05 Abril 2021
A universidade é um dos lugares onde a Igreja constrói o seu pensamento. Se perdermos a universidade “católica”, ficaremos com uma Igreja reacionária e não pensante.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado em Commonweal, 30-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Aqueles que se lembram da polêmica em torno da entrega da Medalha Laetare em 2009 podem estar sentindo um pouco de déjà vu enquanto a Universidade de Notre Dame se aproxima do período de formaturas. Foi quando Mary Ann Glendon, ex-embaixadora dos EUA junto à Santa Sé, deveria receber a homenagem. Mas ela se recusou, citando a polêmica sobre a participação do então presidente Barack Obama. A universidade não entregou o prêmio, e essa também foi a última vez que um presidente dos EUA em exercício visitou a Notre Dame.
Agora, 12 anos depois, as pessoas estão se perguntando: a universidade convidará Joe Biden, apenas o segundo presidente católico da história dos EUA?
O fato de esta ser uma questão digna de notícia mostra o quão facilmente podemos nos distrair da preocupação subjacente mais ampla – a saber, a crise no Ensino Superior católico estadunidense. É um problema maior do que o colapso da credibilidade eclesial e do comportamento dos bispos, e não pode ser atribuído apenas à política.
O número de matrículas de alunos está diminuindo devido a uma série de razões – desde percepções sobre a competitividade acadêmica e a empregabilidade futura até as condições econômicas relacionadas à pandemia. Mesmo as instituições jesuítas, geralmente consideradas o subgrupo mais forte das universidades católicas, estão sentindo a pressão: a John Carroll University, a Marquette University, a St. Louis University e a Wheeling University estão lidando com déficits, cortando pessoal ou fechando programas.
Mas, ao tentar enfrentar esses desafios, muitas instituições estão colocando sua identidade católica em risco – ou seja, posicionando-se e promovendo-se como parte do campo liberal progressista dominante do Ensino Superior. É claro que existem instituições católicas conservadoras que estão redobrando a identidade católica, mesmo que de uma forma que pode ser preocupante.
Mas essas instituições têm uma forte afinidade natural com certos tipos de católicos, assim como um parceiro institucional de apoio no establishment clerical. Você poderia dizer que o Ensino Superior católico liberal-progressista não tem esses “pontos fortes essenciais” e que isso pode ser em parte culpa dele. Ele tem abraçado a desconstrução da hegemonia neoescolástica desde o Vaticano II de forma tão completa que agora suspeita de qualquer institucionalismo católico.
Ele tem sido muito complacente com a política identitária que se enraizou desde os anos 1960. Ele talvez ainda esteja muito intimamente ligado a uma visão do Ensino Superior católico apresentada há mais de 50 anos na Declaração de Land O’Lakes, que está revelando a sua idade. E, em uma espécie de gesto culminante, ele adotou uma visão da Ex Corde Ecclesiae [constituição apostólica de João Paulo II sobre as universidades católicas] de 1990 (e também do Catecismo da Igreja Católica de 1992) baseada na crença de que João Paulo II e o Vaticano estavam impondo um entendimento inaceitavelmente unilateral do catolicismo e da educação católica.
É por isso que expressões como “na tradição católica” ou “na herança católica” entraram na linguagem das declarações de missão de tantas universidades católicas nos últimos anos. “Contratando para a missão” substituiu “contratando católicos”, com resultados mistos. Se “contratar católicos não garante por si só que a missão católica dessas universidades será preservada e alimentada”, como escreveu Peter Steinfels ainda em 2007, o mesmo pode ser dito sobre a contratação para a missão.
Um dos problemas com a contratação para a missão é de que o medo da tirania eclesiástica ainda é muito mais forte do que o medo de ser totalmente posto nas mãos de tecnocratas. A cultura capitalista do modelo universitário atual coloca a Escola de Negócios em um lugar central e terceiriza a responsabilidade moral para os programas de ética empresarial.
Mas mesmo as instituições católicas progressistas liberais tendem a fazer da identidade católica uma questão de marketing e de relações públicas. O que muitas vezes se esquece é que, uma vez que não existe uma Igreja constitucionalmente estabelecida nos EUA (como, por exemplo, na Alemanha), a estrutura educacional e cultural católica ainda depende de um sistema institucional essencialmente eclesial que se beneficia apenas marginalmente do apoio das instituições públicas.
Sabemos da rejeição dos conservadores católicos em relação ao Papa Francisco. Mas há uma incapacidade liberal de entender a mudança que está ocorrendo no nível magisterial da Igreja Católica, onde o discurso está se afastando das “questões pélvicas” rumo às crises provocadas pela globalização e pela corporativização.
Essa mudança afetou apenas tangencialmente a academia teológica católica no hemisfério ocidental. Os debates sobre o enfrentamento do racismo, da exclusão e da violência sexual estão diretamente dentro da missão de uma universidade católica. Mas se dedica muito menos atenção à corporativização da universidade católica e à forma como os administradores e os membros do corpo docente a adotaram.
Meu colega na Villanova Gerald Beyer, em seu livro recém-publicado, “Just Universities”, escreve que, “assim como suas contrapartes seculares, as universidades católicas variam no grau em que sucumbiram à corporativização e ao fundamentalismo de mercado”. Ele argumenta, seguindo a crítica de Henry Giroux aos “intelectuais fechados” [gated intellectuals], que todos aqueles que trabalham em uma faculdade ou universidade católica (assim como todos os católicos) precisam se preocupar com essas questões, e não apenas com suas próprias pautas.
Outra coisa a se considerar é como a Igreja Católica e o sistema educacional católico não foram poupados nesta era global de ressentimento. É um ressentimento em relação ao sistema eclesiástico, resultante das consequências da crise dos abusos sexuais, da recusa em lidar com o racismo e do aparente distanciamento da realidade que afeta muitos membros da hierarquia.
Mas há também um ressentimento em relação à vocação eclesial das instituições católicas de educação, com base na visão de que a Igreja está identificada não apenas historicamente, mas também essencialmente com o racismo, o colonialismo e o sexismo. É a visão que vê qualquer tradição como opressora em vez de possivelmente libertadora; negadora da vida em vez de afirmadora da vida; e, portanto, à qual não vale a pena aderir, e muito menos salvar – uma atitude que pode ser resumida como “extra Ecclesiam, sola salus”: a única salvação está em deixar a Igreja.
É difícil conter tal atitude, especialmente depois de décadas de alinhamento político entre a maioria da hierarquia católica e o Partido Republicano, incluindo o GOP [Grand Old Party] de Trump.
O ressentimento apresenta seus próprios problemas em relação à questão da missão católica. Se é óbvio que as faculdades e universidades católicas não devem se engajar no proselitismo, mais polêmica é a questão da missão evangelizadora e querigmática dessas instituições.
Para que servem os departamentos de teologia e/ou estudos religiosos nas universidades e faculdades católicas? Como seus papéis mudaram em comparação com o surgimento de outras entidades católicas relacionadas à missão (escritório para a missão, pastoral universitária, think tanks etc.) e à criação de departamentos acadêmicos mais intencionais e baseados na fé (departamentos de Estudos Católicos, por exemplo)? Os departamentos de teologia e/ou estudos religiosos têm futuro nos campi católicos? (Não estou nem tentando abordar as diferenças entre a teologia e os estudos religiosos aqui.) Não é difícil imaginar um futuro sem eles. Já existem substitutos.
Antigamente, presumia-se que as faculdades e universidades católicas deviam ensinar a fé em todas as disciplinas. Agora, apesar do fato de que a perspectiva da fé nos campi católicos tradicionais tende a se articular, graças ao Vaticano II, em termos ecumênicos, inter-religiosos, inclusivos e não proselitistas, essa perspectiva de fé se tornou controversa (não em declarações, mas em ações) como uma impulsionadora da missão educacional em geral.
Fazer teologia na, com e para a Igreja, assim como para o mundo em geral, tornou-se controverso não apenas para o corpo docente não teológico, mas também às vezes para os departamentos de teologia e estudos religiosos em campi católicos.
Além dos problemas de compatibilidade com a Ex Corde Ecclesiae, isso também apresenta problemas de compatibilidade com o Papa Francisco. Se a perspectiva da fé vivida é descartada desde o início, se a dimensão missionária e evangelizadora é descartada, perguntamo-nos o que significa o entusiasmo católico liberal por Francisco. Isso me faz lembrar do entusiasmo que os “soldados da Guerra Fria” tinham por João Paulo II.
