03 Agosto 2015
As tradições dos gaúchos (homens do campo) e a moderna tecnologia agropecuária se uniram na Argentina, em uma singular aliança entre pecuaristas e ambientalistas, que busca conservar a biodiversidade das pastagens e melhorar a produtividade e o sabor de sua famosa carne. “Os parques nacionais deixam o homem de fora. Quisemos pensar algo que integrasse o homem, mas também a atividade humana como mais um componente do bioma”, afirmou à IPS Gustavo Marino, da organização Aves Argentinas.
A reportagem é de Fabiana Frayssinet, publicada por Envolverde/IPS, 30-07-2015.
Essa entidade ecológica e a Fundação Vida Silvestre Argentina (FVSA) executam o projeto Pastagens e Savanas do Cone Sul-Americano: Iniciativas Para Sua Conservação na Argentina. “Também vimos que a pastagem do pampa quase não tem terras públicas. Eram todas privadas e necessariamente tínhamos que trabalhar com os produtores”, explicou. O projeto conta com financiamento do Fundo para o Meio Ambiente Mundial, administrado pelo Banco Mundial, e tem apoio do Instituto Nacional de Tecnologia Agropecuária e da Administração de Parques Nacionais, ambos governamentais.
A iniciativa argentina faz parte da Aliança da Pastagem para o Cone Sul, também integrada por Brasil, Paraguai e Uruguai. As pastagens “são o berço de uma cultura representada pelo gaúcho, mas que permeia toda nossa sociedade com comidas como o assado e essa necessidade que têm os argentinos de olhar espaços abertos, o horizonte e o céu”, apontou Marino. E também são o coração econômico argentino.
“As pastagens proporcionam ampla gama de bens e serviços ambientais, além do fornecimento habitual de carne, leite, lã e couro que os sistemas de pastoreio produzem”, observou à IPS o ambientalista Fernando Miñarro, coordenador da FVSA do Programa Pampas e Grande Chaco. Esse bioma, formado por mais de 370 espécies de gramíneas, 400 de aves e uma centena de mamíferos (alguns em extinção, como o veado dos pampas) é fundamental para o equilíbrio ecológico.
“Contribuem para a manutenção da composição de gases na atmosfera, mediante o sequestro de CO2 (dióxido de carbono), e com o controle da erosão dos solos, além de serem fonte de material genético para uma grande quantidade de espécies vegetais e animais que atualmente são a base da alimentação mundial”, detalhou Miñarro. Além disso, têm uma função fundamental como provedores de insetos polinizadores, e de inimigos naturais de numerosas pragas que atacam cultivos, acrescentou.
Segundo Marino, a Argentina perdeu 60% de suas pastagens pelo avanço da agricultura intensiva (soja e arroz, entre outros cultivos), pela expansão do florestamento comercial e pela urbanização em suas partes mais valiosas, por não serem inundáveis, entre outras causas.
A iniciativa envolve 70 produtores e 200 mil hectares, e resgata tradições de pecuária do pampa, aperfeiçoadas com novas técnicas agrárias e conhecimentos ecológicos. Entre elas, Marino citou a rotação do pastoreio para descansar a terra, zoneamento dos potreiros de acordo com o crescimento da pastagem ou a queima “bem praticada”. Essas práticas estimulam espécies de alta qualidade forrageira, explicou.
Também aproveitam quando há inundações, construindo pequenos montes para reter a água por mais tempo. Com isso controlam as plantas exóticas e fazem proliferar pastos macios, de boa qualidade para o gado que, por sua vez, atraem as aves, como a tarambola-dourada-pequena (Pluvialis dominica). “É nosso exemplo mais completo. De um lado pensamos na produção de carne e, por outro, na qualidade do habitat para a tarambola-dourada-pequena”, pontuou Marino sobre o que definiu como “pecuária de precisão”, adaptada a cada tipo de pastagem.
Marino, agrônomo e observador de pássaros, recordou que há oito anos, quando começou o projeto, os pecuaristas os viam como “bicho raro”. Mas, atualmente, cada vez mais buscam sua assessoria porque “lhes propomos encontrar um ponto médio que gere riqueza e ao mesmo tempo mantenha a biodiversidade”, acrescentou. “Ao perder a biodiversidade, o pecuarista tem que comprar forragem ou nutrientes para melhorar a resposta. Os insumos são caros e estão atados aos preços de mercado. Conservar as pastagens naturais beneficia o produtor porque é o capital natural no qual se baseia sua atividade”, destacou Miñarro.
Também se beneficiam com o maior preço que obtêm contando agora, graças às mudanças introduzidas em seus processos produtivos, com o selo ecológico Carne de Pastagem, que lhes abre também mercados de exportação. “O consumidor quer saber cada vez mais como é o sistema de produção e esse selo lhes conta isso: que é carne de pastagem, ecológica, que respeita a biodiversidade e tem o sabor da carne tradicional argentina, que nos fez famosos mundialmente”, afirmou Marino.
Outra renda é obtida com o ecoturismo de observação de pássaros. O programa promove essa atividade, assessora e capacita guias. É o caso de Tiziana Prada, dona da fazenda San Antonio, de 4.918 hectares com cerca de dois mil animais, nos Esteros del Iberá na província de Corrientes, onde é praticada a pecuária sustentável. “Começamos reconstituindo o que eram velhas roças, que passaram a ser novamente campos naturais de pastagens. A fauna começou a aparecer mais, há muitos cervos, voltaram os macacos bugios, os jacarés e muitas espécies de aves” detalhou à IPS.
Isso foi resultado das novas técnicas utilizadas. “Conhecendo os ciclos dos pastos de boa qualidade, estes podem ser manejados segundo os ciclos de crescimento, sempre pensando nos momentos de migração das aves e dos animais que os habitam”, disse Prada. Para essa pecuarista, o cuidado ambiental e manter a produtividade “seguem de mãos dadas”.
Segundo Prada, “o produtor, especialmente agora que a pecuária se move para zonas marginais, onde o ecossistema é muito mais frágil, tem que produzir conservando, porque do contrário seu recurso é destruído. Não seria sustentável no tempo e também acreditamos firmemente que se pode produzir de forma sustentável sem baixar a eficiência”.
Prada entende que o interesse dos pecuaristas cresce porque veem “que há um mercado urbano cada vez maior que exige a conservação do ambiente para que seus filhos tenham um mundo melhor no futuro”. Além disso, por não ser apenas um negócio. “O amor pela natureza é algo que as pessoas do campo têm dentro de si”, ressaltou.
Marino resume esse espírito com uma estrofe da canção El payador perseguido, de Atahualpa Yupanqui, intérprete folclórico argentino: “Estoy con los de mi lao cinchando tuitos parejos, pa hacer nuevo lo que es viejo y verlo al mundo cambiao”, dice l. “É voltar à pecuária tradicional, mas ampliando a tecnologia de hoje”, enfatizou Marino.
Pastagens ameaçadas
A ecorregião do pampa tem 750 mil quilômetros quadrados, que fazem parte de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. A maior parte fica na Argentina, com 460 mil quilômetros quadrados espalhados por várias províncias. Só entre 2002 e 2004, essas províncias perderam nove mil quilômetros quadrados de pastagens, a uma taxa anual superior a 0,5%.
Além disso, a taxa de substituição das pastagens por cultivos agrícolas superava 5% em algumas áreas. Somente um terço dos pampas argentinos estavam cobertos por pastagens naturais ou seminaturais, e uma importante porcentagem deles eram usados para atividade pecuária. No Uruguai e no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul apenas 71% e 48%, respectivamente, eram áreas de pastagens. No Paraguai indica-se que 44% desse bioma permanece em estado natural ou seminatural.
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Aliança pela proteção do pampa argentino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU