17 Março 2021
O papa está tomando medidas contra os perigos das lideranças carismáticas.
A opinião é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado em La Croix International, 16-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O impulso do Papa Francisco para a sinodalidade dentro da Igreja coincide cronologicamente com a ascensão de líderes populistas e a crise da democracia no exterior.
A sinodalidade, portanto, tem uma dimensão ad extra. É uma resposta eclesial aos líderes populistas que ‘sequestram” a religião, semeando divisão e explorando a raiva daqueles que se sentem excluídos, como observou recentemente o cardeal Luis Antonio Tagle.
É claro que a sinodalidade também tem dimensões ad intra específicas.
Em um interessante artigo publicado há poucos meses na revista Vida Nueva, o jesuíta espanhol Alejandro Labajos destacou que, de acordo com a Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica, 4% dessas comunidades religiosas haviam passado por uma visitação apostólica (basicamente uma investigação do Vaticano).
Essas visitações são feitas para investigar relatos de abuso ou de sérios problemas de fé e disciplina.
Labajos resumiu a raiz do problema do abuso de poder nas comunidades católicas em três pontos.
Primeiro, ele geralmente envolve personalidades carismáticas sedutoras, muitas vezes marcadas hoje por um forte perfil midiático.
Segundo, envolve o uso de uma linguagem espiritualizada que, em muitas ocasiões, é capaz de criar percepções ambíguas da realidade e de justificar o mal, recorrendo a palavras como “dedicação”, “dom de si mesmo”, “sacrifício”, “comunidade”, “missão” e assim por diante.
E, terceiro, quase sempre capitaliza sobre o vínculo da obediência.
O abuso de poder não se encontra apenas nas ordens e institutos religiosos de longa data. Ele está presente também nos novos movimentos eclesiais e nas comunidades católicas fundadas e lideradas por personalidades carismáticas sedutoras.
Essas personalidades geralmente atraem membros por meio da sedução espiritual. Nos piores casos, isso estimula a lealdade cega e a total rendição à vontade do líder.
Isso é especialmente operacional em comunidades nas quais os sistemas institucionais destinados a prevenir tal sedução espiritual estão ausentes ou são malvistos pelos membros dessas comunidades.
A onda de revelações de abuso e de má conduta de diferentes tipos (incluindo sexual) em comunidades eclesiais lideradas por leigos é um dos novos elementos da última fase (desde 2017-2018) na história da crise de abusos da Igreja Católica.
Não são mais apenas os institutos clericais como os Legionários de Cristo, que foram fundados pelo abusador em série Pe. Marcial Maciel.
Agora estamos descobrindo abusos em movimentos que não se identificam com uma ideologia clericalista antimoderna. Eles também estão presentes em uma cultura católica aberta ao mundo moderno, como Schoenstatt, o Movimento dos Focolares e L’Arche.
Outros casos recentes vieram à tona e revelaram o passado problemático de certos líderes carismáticos católicos, como o Pe. Jean-François Six, na França.
Há uma crescente consciência da dimensão e da gravidade do abuso de crianças, mulheres e adultos vulneráveis. O conhecido movimento MeToo é um resultado disso.
À medida que começamos a avaliar com mais cuidado a complicada contribuição feita pelos novos movimentos eclesiais leigos, a Igreja já está sofrendo com os escândalos causados por líderes carismáticos – alguns já falecidos, outros ainda vivos.
Essa é uma das razões pelas quais o impulso do papa para uma Igreja sinodal é tão importante.
Francisco está demonstrando mais uma vez que acredita que a história é verdadeiramente uma magistra vitae – uma mestra de vida.
Ele é um jesuíta cujo verdadeiro gênio é a direção espiritual. E, à luz das últimas décadas, ele está ciente dos riscos que a Igreja corre quando segue cegamente a liderança carismática de indivíduos.
Em seu pontificado, Francisco advertiu repetidamente todas as novas comunidades e movimentos eclesiais para evitarem os riscos do sectarismo e respeitarem a liberdade pessoal e espiritual de seus membros.
Ele emitiu um motu proprio em novembro passado, chamado Authenticum charismatis, que altera a lei canônica (n. 579) e exige que os bispos obtenham a autorização da Santa Sé antes de aprovarem um novo instituto religioso em nível diocesano.
A ação de Francisco durante seus oito anos como papa em termos da relação entre instituição e carisma sinaliza uma mudança inegável. É uma mudança na forma como João Paulo II e Bento XVI lidaram com as novas comunidades eclesiais.
Sob os dois antecessores, tais comunidades estavam acima de qualquer suspeita e eram intocáveis, contanto que estivessem dispostas a se submeter ao papa e se apresentar como a solução católica para o problema da secularização.
Não mais. Francisco está silenciosamente implementando uma reavaliação crítica da eclesiologia das “minorias criativas”, de uma forma que ecoa Paulo VI, que estava mais ciente dos riscos do sectarismo nesses movimentos.
A “eclesiologia do povo”, que Francisco defende, é crítica a todo elitismo na Igreja. Isso inclui o elitismo dos líderes carismáticos.
É indiscutível que o cheque em branco que João Paulo II e Bento XVI deram aos novos movimentos católicos também correspondeu a um retrocesso contra os movimentos sinodais que haviam sido típicos de muitas Igrejas locais nas primeiras décadas após o Concílio Vaticano II (1962-1965).
Especialmente nos anos 1980 e 1990, o Vaticano usou os novos movimentos católicos para se opor àquilo que era percebido como extremos progressistas do período pós-Vaticano II.
Esses novos movimentos também encarnaram uma virada contra a cultura mais democrática e os sistemas sinodais de governança das “velhas” associações católicas leigas (como a Ação Católica).
Esses movimentos, fundados e liderados por personalidades carismáticas, eram vistos pelo Vaticano como confiavelmente obedientes e indiferentes às questões teológicas e eclesiais levantadas pelos católicos leigos progressistas. Tudo isso teve seus custos.
A recuperação da sinodalidade por parte de Francisco é também uma forma de alertar contra os perigos das personalidades carismáticas na Igreja Católica.
Essa é uma novidade que supera a contraposição típica da cultura católica dominante entre a instituição (identificada com o status quo eclesiástico imutável e possivelmente corrupto) e o carisma (aclamado como a porta de entrada para a libertação do catolicismo das amarras do passado, do clericalismo etc.).
A sinodalidade de Francisco está alertando contra o encantamento do catolicismo liberal-progressista e também conservador em relação ao carisma, que muitas vezes se tornou uma aceitação acrítica do papel do líder.
O antigo lema “extra Ecclesiam, nulla salus” tornou-se algo como “extra carisma, nulla salus” – não há salvação fora de uma Igreja de comunidades criativas e intencionais lideradas por personalidades carismáticas.
É claro que o papado moderno se transformou em um papel carismático.
Francisco não rejeitou uma interpretação do ofício papal baseado no carisma pessoal, mas está fornecendo contramedidas essenciais contra os perigos da liderança carismática.
A sinodalidade permite reequilibrar a voz dos membros clericais da Igreja com a voz dos leigos.
Porém, não são apenas os leigos em geral, mas também o tipo de leigos. Trata-se de limitar a voz dos leigos que têm influência desproporcional (por exemplo, na mídia católica) por causa de seus recursos financeiros e conexões políticas.
Trata-se de dar uma voz maior aos membros do povo de Deus para equilibrar aquelas que podem ser chamadas de “celebridades da Igreja” – tanto leigos quanto clérigos – que podem alavancar sua popularidade na comunidade eclesial tanto no nível micro quanto macro .
A sinodalidade é também um produto de uma nova consciência na Igreja Católica de que os carismas podem ser facilmente transformados em poder abusivo nas comunidades eclesiais ou em demagogia na Igreja.
Vimos isso nos últimos anos com o novo fenômeno dos novos censores católicos e cibermilícias ativas nas mídias e nas redes sociais.
A definição moderna de “liderança carismática” na política é atribuída ao cientista social do início do século XX Max Weber, que suspeitava da tendência do carisma de se tornar cesarismo.
Um século após a morte de Weber em 1920, talvez nós, na Igreja Católica, estejamos começando a levar essa lição a sério.
É indiscutível que todas as formas de liderança eclesial são sempre inculturadas.
Os meios de comunicação de massa modernos e as mídias sociais retrataram a liderança carismática na Igreja mais a partir do sentido weberiano de lisonja e demagogia, do que do carisma como “um dom da graça de Deus”, como descrito por São Paulo em suas cartas.
No auge da crise dos abusos sexuais, a Igreja Católica despertou para os possíveis perigos do poder carismático nas comunidades eclesiais. Mas o efeito cascata da nossa reflexão sobre essa crise vai muito além do problema dos abusos.
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Os demagogos da Igreja: a sinodalidade pode reequilibrar as celebridades carismáticas? Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU