2001, fizemos um atlas da arenização. Nós mapeamos manchas consolidadas, visivelmente em contraste na imagem de satélite, até mesmo no Google é possível visualizar as principais manchas, que totalizam em torno de 4 mil hectares. Isso não dá 1% do bioma Pampa. São manchas muito localizadas. O aumento e diminuição dessas áreas está muito relacionado aos anos serem mais secos, quando elas aumentam um pouco, ou mais úmidos, quando diminuem, porque dá possibilidade de a vegetação naturalmente ir recobrindo essas areias.
É uma briga constante entre a vegetação herbácea, que é muito rica no bioma Pampa – embora visualmente seja homegênea –, e a areia, que tem uma mobilidade muito grande por causa do vento e da água. Há algumas manchas em solos mais expostos, então, no total, podemos pensar em áreas com potencial de areal em torno de 6 mil hectares. E assim elas ficam.
O último estudo que fizemos foi de 2005, quando um mestrando fez o levantamento, e a área praticamente se manteve igual. Ela só diminuiu porque em algumas propriedades rurais, até por conta da percepção que as manchas de areia estavam aumentando, eles plantaram eucalipto, achando que poderiam conter o fenômeno. Quando se faz a cartografia pela imagem de satélite, parece que o areal diminuiu, porque tem as árvores em cima, mas se for a campo, percebe-se que tem o areal embaixo.
IHU On-Line - O senhor afirma que o fenômeno da arenização tem milhares de anos, mas a cobertura jornalística gerou no senso comum a impressão que se estava passando por um processo de desertificação do Pampa. Há alguma gravidade nesse fenômeno ou ele é integrado à própria dinâmica do ambiente do Pampa?
Roberto Verdum - Trata-se da segunda alternativa: esse fenômeno é integrado à própria dinâmica do Pampa. É importante fazer uma diferenciação, porque isso sempre gera polêmica. Deserto pressupõe aridez. O próprio conceito de deserto está estritamente ligado a uma condição climática. No deserto, tem que chover em uma faixa de 250 mm por ano. No Rio Grande do Sul, sobretudo nessa região, giramos em torno de 1.400 mm por ano. Deserto não é. No próprio conceito de desertificação há muita mistura. Se pegarmos na essência o conceito que foi forjado no âmbito da Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura], nos anos 1970, quando teve a grande conferência de Nairobi [Conferência das Nações Unidas sobre Desertificação, realizada em 1977, na cidade de Nairóbi, Quênia], e aí se começou a estudar este fenômeno, sobretudo na África.
Desertificação pressupõe escassez hídrica e problema de degradação do solo a partir das atividades humanas. Houve confusão, tentativa de acoplar esse conceito ao processo de arenização, e nós, enquanto pesquisadores, contrapomos porque ao contrário, não é uma questão de escassez hídrica, é a própria água que é um grande vetor de geração dos areais, de erosões lineares, que chamamos de ravinas, de voçorocas. Muitos desses areais estão associados a esses processos de torrencialidade e de geração de erosão. Essa confusão entre desertificação e arenização é muito grande dentro do senso comum, tanto que vamos na região e os proprietários antes falavam em desertos, desertinhos. Hoje raramente falam em desertificação, porque, para eles, é um conceito que ainda não está elaborado, até por conta das pesquisas que nós e outros colegas fizemos, os próprios técnicos agrícolas foram incorporando que não se tratá de deserto, de desertificação, mas arenização. Tem produtores rurais que falam em areal, arenização, então eles já incorporaram também na construção do dia a dia deles.
IHU On-Line - Quais problemas atingem hoje o bioma Pampa?
Roberto Verdum - Na década de 1960, a região Noroeste do estado iniciou a produção de grãos. A partir dos anos 1970, começou a expandir o cultivo para a região do Pampa, até então tradicionalmente ligada à pecuária, em alguns municípios, como Alegrete, São Francisco de Assis, Manoel Viana, Santiago, Maçambará, Itaqui, São Borja, toda essa franja ao sul do Noroeste. Se abrirmos os dados do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], da FEE [Fundação de Economia e Estatística], do censo agropecuário, veremos que até os anos 1960 o que aparecia como produção de grãos era arroz, dentro da planície de inundação, e nas coxilhas, enfim, nos outros relevos, nos outros compartimentos do bioma Pampa. O milho apareceu para alimentação animal e humana, sobretudo animal. Nos anos 1970, começou a aparecer os primeiros cultivos de trigo vindo do Norte, e depois soja. Nesse período, não era o pecuarista que foi produzir soja, nem trigo. Ele arrendou suas terras. As terras arrendadas eram os piores solos, ou solos mais leves, mais arenosos, e se ocorresse a degradação dos solos, aumentaria as manchas de areias.
Esta é uma década marcante para a região, por conta da entrada dos cultivos que até então não se fazia. Sobretudo nesse período, havia pouco cuidado com a proteção do solo. O proprietário arrendava as suas terras, o que era interessante, pois agregaria renda e tornaria produtiva parte da sua área que era quase improdutiva. Muitos dos arrendatários entregavam a área totalmente degradada, do ponto de vista do solo, porque não havia no contrato nenhuma preocupação quanto à conservação. Diferentemente de hoje, quando a maioria dos proprietários tem essa preocupação e exige que o arrendatário entregue a parcela que foi utilizada pelo menos com a cobertura de uma pastagem, com alguma cobertura vegetal.
A partir da década de 1970 até o final dos anos 1980, praticamente 20 anos, tivemos esse processo que se intensificou muito, inclusive algumas manchas de areia se intensificaram ou surgiram. Não apenas as manchas de areia, mas processos erosivos ligados à ação hídrica. Esse é um problema da região, onde as chuvas são muito torrenciais, assim como no Rio Grande do Sul todo. Os temporais destroem o espaço urbano e causam estragos também na área rural, sobretudo naquela região que tem uma fragilidade do solo e de cobertura vegetal muito grande. Isso, inclusive, é outro aspecto que estamos estudando, esses processos erosivos de grande intensidade. Muitos estão ligados não necessariamente apenas ao uso, mas também à torrencialidade das chuvas. Tem dois anos muito marcantes na região, 1983 e 1984. Em meses como maio e junho de 1984, choveu 400 mm, quase um terço da chuva anual. São eventos extremos de precipitação, que na região são desastrosos do ponto de vista humano. Mas esta é a gênese, o processo natural em que ravinas e voçorocas vão aparecer. A erosão de origem hídrica é um problema no bioma Pampa.
Estamos estudando com colegas da França a mudança de matriz econômica da região baseada na atividade pecuária que hoje voltou a produzir soja, e agora mesmo vimos a colheita do trigo em Caçapava, Lavras do Sul, Santana da Boa Vista. Inclusive em municípios do Litoral a soja vem entrando de uma forma muito forte. Nunca a tínhamos visto em áreas tradicionalmente de pecuária, e agora os cultivos estão entrando a partir da monocultura. Não há nenhuma pesquisa para responder concretamente, mas essas monoculturas estão à base de agrotóxicos, então como estão as condições das águas do bioma Pampa? Não saberia dizer, porque não há um controle efetivo por parte do Estado. Acredito que aí também esteja havendo um processo de contaminação.
No mais, eu diria que o mais interessante é que é uma área bem conhecida no âmbito da ciência do Rio Grande do Sul e do Brasil porque o bioma Pampa guarda o chamado aquífero Guarani. É um grande reservatório de água subterrâneo. Estudamos em São Francisco de Assis profundamente a questão dos reservatórios subterrâneos. É um volume de água muito grande, de alta qualidade. Por desconhecimento, estamos contaminando essa água a partir dos cultivos. É de extrema urgência se controlar essa possível contaminação da água, ter um controle no âmbito do Estado, da própria universidade. Esse é um grande problema. E por incrível que pareça, também dependendo do ano, sobretudo ligado ao cultivo de arroz, já que nosso arroz é irrigado.
Também há problemas de escassez, o que gera disputa entre produtores rurais por água. Nós temos relacionado à água uma questão de volume, devido à escassez, mas também, se continuarmos intensificando os cultivos à base de agrotóxicos e fertilizantes, a tendência é a de essa água ser contaminada. Temos observado isso, mas são pouquíssimas, raras as pesquisas sobre isso, e então o campo fica aberto ao que se está fazendo, sem controle do uso de agrotóxicos.
Temos acompanhado trabalhos de campo de orientandos que identificam as principais áreas de erosão. Há aspectos geológicos que se associam com aspectos da natureza propriamente dita, também de uso, e tem este motor que são as chuvas torrenciais. Tudo se combina. Na região, existem erosões de 20, 30, 40 metros de profundidade. Há verdadeiros cânions. Um proprietário relata que a erosão surgiu com o El Niño de 1984. Foram dois anos muito chuvosos. A área já é frágil, do ponto de vista do solo, da rocha, da cobertura vegetal, então a tendência é desencadear este processo naturalmente, e se ainda se coloca intervenção humana que fragiliza a cobertura do solo ou remove o solo para os cultivos, só potencializa o processo.
IHU On-Line - O senhor disse que, a partir dos anos 1970, começa um incremento do cultivo de arroz, soja e milho. Mais recentemente, houve a introdução do cultivo de árvores exóticas. Essa intensa produção reduz o campo nativo. Isso não gera um problema?
Roberto Verdum - Sim. No meu trabalho de tese que realizei nos municípios de São Francisco de Assis e Manoel Viana, avaliei qual era a relação de área de pecuária com cabeças de gado nos anos 1950. Uma relação simples que se faz para ter uma ideia de quantas cabeças há por hectare. A relação estava em 0,6 cabeça por hectare. Com a entrada dos cultivos, há uma redução da área de pecuária. O proprietário deixou o arrendatário que vem sobretudo do norte do Estado. Isso é interessante porque ele traz a sua técnica e seu maquinário do Norte, onde há solos argilosos, muito mais resistentes ao processo de lavrar terra do que no bioma Pampa, onde são solos muito arenosos. Se pegar os dados dos anos 1970, essa relação cabeça por hectare vai a 1,2, praticamente dobrou. Continuou tendo aumento do rebanho e se reduziu a área. Este é um dado que venho verificando e tem se mantido. Há uma gradativa redução da área de pecuária e um confinamento maior do rebanho. Isso também é um elemento de pressão sobre o bioma Pampa.
IHU On-Line - As plantações de árvores exóticas, da maneira como vêm ocorrendo, são uma ameaça de degradação do ambiente? Há parâmetros, controles?
Roberto Verdum - Não há controle. Não há estudos específicos que tenham acompanhado essa expansão. Na região onde iniciou a operação da empresa Stora Enso, na Campanha, depois a Votorantim na porção leste do estado, são pouquíssimos os trabalhos que acompanham o que isso representa para a circulação da fauna e também os problemas relacionados à flora nativa. O eucalipto, enquanto espécie arbórea, tem como uma das suas características a de não favorecer o crescimento do sub-bosque, sobretudo nessa região de cobertura herbácea, por mais que mostrem em imagens “o eucalipto tendo uma vegetação que se desenvolve abaixo do seu dossel”. São apenas imagens, mas não é o que visualizamos no Pampa. Lá a vegetação herbácea predomina, então a própria resina contida nas folhas do eucalipto não permite o desenvolvimento dos sub-bosques que seriam, sobretudo, de vegetação herbácea e arbustiva. Somente aí, já foram em torno de 50 mil hectares, onde a vegetação herbácea foi extinta, pelo plantio do eucalipto como uma monocultura, para fins industriais.
Para o desenvolvimento desse cultivo, também tem que utilizar pesticidas para formigas, grande inimiga que ataca diretamente as áreas de plantio, e claro que isso afeta diretamente também a circulação da água. Há controle sobre isso? Não conheço nenhum estudo que tenha se controlado o possível potencial de poluição. Nós vamos implementando novos modelos de produção e há pouquíssimos trabalhos de acompanhamento. No Uruguai, há trabalhos que mostram a interferência no freático, o rebaixamento generalizado dos lençóis, porque a árvore tem crescimento rápido, com corte em cinco ou seis anos, e consome muita água e nutrientes para gerar sua fotossíntese. O rebaixamento é polêmico, mas existe sim, tanto que essas árvores são usadas para secar áreas úmidas.
Do ponto de vista conservacionista, estávamos muito preocupados com o bioma Mata Atlântica, que tem várias reservas e unidades de conservação. No bioma Pampa, existem duas: o Parque Estadual do Espinilho, em Uruguaiana, que é estadual, e a Área de Proteção Ambiental do Ibirapuitã, que é federal, uma herança da ECO-92 [Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento]. Claro, nessas duas áreas, sobretudo a do Ibirapuitã, o cultivo é muito restrito, porque os solos são muito rasos, muito pedregosos, então o cultivo não entra por uma limitação natural. Elas se preservaram muito por esse condicionante natural, isto é, solos rasos impróprios aos cultivos, mas ocupados com a pecuária extensiva. A não ser no curso médio-inferior do rio Ibirapuitã, onde há a produção do arroz irrigado, no interior da APA. Mesmo que pelas imagens de satélite se visualiza essa APA como uma área bem conservada no bioma Pampa, em campo os limites dela não são encontrados, há somente algumas placas mal conservadas e produtores rurais que têm dificuldades de defini-los com precisão. A gestora desta APA, a engenheira agrônoma Eridiane Lopes da Silva, e o seu Conselho Deliberativo têm dificuldades administrativas e técnicas para tratarem de uma área extensa como essa, de 316.790,42 hectares, ou seja, avaliamos como problemática a forma como é tratada a conservação do bioma Pampa, isto é, ela é extremamente restrita, ainda.
Nós temos pesquisas de mestrado feitas pelo geógrafo da Sema [Secretaria Estadual do Meio Ambiente] Ailton Mandião e pelo cientista social Eri Bellanca, que trabalharam no areal de Quaraí, que são bem emblemáticas. Dentro do areal, encontramos oficinas líticas dos nossos antepassados, cerâmicas datadas entre 2.500 e 4.000 anos. Esse material está aparecendo em função do processo erosivo da área. Foi coberto pela areia. Colegas da Biologia, Elisete Freitas e Luis Alberto Pires da Silva, têm trabalhado conosco e encontrado espécies raras de animais e plantas. Este colega identificou um gafanhoto que tem a cor da areia, sua carapaça é como se fosse grãos de areia. Ele copia o meio para se proteger e pegar suas presas. Existem plantas e animais muito adaptados a essa mancha de areia. Isso só reforça nossa tese da presença dos areais em tempos geológicos. A partir dessa pesquisa de mestrado, nós propusemos que o areal de Quaraí fosse transformado em uma unidade de conservação federal ou estadual. Devem ter achado que estávamos loucos, pois é uma área não produtiva. O que nós valorizamos é o aspecto da biodiversidade associada a esses areais, que é muito específica, por outro lado, a presença do material de nossos antepassados. É interessante, quando circulamos por esses areais sempre encontramos material lítico. Machado, raspador, cortador, boleadeira. Há uma riqueza muito grande de vestígios culturais de nossos antepassados.
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Falta controle sobre a poluição por agrotóxicos das águas do Pampa. Entrevista especial com Roberto Verdum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU