Segundo o pesquisador, o avanço da agricultura sobre o tradicional bioma gaúcho é uma ameaça e, de todas as culturas, a silvicultura é que tem acarretado maiores danos
Numa primeira vista, pode parecer contraditório. Enquanto as regiões Centro, Centro-Oeste e Norte do Brasil, áreas dos biomas amazônico e pantaneiro, sofrem um dos seus piores anos em decorrência das queimadas, a região Sul, em grande parte constituída pelo bioma Pampa, é ameaçada justamente pelo reflorestamento. O problema é que as árvores que são plantadas não são somente para ‘fazer floresta’, mas sim para produzir madeira e celulose. “A redução de áreas de campo no bioma Pampa está relacionada à expansão da agricultura, principalmente soja e silvicultura”, resume Heinrich Hasenack, que pesquisa a área. “No bioma Pampa as queimadas são um problema menor. Praticamente não há queima do campo nativo”, acrescenta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador explica que há perda da vegetação natural para o plantio de qualquer cultura, mas na silvicultura o campo do Pampa é ainda mais modificado. “Isso não remove apenas as espécies da flora campestre, mas interfere também nas populações animais presentes no bioma, tanto de insetos polinizadores, os quais também servem de alimentos para aves, e até de peixes, que vivem em interação direta ou indireta com a vegetação campestre e dependem dela”, detalha.
Hasenack ainda explica que na silvicultura há a inserção de espécies não nativas, também consideradas invasoras. “A espécies usadas na silvicultura no bioma Pampa são o eucalipto, o pinus e a acácia, dominando a primeira. Dessas espécies, o pinus é considerado uma espécie invasora, cuja consequência maior é observada no litoral”, observa. Para ele, é emergente frear essa degradação, pois, em bem pouco tempo, o Pampa pode não existir mais. “É a sociedade como um todo entender que há locais onde necessitamos cultivar e outros locais que devemos conservar para a manutenção da biodiversidade”, enfatiza.
Heinrich Hasenack (Foto: Plataforma Lattes)
Heinrich Hasenack possui bacharelado e licenciatura em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestrado em Ecologia e doutorado em Agronegócios, ambos pela UFRGS. Atualmente é professor adjunto da UFRGS. Entre os projetos de pesquisa que desenvolve, coordena a Atualização do Mapa de Cobertura Vegetal do Estado do Rio Grande do Sul.
IHU On-Line – Estudo da Rede MapBiomas aponta que o bioma Pampa do RS perdeu 21% da vegetação nos últimos 34 anos. A que se deve essa perda?
Heinrich Hasenack – A redução de áreas de campo no bioma Pampa está relacionada à expansão da agricultura, principalmente soja e silvicultura.
Biomas brasileiros (Fonte: Sistema Nacional de Florestas)
IHU On-Line – É possível mensurar os impactos dessa perda de vegetação no bioma? Quais as consequências para as demais formas de vida, de fauna a flora, do bioma?
Heinrich Hasenack – A perda da cobertura vegetal original para cultivos agrícolas anuais e para silvicultura acarreta a remoção do campo nativo para esses plantios. Isso não remove apenas as espécies da flora campestre, mas interfere também nas populações animais presentes no bioma, tanto de insetos polinizadores, os quais também servem de alimentos para aves, e até de peixes, que vivem em interação direta ou indireta com a vegetação campestre e dependem dela.
O bioma Pampa apresenta diferentes regiões ecológicas campestres, as quais estão associadas às condições climáticas localmente influenciadas pelo relevo e pelos solos presentes no bioma. E, por várias razões, algumas dessas regiões têm sido mais convertidas para agricultura do que outras.
IHU On-Line – É possível recuperar essa perda? De que forma?
Heinrich Hasenack – É importante reconhecer que a agricultura e a conservação são importantes e compatíveis. E a legislação ambiental define o mínimo a ser conservado em áreas de uso agrícola. O primeiro passo, portanto, é garantir que essa legislação seja seguida por todos que utilizam a terra para algum uso.
Ao mesmo tempo, boas práticas no uso da terra também prestam, entre outros serviços ambientais, para conservação do solo e da água. Essas ações podem ser mais eficientes com assistência técnica adequada. É possível usar melhor as áreas já convertidas para agricultura, sem a necessidade de expandir a soja para áreas menos recomendáveis ao seu cultivo.
Em paralelo, ações de restauração, levando em consideração as características das diferentes tipologias campestres, podem contribuir para recuperar áreas de campo degradadas pelo excesso de pastoreio e pelo uso agrícola inadequado. Nesse contexto, áreas de cultivo abandonadas, em áreas originalmente campestres, são utilizadas por espécies invasoras oportunistas para ocupar essas áreas antes das espécies nativas. Estudos voltados ao controle dessas invasoras exóticas, como o capim-annoni (Eragrostis plana) e o tojo (Ulex europaeus), por exemplo, podem ser excelente contribuição não apenas do ponto de vista da restauração como também para a recuperação dos campos nativos para uso agropecuário.
De tão disseminado, para muitos o capim-annoni é confundido como uma espécie nativa | Foto: epagri
Originário da Inglaterra e parte da Europa, o tojo atinge entre um e três metros de altura, apresentando muitos espinhos | Foto: Wikipédia
IHU On-Line – O mesmo estudo aponta que houve aumento de áreas de florestas plantadas, com vistas à silvicultura. O que são essas florestas e quais os seus impactos no Pampa?
Heinrich Hasenack – As espécies usadas na silvicultura no bioma Pampa são o eucalipto, o pinus e a acácia, dominando a primeira. Dessas espécies, o pinus é considerado uma espécie invasora, cuja consequência maior é observada no litoral. É o exemplo da região de Cidreira e da Lagoa do Peixe (RS).
As florestas plantadas de pinus são uma recorrente no Pampa, mas representam ameaça por serem espécies invasoras | Foto: Fundação Joaquim Nabuco
Do ponto de vista dos plantios, seria desejável tê-los em áreas que originalmente foram floresta, pois, em áreas de silvicultura abandonadas, a vegetação espontânea que recoloniza essas áreas parece ser diferente. E, tal como os cultivos anuais, a silvicultura exige a remoção total da vegetação original. Tem-se de positivo no Rio Grande do Sul que o licenciamento da atividade deve atender à legislação, o que tem sido feito pelas empresas envolvidas.
Existem alguns projetos de pesquisa envolvendo o efeito da silvicultura sobre a diversidade de aves, outros acompanhando a sucessão vegetal em áreas de silvicultura abandonadas. O zoneamento da silvicultura também levou muitos pesquisadores a estudar os efeitos das mudanças provocadas pelos plantios arbóreos, o que poderá ser bastante útil em tomadas de decisão futuras sobre o tema.
IHU On-Line – Quais são as maiores ameaças ao bioma Pampa na atualidade?
Heinrich Hasenack – O avanço não planejado da agricultura e o interesse de uma parte dos produtores rurais no Pampa não reconhecer a necessidade de delimitação da reserva legal no bioma, entendendo que se trata de área não mais nativa porque vem sendo usada há várias décadas na criação extensiva do gado bovino. Apesar de estar sendo usada para tal fim, ainda predomina ali a vegetação campestre nativa, portanto ela deveria ser delimitada e registrada no Cadastro Ambiental Rural - CAR.
E, mesmo sendo registrada, a legislação não exclui essas áreas de uso. Ela permite que se faça uso dessas áreas, desde que mantendo a vegetação original, exatamente o que já vem sendo feito. Portanto não haverá perda para o produtor, que poderá continuar a fazer uso da terra com pecuária.
IHU On-Line – Quais os desafios para aliar a atividade agrícola à preservação do Pampa?
Heinrich Hasenack – É a sociedade como um todo entender que há locais onde necessitamos cultivar e outros locais que devemos conservar para a manutenção da biodiversidade. Ambas devem acontecer no mesmo território e há espaço para que isso seja efetivado.
Entretanto, no Pampa temos um potencial enorme de fazer isso acontecer também na propriedade rural. O produtor que faz o planejamento da sua propriedade levando em consideração o potencial natural de sua terra, e produz seguindo boas práticas de conservação, está fazendo sua parte. O bioma Pampa só se manterá campestre se houver o gado, pois é ele que mantém a vegetação herbácea. Sem o gado, o campo, em maior ou menor grau, se transformará em áreas arbustivas ou até florestais em poucas décadas.
O ideal é que se tivesse não um zoneamento setorial por atividade, como o da silvicultura, mas que se tivesse um planejamento territorial que contemplasse não apenas a agropecuária, mas o território como um todo. Em parte, o Zoneamento Ecológico Econômico - ZEE teria esse propósito.
IHU On-Line – As queimadas também são uma realidade no Pampa? Que relações podemos estabelecer entre as queimadas que ocorrem no Pantanal e na Amazônia com as que ocorrem no Pampa?
Heinrich Hasenack – No bioma Pampa as queimadas são um problema menor. Praticamente não há queima do campo nativo, como ocorre de forma mais comum nos Campos de Cima da Serra. A professora Ilsi Boldrini [titular no Departamento de Botânica da UFRGS] revelou, em comunicação pessoal com ela, que a vegetação campestre do bioma Pampa chega no inverno com pouca biomassa, pois foi consumida pelo gado, cuja lotação é, via de regra, maior do que aquela dos Campos de Cima da Serra.
IHU On-Line – Como avalia a atual gestão dos governos federal e estadual no que diz respeito a ações ambientais que visem assegurar a preservação do Pampa?
Heinrich Hasenack – A condução da gestão ambiental em nível federal é um desastre. Sequer merece comentários.
No estado do Rio Grande do Sul, percebo uma receptividade muito grande dos técnicos da Secretaria do Meio Ambiente - Sema e da Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luis Roessler - Fepam em utilizar resultados de pesquisa das universidades e incorporar esse conhecimento para subsidiar tecnicamente seus trabalhos. Já do lado político, entendo que, como acontece em outros temas, deveríamos discutir os dados tanto ambientais como de produção de forma mais integrada.
IHU On-Line – Quais os maiores desafios para a preservação do Pampa? E como superar esses desafios?
Heinrich Hasenack – Precisamos buscar a sustentabilidade na prática, não na retórica. Para isso é necessário buscar conciliar a atividade econômica com a conservação ambiental. E isso significa que devemos planejar no longo prazo, pensando no todo, não cada um vendo apenas a sua atividade.