Muitos católicos progressistas ignoram o conservadorismo católico ou até mesmo o desprezam. Mas eles não podem se dar ao luxo de ignorar o atual “momento Francisco”, de negligenciar essa janela cada vez menor de oportunidade para exercitar a energia necessária para dar uma nova vida para um entendimento católico da educação.
Da Laudato si’ à Fratelli tutti, fica claro que o Papa Francisco está liderando um movimento que rejeita o exclusivismo e o neofundamentalismo católicos, que critica o capitalismo neoliberal, que busca o desenvolvimento da doutrina sobre a pena de morte e o desmantelamento de um rigorismo moral a serviço de um catolicismo burguês e convencional. Isso se encaixa perfeitamente com os esforços que enfatizam a diversidade e a inclusão como parte de uma identidade católica que vai além daquilo que o cânone da civilização ocidental contém.
No entanto, ao mesmo tempo, o alívio trazido pelo repúdio do Papa Francisco à agenda da guerra cultural pode às vezes funcionar quase como uma espécie de anticatolicismo funcional, no qual o catolicismo e a cultura católica são levados a sério apenas na medida em que apoiam o paradigma tecnocrático da universidade contemporânea ou um lado da agenda ideológica bipartidária.
Em seu último livro publicado em inglês, “The Unnamable Present”, o autor italiano Roberto Calasso usa imagens opostas de “terroristas e turistas” e do “fundamentalismo e o Vale do Silício” para descrever a divisão da fé na sociedade contemporânea. Pressupor um distanciamento da perspectiva da fé pessoal como um pré-requisito para a objetividade acadêmica e uma condição para estar em uma universidade aberta à diversidade cultural e religiosa nos tornaria turistas espirituais – visitantes que revelam sua tradição religiosa ou optam por não habitá-la. Isso inclui professores, alunos e administradores.
Se decidirmos que habitar a nossa tradição religiosa é incompatível com a academia contemporânea, estaremos apenas legitimando outro cânone religioso enquanto abandonamos o nosso.
É verdade que as práticas de discipulado vêm primeiro, e depois vem a reflexão. Mas essa reflexão é essencial para decifrar outras implicações no nível da práxis. A insistência na justiça social, na diversidade e na inclusão – por mais louvável que seja – precisa de fundamentos doutrinais e teológicos, em que a dimensão da normatividade não seja rejeitada a priori.
Essas ideias podem e devem ser articuladas como elementos da missão e da identidade das instituições católicas de Ensino Superior. O pensamento social católico pode sobreviver apenas com base em fundamentos teológicos – uma teologia que seja diferente da apologética da tradição ou do magistério papal.
Entregar a educação católica a um modo pós-teológico e pós-eclesial irá, mais cedo ou mais tarde, tornar o catolicismo social não apenas política e culturalmente irrelevante, mas também intelectualmente impossível de explicar e de justificar.
Outros países enfrentam um desafio semelhante. Na Alemanha , por exemplo, os departamentos de teologia das universidades estatais (em um sistema de concordata – estabelecido pela Igreja) estão conversando com os bispos e os seminários sobre a direção e o futuro da teologia católica. Mas esse tipo de discussão não está ocorrendo nos EUA, em parte por causa da natureza de mercado privado do Ensino Superior católico e em parte por causa do afastamento quase total da Igreja institucional.
Eu vim para este país em 2008, em parte por causa do controle que a Igreja Católica na Itália exercia sobre a teologia, então não sou indiferente à ameaça que a tirania eclesiástica representa para a vida intelectual católica. Mas seria uma ilusão pensar que o catolicismo pode sobreviver, muito menos prosperar, se desconsiderarmos o destino das instituições acadêmicas católicas e o lugar da teologia dentro delas.
Parafraseando o Pe. Theodore Hesburgh, a universidade é um dos lugares onde a Igreja constrói o seu pensamento. Se perdermos a universidade “católica”, ficaremos com uma Igreja reacionária e não pensante.
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Crise de identidade: não podemos perder a universidade “católica”. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU