14 Junho 2021
"Nada de 'lições aprendidas com a Covid'. O sistema é dos capitais que manobram e a globalização se organiza para reconstruir o que existia antes", escreve Nicoletta Dentico, jornalista e analista sênior de políticas em saúde global e desenvolvimento, que atualmente lidera o programa de saúde global da Sociedade para o Desenvolvimento Internacional (SID), em artigo publicado por Il Manifesto, 13-06-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
"Como o senhor é bom", balbucia o funcionário Fracchia, pouco à vontade na presença do diretor. De fato. Como são bons os líderes do G7 reunidos em Carbis Bay pela primeira vez desde o início da pandemia, para celebrar o retorno dos Estados Unidos à arena global. Como são humanos e magnânimos os seus anúncios, agora que se encontram "unidos e determinados a proteger e promover os nossos valores", nas palavras de Ursula von der Leyen. O empenho de doar um bilhão de vacinas aos países mais vulneráveis no final de 2022 marcou enfaticamente o início do encontro de cúpula, em descontinuidade com o nacionalismo sanitário que os governos do clube, EUA e Grã-Bretanha na liderança, têm exercido obstinadamente. O G7 detém um imenso excedente de vacinas. Quebrou o gelo antes de Joe Biden chegar à Europa, anunciando a doação de 500 milhões de doses "para salvar vidas e acabar com a pandemia". A maior doação individual da história, diz a nota da Casa Branca, talvez para explicar o desejo de se emancipar da síndrome do America First. Nas divulgações relançadas da Cornualha, a imprensa mainstream está animada, no reencontro com o rico grupo do Atlântico de cuja mesa caem as migalhas da vacina, porque “quando vemos pessoas feridas e sofrendo em todas as partes do mundo, fazemos de tudo para ajudá-las”, explicou Biden antes do início do G7.
Mas são, efetivamente, migalhas. Insuficientes e atrasadas. Seriam necessários 11 bilhões de doses até 2021 para vacinar 70% da população com duas doses, enquanto vimos até agora "uma história de desigualdade na vacinação", de acordo com a revista Nature. Um bilhão de doses servem para vacinar 500 milhões de pessoas no hemisfério sul, e em conta-gotas. Biden vai doar 200 milhões em 2021, 300 em 2022. Pouco sabemos sobre os outros sócios do G7, especificamente. Eles não serão a solução.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) lembrou na última quinta-feira que 9 em cada 10 países africanos não vão conseguir alcançar a meta de imunizar 10% da população até setembro. Com 32 milhões de doses administradas, a África vale menos de 1% dos 2,1 bilhões de doses até agora injetadas globalmente: apenas 9,4 milhões (de 1,3 bilhão) de africanos completaram a vacinação. Enquanto isso, a onda viral está em firme retomada no continente africano: 4 países registraram um aumento de 30% nos casos de Covid-19 na última semana, de acordo com o Diretor Regional da OMS, Matshidiso Moeti. A própria empresa criada com o intuito de solidariedade para financiar a produção e distribuição de vacinas aos países pobres, a Covax, um verdadeiro banco de negócios segundo o estudioso Harris Gleckman, "reproduz uma cultura profundamente colonial, que nunca se dignou a perguntar aos governos africanos o que queriam", comentou antes do G7 o Dr. Ayoade Alakija, chefe de uma iniciativa da União Africana para a distribuição de vacinas. Se tivesse feito isso, afirma Alakija, teria descoberto que mesmo na África, pelo menos 70% da população deve ser vacinada para obter alguma garantia de imunidade. A Covax não prevê para os países pobres o que vale para os países ricos. Para os primeiros, a Covax reconhece o direito a uma cobertura máxima de 20%.
Vocês entendem o quão enjoativa é a repetição do slogan "não deixar ninguém para trás", na retórica banal do desenvolvimento sustentável? Biden deixou claro que suas vacinas serão doadas "sem condições". Por experiência, sabemos que as doações são sempre migalhas condicionais. Mais ainda, aquelas da vacina anti-Covid, principal instrumento da geopolítica, mais que de saúde pública. Na última Assembleia Mundial da Saúde, não perdemos a iteração da partitura das delegações que agradeciam à China pelas vacinas doadas (22 milhões de doses) e, ao mesmo tempo, negavam a Taiwan qualquer possibilidade de readmissão como observador na OMS.
Por aliança do G7, a doação das vacinas é um poderoso gesto simbólico contra a crescente influência global da Rússia e da China, o suficiente para implicar condições. E é uma sábia peça da estratégia negociada nos últimos meses pelo G20, a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Comissão Europeia e o Banco Mundial, com a mão da filantropia estratégica, para organizar uma rede de licenças voluntárias e financiar produções deslocalizadas de vacinas, de forma a salvaguardar a propriedade intelectual e afastar o cenário de uma sua suspensão temporária.
O campo de jogo é a troca com a indústria farmacêutica que aparece com coerência marcante pelas propostas do circuito multilateral, incluindo a recém-criada Covid Manufacturing and Supply Chain Taskforce, o resultado da cúpula EUA-UE que articula novos compromissos públicos para incentivar o papel das empresas nas transferências de tecnologia, em troca da proteção dos monopólios da Covid-19, já financiados por impostos nacionais. O pânico das empresas, após o anúncio de Biden a favor da suspensão das patentes, voltou. Analistas do Follow the Money contam como a Pfizer está se esforçando na Holanda para esconder 36 bilhões de dólares das autoridades fiscais. Nada de “lições aprendidas com a Covid”. O sistema é dos capitais que manobram e a globalização se organiza para reconstruir o que existia antes. Deve ser por isso que o outro mantra da comunidade internacional é "building back better".
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Jogo sujo sobre as desigualdades vacinais. Artigo de Nicoletta Dentico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU