17 Junho 2019
"Francisco pode não rezar em línguas, mas nenhum papa jamais se identificou tão de perto com a Renovação Carismática Católica, nem foi tão ansioso para movê-la para a frente e para o centro da Igreja", escreve Austen Ivereigh, escritor e jornalista, em artigo publicado por America, 14-06-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando o Papa Francisco se uniu a 6.000 pessoas em Roma no dia 8 de junho para o lançamento, na véspera de Pentecostes, de um novo órgão vaticano para servir aos 115 milhões de católicos carismáticos de todo o mundo, eles fizeram questão de tocar a sua canção de “louvor” latino-americana favorita: “Vive Jesús, el Señor”.
É sempre um sinal de que Francisco está relaxado entre os amigos quando ele se sente capaz de zombar deles. Durante o seu discurso de 10 minutos, ele se referiu a eles, rindo, como “espíritas” (como os católicos carismáticos são depreciativamente conhecidos, muitas vezes, na América Latina) e, depois de pedir um minuto de silêncio para rezar pela paz, ele disse que era “heroico” que eles mantivessem um minuto de silêncio por qualquer coisa.
Francisco pode não rezar em línguas, mas nenhum papa jamais se identificou tão de perto com a Renovação Carismática Católica, nem foi tão ansioso para movê-la para a frente e para o centro da Igreja. Essa relação nasceu nos seus primeiros anos como arcebispo de Buenos Aires, quando o cardeal Jorge Mario Bergoglio percebeu que a Renovação não era uma “escola de samba”, como ele havia se referido a ela de maneira depreciativa em seus primeiros dias como jesuíta, mas, ao contrário, como ele a chamou no seu discurso na véspera de Pentecostes, “uma corrente de graça do Espírito Santo” que é derramada para a renovação da Igreja no nosso tempo.
O vínculo com a Renovação Carismática se aprofundou especialmente entre 2006 e 2012, quando o cardeal Bergoglio participou das reuniões anuais de cerca de 7.000 católicos e evangélicos no estádio Luna Park em Buenos Aires, um das maiores reuniões ecumênicas de louvor naquela época em todo o mundo. Hesitante em princípio, o cardeal chegou a receber a oração do principal pregador carismático da Igreja, o frade capuchinho e pregador da Casa Papal, Pe. Raniero Cantalamessa, junto com alguns pastores pentecostais. Dizem que ele recebeu um “batismo no Espírito”, uma experiência do poder pneumático mencionada frequentemente no Novo Testamento.
No caso do cardeal Bergoglio, isso levou a uma nova ousadia, especialmente no ecumenismo. Ele começou a se reunir regularmente para rezar com os evangélicos, convencido de que o Espírito estava agindo para reuni-los. Desde a sua eleição em 2013, ele continuou essa abertura, indo ao encontro, através da Renovação, dos evangélicos e dos pentecostais, que são rápidos em reconhecer nele um dos seus. Francisco tem invocado o Espírito Santo com muita frequência e enfaticamente, ressaltando constantemente as “novas coisas” que o Espírito está chamando e os perigos de resistir a Ele através da rigidez e da ideologia, a ponto de ele ser indiscutivelmente não apenas o primeiro papa jesuíta da história, mas também o primeiro papa carismático.
Mas Francisco é um reformador e ele tem se empenhado em “renovar a Renovação”, enquanto, ao mesmo tempo, a encoraja. O lançamento do Serviço Internacional da Renovação Carismática Católica, ou Charis, é fruto de um esforço de três anos não apenas para integrar a Renovação como uma “corrente de graça” para todo o mundo católico, como o famoso cardeal belga Leon-Joseph Suenens se referiu a ela, mas também para atualizá-la em suas fontes, acima de tudo recordando-a à visão dos chamados “documentos de Malines” dos anos 1970, dos quais a Charis adquiriu os direitos de publicação. “Façam com que esses documentos sejam conhecidos!”, exortou Francisco aos líderes da Charis em Pentecostes, descrevendo-os como “bússola da corrente de graça”.
Os documentos de Malines recebem o nome da cidade onde, na residência do cardeal Suenens, teólogos, bispos e líderes da Renovação se reuniram para explorar o fenômeno carismático que depois irrompeu na Igreja e para construir a ponte com a Igreja institucional. Em seus estatutos, a Charis situa especificamente a missão da Renovação nesses documentos fundacionais, destacando em particular a evangelização, o chamado à unidade cristã e ao serviço dos pobres (o tema do terceiro documento, fruto de um diálogo com Dom Helder Câmara, do Brasil [disponível aqui, em inglês]).
A “renovação da Renovação” de Francisco também se reflete no novo órgão em si mesmo, a Charis. Ainda em 2015, Francisco pediu que as duas organizações de vinculação carismática existentes reconhecidas por Roma, o Serviço Internacional de Renovação Carismática Católica e a Fraternidade Católica, estabelecida mais recentemente, trabalhem com o novo Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida para criar um novo e único “serviço de comunhão” para a Renovação mundial.
Em seu discurso no dia 8 de junho, Francisco disse que a Charis serve a todos os grupos carismáticos que o Espírito “suscitou no mundo”, não “um órgão que serve a algumas realidades e outro órgão que serve a outras realidades”, mas sim “um órgão para todos”.
O papel da Charis será ajudar a forjar a comunhão entre os grupos carismáticos extremamente díspares do mundo, alguns dos quais foram vítimas do vício evangélico de ter líderes autoritários e que se autoenriquecem.
Em seu discurso, Francisco disse aos líderes carismáticos a se protegerem contra “a ambição de que nos vejam, de mandar, do dinheiro”, advertindo que “a corrupção entra assim”. O objetivo da Renovação é “serviço, sempre serviço”: servir ao Espírito, uns aos outros e aos pobres. “Serviço não significa ‘embolsar’ – o diabo entra pelo bolso”, disse ele, mas “significa dar: dar, dar-se”.
O serviço e a responsabilidade estão embutidos no projeto da própria Charis, que, por enquanto, tem apenas alguns empregados e um orçamento pequeno, mas, ao contrário de seus dois antecessores, goza daquilo que a lei canônica chama de “personalidade jurídica pública”. Ela foi erigida pela Santa Sé e, portanto, tem o direito de representar a Igreja. Ela também tem uma supervisão mais forte por parte do Vaticano: o Dicastério para os Leigos, por exemplo, nomeia o moderador, por enquanto o leigo belga Jean-Luc Moens.
Quando perguntei ao número dois do dicastério, Alexandre de Awi Mello, I.Sch., do Brasil, quais outros órgãos eclesiais têm um status canônico semelhante – isto é, erigido pela Santa Sé, mas independente dela –, ele apontou para a Caritas Internationalis, o escritório com sede em Roma que coordena as várias organizações nacionais da Cáritas em todo o mundo (nos Estados Unidos, conhecidas como Catholic Relief Services). Dar à Charis um lugar semelhante na Igreja, disse o Pe. Awi, “é um gesto forte do papa de que ele quer integrar a Renovação, dizer que a Renovação é a Igreja, e que o batismo no Espírito pertence à Igreja assim como essa caridade pertence à Igreja”.
Em seu discurso à Renovação Carismática Católica no encontro em Roma, o assistente eclesiástico da Charis, Pe. Cantalamessa, disse que “carismático” deveria ser sempre um adjetivo em vez de um substantivo: não é possível falar dos “carismáticos” como um grupo específico mais do que dos “caridosos”, pois é da natureza de toda a Igreja ser carismática, assim como ser caridosa.
Como não há nenhuma estrutura de filiação, a Charis não exclui nenhuma das expressões da Renovação: nacional ou internacional, de nível diocesano ou paroquial, de comunidade estável ou de um grupo de oração iniciante. Não haverá nenhuma tentativa de classificar ou definir essas “realidades” carismáticas, disse o Pe. Awi, mas a Charis se concentrará em auxiliá-las na formação e na orientação. Simplesmente reconhecê-las não é pouca coisa. Só no Brasil, disse ele, existem cerca de 700 “novas comunidades” de inspiração carismática, junto com cerca de 20.000 grupos de oração carismáticos, envolvendo pelo menos dois milhões de pessoas.
Em muitos aspectos, este é o paradoxo da Renovação: mais de 120 milhões de católicos carismáticos em 235 países pertencem a uma vasta tapeçaria de “expressões e ministérios”, como descrevem os estatutos da Charis, que têm pouco em comum para além de uma experiência de batismo no Espírito e de abertura aos charismata pneumatika listados em 1Coríntios 12, 8-10, como profecia, cura e línguas.
Embora seja essa ênfase e abertura que distingue a Renovação do catolicismo “tradicional”, ela não é um dos “novos movimentos” dentro da Igreja. Ela não tem nenhum fundador – os líderes da RCC tendem a apontar para o céu quando você pergunta onde tudo começou – nem uma estrutura de governo como tal. O cardeal Suenens costumava compará-la à corrente do Golfo que aquece as costas do norte da Europa; depois de se unir ao Atlântico, ela se torna indistinguível dele. Você só precisa ir a uma missa paroquial no Brasil para ver que isso já aconteceu.
Mas Francisco quer que essa integração se aprofunde, para que o catolicismo dominante se torne mais aberto ao que ele vê como um novo derramamento do Espírito no nosso tempo. Na Jornada Mundial da Juventude no Panamá, em janeiro, Francisco falou de uma necessidade urgente agora de “um novo Pentecostes para a Igreja e para o mundo”.
A Evangelii gaudium, de 2013, expressou essa visão de uma Igreja em saída, cheia do Espírito, na qual os “discípulos missionários” podem falar de um encontro pessoal com Jesus Cristo e compartilhar histórias alegres do Espírito em ação em suas vidas. A Evangelii gaudium sonha com uma Igreja evangelizadora, aberta à infusão espontânea e gratuita dos charismata pneumatika que, nos Atos dos Apóstolos, transformaram pescadores medrosos em proclamadores corajosos do Evangelho, capazes de falar do amor de Cristo de um modo que transcendeu as fronteiras da cultura e da linguagem.
O papel vital que Francisco vê sendo desempenhado pela Renovação Carismática na conversão missionária e pastoral da Igreja ficou evidente no encontro latino-americano dos bispos em Aparecida, em maio de 2007. O documento conclusivo de Aparecida, que o cardeal Bergoglio foi encarregado de redigir, falou em termos classicamente carismáticos sobre a necessidade de um encontro pessoal com Cristo e do papel desempenhado pelo Espírito Santo (mencionado 44 vezes) em abrir mentes e corações à lei de Deus.
Essa ênfase refletia não apenas o discernimento do papa de que isso era o que o Espírito pedia à Igreja, mas também o seu diagnóstico da modernidade. A secularização e a tecnologia estavam dissolvendo os tradicionais cinturões de transmissão da fé; o edifício ético e doutrinário do cristianismo seria no futuro cada vez menos sustentado pelo peso da lei e da cultura. O que era necessário era um retorno àquilo que Aparecida chamava de “encuentro fundante” do cristianismo: audaz e querigmático, fortalecido pela graça e pela misericórdia, não dependente da lei, da cultura ou das instituições poderosas, mas do testemunho do amor e do poder do Espírito. Foi esse discernimento que o Papa Francisco procurou “engarrafar” na Evangelii gaudium, em que o Espírito Santo (mencionado 49 vezes) é o principal protagonista.
Tudo isso explica por que Francisco está tão interessado nessa família de católicos, que são mais rápidos do que a maioria para entender a renovação da cultura eclesial que a Evangelii gaudium pede. Em muitos encontros com a RCC em Buenos Aires como cardeal e desde a sua eleição em 2013 como papa, ele insistiu para que eles não guardassem para si o batismo no Espírito, pois “todos somos servos desse dilúvio da graça”, como ele afirmou nas celebrações do 50º aniversário da RCC há dois anos.
Aquelas celebrações em 2017 mostraram a necessidade de novas estruturas de liderança. Francisco havia dado instruções claras um ano antes de que ele queria que o aniversário não fosse autocongratulatório e focado internamente, mas sim ecumênico e missionário, como no Luna Park. Mas ele havia enfrentado a rejeição de líderes da RCC que queriam afirmar a identidade da Renovação como um movimento, e, no fim, a vigília foi dividida de forma desajeitada em duas metades. Na primeira, as únicas pessoas no palco eram os líderes da RCC, que lideraram o louvor e deram testemunhos contra o pano de fundo do logotipo do jubileu e as palavras “Veni, Creator Spiritus” (o latim era em si mesmo uma espécie de afirmação identitária); enquanto a segunda parte, liderada pelo Papa Francisco, incluiu evangélicos e pentecostais, sob a bandeira “Jesus é o Senhor”. A primeira foi sentida como cansativa e autorreferencial, enquanto a segunda foi alegre e enérgica.
O lançamento da Charis no Pentecostes deste ano marcou o triunfo da segunda sobre a primeira. O Pe. Wilfred Brieven, que foi secretário do cardeal Suenens durante 12 anos e está envolvido na Renovação desde 1973, disse-me do lado de fora da Sala Paulo VI em Roma que “o cardeal está alegre no céu porque isto está acontecendo”, o fato de que o “passo ousado” de Francisco ao estabelecer a Charis é “uma nova direção que cria unidade onde ela era muito necessária” e “um momento de kairós não apenas para a Renovação, mas também para a Igreja”.
Os estatutos da Charis garantem que a Renovação volte-se firmemente para fora, deixando claras as três prioridades de Malines, a evangelização, a unidade cristã e o serviço aos pobres. A última é especialmente importante na América Latina, onde a Renovação tem sido frequentemente posta contra os chamados católicos da justiça social, produzindo uma trágica clivagem. “O Espírito nos leva aos pobres”, diz o Pe. Awi. “Essa é uma parte essencial da Renovação, que talvez muitos tenham perdido ao longo do caminho.”
Francisco tem se referido frequentemente ao terceiro documento de Malines, no qual o arcebispo Helder Câmara, do Brasil, vê a Renovação como um serviço aos desprovidos da sociedade. “Seremos julgados não pelo nosso louvor, mas por aquilo que fizemos por Jesus”, disse Francisco à RCC em 2017, citando Mateus 25, em que Jesus aparece disfarçado de faminto e de preso que pede para ser alimentado e libertado. “Estamos em uma nova temporada agora”, disse Moens, diretor da Charis, no último fim de semana. Não pode mais haver uma separação entre a oração e o serviço aos pobres. “Vocês verão pessoas rezando e servindo aos pobres juntos, como a Madre Teresa: adorando o Senhor em oração e nos sacramentos, e depois adorando o Senhor no seu povo ferido”, disse ele.
A segunda missão, a unidade cristã, também é fundamental: Francisco vê a Renovação Carismática como a ponte da Igreja com o mundo pentecostal em rápido crescimento, o lugar onde o Espírito está forjando uma “diversidade reconciliada” fora das Igrejas separadas pela história. Como descreveu o falecido padre Peter Hocken – um dos melhores teólogos da Renovação – Francisco é um comprometido “ecumenista carismático”, no sentido de que ele vê primeiramente a unidade como a obra do Espírito, em vez de uma conquista do diálogo teológico ou institucional.
Nos capítulos 10 e 11 dos Atos dos Apóstolos, os discípulos judeus de Cristo ficam admirados ao ver o Espírito conceder os mesmos dons carismáticos aos gentios. Os discípulos compreendem que eles são todos um. Da mesma forma, a unidade acontece quando as pessoas se reúnem em oração e amizade, e veem como o Espírito está agindo no outro. A Renovação, é claro, nasceu assim, fora da Igreja, entrando na Igreja Católica por meio de pastores pentecostais que impuseram as mãos sobre os católicos em 1967, no “fim de semana de Duquesne”.
O exemplo de Francisco inspirou um pastor pentecostal dos EUA, de Newark, Joseph Tosini, a criar o movimento John 17, que reunia católicos e evangélicos na amizade, envolvendo vários bispos católicos dos EUA. O pastor Tosini leva regularmente dezenas de pastores a Roma para se encontrar com Francisco e recolheu seus testemunhos em um novo livro, “John 17: The Heart of God” [João 17: o coração de Deus]. O papa publicou uma carta no início do livro, elogiando seu “ecumenismo baseado na unidade do Espírito”.
Durante o almoço no Domingo de Pentecostes, o pastor Tosini descreveu-me os muitos frutos desse movimento, o modo como os católicos e evangélicos receberam uma nova percepção da obra de unidade do Espírito no nosso tempo. Essa unidade está acontecendo, disse ele, “na velocidade da relação”. O Espírito Santo havia mostrado a Francisco que, nesta era da desconfiança das instituições, “se não é pessoal, não é real”, afirmou. E foi por isso que o mundo carismático – católico e evangélico – olhou para Francisco como um ungido para canalizar essa inspiração. “As pessoas sabem se você as ama ou não”, acrescentou. “O Papa Francisco é genuíno. Ele move as pessoas pela sua presença e pela sua bondade.”
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Francisco, o primeiro papa carismático? Artigo de Austen Ivereigh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU