Por: João Vitor Santos | 23 Março 2017
Quando se fala em pampa, uma imagem vem à cabeça: campos, numa vista larga de se perder no horizonte, e gado sobre ele. Durante muito tempo, essa era mesmo a paisagem do bioma. Entretanto, os interesses econômicos estão mudando e ameaçando essa paisagem. Segundo o professor do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande – FURG Marcelo Dutra da Silva, “há sempre uma nova onda para ocupar essas terras”. Problema é que essas “ondas” implicam necessariamente em transformar o bioma. Primeiro foi a pressão para o plantio de eucalipto, e agora soja. “É cultural, temos essa ideia de que o campo do Pampa é algo vazio e que precisa ser ocupado”, destaca Silva, durante sua conferência Pampa: um bioma em transformação, realizada na noite de terça-feira, 21-3, dentro do ciclo de palestras Os biomas brasileiros e a teia da vida, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O ciclo segue até junho.
O professor afirma que a maior ameaça é a transformação do campo em lavoura. “O campo tem tanta diversidade quanto uma floresta, mas é um bioma diferente. Aqui, nossa Amazônia é o campo”, exemplifica. Quando o substrato característico do Pampa é revolvido, essa cobertura jamais será a mesma e afetará todo o ecossistema. “Vemos áreas em que antes havia campo e pouco gado em cima dele. Agora, se transformaram em lavouras de soja. Foi assim com o avanço do eucalipto, que fracassou, e agora os investimentos se voltam para soja”, explica. E mesmo que, em determinadas épocas do ano, se volte a ter gado e características de campo, o bioma não se reconstitui. “Até porque o proprietário passa a plantar ali espécies de forrageiras, um cultivo de pastagem que não é natural do Pampa”, completa.
Silva complexifica ao problematizar que toda a cultura de soja ainda implica o uso de agrotóxicos. “É o caso do glifosato, para citar um dos mais simples”, diz. O professor ainda destaca que o Pampa é diverso e composto de vários cenários. Mesmo se falarmos em campo, percebe-se que há diferentes tipos de campos no Pampa, que se concentra no Rio Grande do Sul. Até bem pouco tempo, além da criação de gado, plantava-se arroz em determinados campos mais planos e úmidos. Por questões econômicas, os arrozeiros também têm migrado para o cultivo de soja, que ainda avança sobre outros campos que sequer eram usados como lavouras.
Se o arroz não é mais interessante, pior ainda é a situação da pecuária. “Ninguém mais quer manter o gado no campo porque não dá o mesmo retorno para o produtor”, pontua o professor. Assim, essencialmente no que se refere à metade sul do Rio Grande, parece que se está sempre correndo atrás de um novo eldorado. “Com os argumentos de que a metade sul está quebrada, fica-se apostando em novos usos para o Pampa, que acabam dando em nada e degradando a área”. O problema ainda maior é que, segundo Silva, se faz o uso desse bioma sem um planejamento, um zoneamento adequado, apenas com um caráter meramente exploratório da terra. “O Pampa é diverso. São inúmeros ecossistemas, como área mais litorânea e mais próxima de serra, que precisam ser mapeados e conhecidos para se pensar no melhor uso”, destaca o pesquisador, que defende o que chama de zoneamento ecológico.
Marcelo Dutra da Silva | Foto: João Vitor Santos/IHU
Antes de proteger, realmente se faz necessário conhecer o Pampa. Silva explica que num passado distante os campos pampianos vinham evoluindo. Havia a possibilidade de que sua vegetação fosse crescendo, transformando o campo em floresta. “Mas houve a presença humana nesse contexto e os campos do Pampa involuíram e passaram a desenvolver outros tipos de ecossistemas”. Animais, plantas e outras diferentes formas de vida se adaptaram e passaram a viver ali, tendo esse cenário como sua casa.
Num primeiro reflexo, podemos pensar que o ideal para preservar o Pampa seria deixar seus campos intocados. Talvez, protegidos por reservas do Estado. “Mas nosso país não tem tradição nessa gestão das áreas de preservação. Criam-se as reservas, mas não há investimento para manter”, completa o professor, que ainda lembra que a maioria do Pampa gaúcho está em propriedades particulares. Assim, a desapropriação, além de onerosa para o Estado, pode se transformar em infindáveis conflitos. “Depois, ainda pode ocorrer o que vem acontecendo com as reservas da Lagoa do Peixe e do Taim, que são zonas de intensos conflitos”, pontua.
O professor Marcelo Dutra da Silva ainda destaca que mesmo que o Brasil tivesse excelência na gestão de reservas ambientais, o Pampa não estaria seguro. Por uma questão evolutiva e por condições climáticas, um campo pampiano deixado intocado começa a se transformar em floresta. “Já temos a experiência de áreas em que começam a crescer arbustos que podem, até pela proximidade com o bioma Mata Atlântica, se transformar em floresta”, explica. Ou seja, a vida no bioma como é hoje também seria inviabilizada.
Ao longo de toda a palestra, Silva reitera que o Pampa é um bioma muito diverso e defende o zoneamento, não apenas como forma de conhecer, mas também para servir de base e estimular demarcações para usos apropriados das terras. “Nos falta cultura de preservação porque não temos política de conservação, e uma coisa leva a outra”, dispara. Tendo claro o uso consciente da terra, não balizado apenas por critérios econômicos, é possível se pensar num manejo preservacionista do Pampa.
Pode soar estranho aliar os conceitos de preservação e manejo, mas é preciso levar em conta que um campo limpo, sem inferência humana, se transforma em outra coisa. Além disso, como a maioria são terras particulares, os usos econômicos são necessários para subsistência das famílias. “Por isso digo que a criação de reservas não resolve nesse atual cenário. Vamos criar uma e não saberemos fazer a gestão”, argumenta o professor. É assim que Silva chega à formulação da chamada pecuária sustentável como uma das alternativas para preservação.
Segundo o professor, esse manejo preservacionista consiste em povoar as grandes áreas de campo com poucos rebanhos de gado. Com isso, é possível aproveitar a vegetação característica do campo sem a necessidade de plantar pastagens. “Manter o produtor no Pampa criando gado é muito mais barato que criar uma unidade de preservação. É preciso deixar ele lá, com o gado, e fazer com que não seja seduzido pela soja”, defende. A carne produzida nessa pecuária sustentável ainda tem valor agregado, outro padrão, que abastece um mercado diferenciado. “Esse é o nosso grande desafio. É preciso fazer isso em todo Pampa porque, do contrário, nos restará apenas poucas manchas de campo no bioma”, avalia Marcelo Dutra da Silva.
Graduado em Ecologia pela Universidade Católica de Pelotas - UCPel, mestre e doutor em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Agronomia da Universidade Federal de Pelotas - UFPel. É professor do Instituto de Oceanografia - IO e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Gerenciamento Costeiro da Universidade Federal do Rio Grande - FURG. Coordena o Laboratório de Ecologia de Paisagem Costeira - LEPCost.
A discussão promovida pelo IHU sobre os biomas brasileiros gerou um ciclo de estudos que abrange diferentes áreas de conhecimento, em perspectiva transdisciplinar, agregando interesses especialmente dos Programas de Pós-Graduação em Biologia e em Geologia da Unisinos, bem como das disciplinas e atividades acadêmicas voltadas para ética/bioética ambiental, ecologia e sustentabilidade. A programação inclui conferências sobre biomas brasileiros, em articulação com questões de biologia, ecologia, ecologia integral, ética ambiental, ecoteologia, mudanças climáticas; atividades artísticas e culturais; exibição de vídeos sobre os seis principais biomas brasileiros; ciclo de estudo em Educação a distância (EAD); publicação impressa e digital de um número especial da revista IHU On-Line, de Cadernos IHU ideias e Cadernos Teologia Pública, bem como publicação de entrevistas e notícias sobre o mesmo tema no site do IHU.
A programação completa do ciclo pode ser acessada aqui.
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Pecuária sustentável é alternativa para preservação do Pampa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU