11 Março 2021
A viagem do Santo Padre ao Iraque possibilitou algumas das imagens e frases mais convincentes desse pontificado já convincente. Fiquei mais impressionado com as fotos do Papa Francisco com o aiatolá Ali al-Sistani, dois anciãos, um vestido simplesmente de branco e o outro simplesmente de preto, em uma sala espartana, segurando as mãos um do outro enquanto trocavam cumprimentos e depois se sentaram para conversar como dois amigos que não se viam há muito tempo.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicado por National Catholic Reporter, 10-03-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Papa Francisco e Al-Sistani (Foto: Vatican Media)
Hoje, eu gostaria de chamar a atenção para algumas coisas que o papa disse e que não viraram manchetes, mas que convidam à reflexão.
Papa Francisco e Al-Sistani (Foto: Vatican Media)
Em seu primeiro dia no Iraque, Francisco falou na Catedral de Nossa Senhora da Salvação aos bispos, clérigos, religiosos e catequistas do país. É difícil imaginar um país cujas lideranças religiosas tenham suportado sofrimentos e perseguições maiores, primeiro como resultado da invasão do país liderada pelos EUA e depois devido à hegemonia de terroristas do ISIS em grande parte do norte do Iraque. Francisco reconheceu esse sofrimento e encontrou palavras de encorajamento sobre isso que me parecem ter vindo do fundo do seu coração e que poderiam ser dirigidas aos católicos de todo o mundo:
“Pastores e fiéis, sacerdotes, religiosos e catequistas compartilham, embora de modos diversos, a responsabilidade de levar em frente a missão da Igreja. Às vezes, podem surgir incompreensões, e podemos experimentar tensões; são os nós que obstaculizam a tessitura da fraternidade. São nós que carregamos dentro de nós; afinal, somos todos pecadores. No entanto, esses nós podem ser desatados pela Graça, por um amor maior; podem ser afrouxados pelo perdão e pelo diálogo fraterno, suportando com paciência os fardos uns dos outros (cf. Gl 6,2) e fortalecendo-se mutuamente nos momentos de prova e dificuldade.”
Essa receita espiritual para a unidade eclesial pareceu, como grande parte do que o papa disse na viagem, ter brotado na sua alma durante o isolamento forçado por causa da Covid-19. Se se espera que a economia mundial libere a demanda reprimida assim que a maioria das pessoas for vacinada, o Santo Padre acumulou um suprimento reprimido de intuições espirituais e religiosas. Ao contrário de grande parte da linguagem espiritual, o conselho de Francisco nunca é meloso, nunca é ingênuo. Suas palavras são sempre acessíveis e estimulantes.
No dia seguinte, no encontro inter-religioso de Ur, casa do nosso pai Abraão, Francisco repudiou a violência cometida em nome da religião: “A partir deste lugar onde nasceu a fé, da terra do nosso pai Abraão, afirmamos que Deus é misericordioso e que a ofensa mais blasfema é profanar o seu nome odiando o irmão. Hostilidade, extremismo e violência não nascem de uma alma religiosa: são traições da religião”. Isso precisava ser dito, mas vamos nos concentrar em uma parte diferente desse discurso.
Francisco refletiu sobre o relato bíblico no qual Deus convida Abraão a olhar as estrelas e situou a todos nós nesse relato: “Deus pediu a Abraão que levantasse o olhar para o céu e contasse as estrelas (cf. Gn 15,5). Naquelas estrelas, ele viu a promessa da sua descendência; ele nos viu”. Depois, ele usou a imagem para desafiar a ideia, tão comumente reiterada, de que a religião é uma fonte de guerra e conflito:
“Contemplando o mesmo céu depois de milênios, as mesmas estrelas aparecem. Elas iluminam as noites mais escuras porque brilham juntas. O céu nos envia assim uma mensagem de unidade: o Altíssimo acima de nós nos convida a nunca nos separarmos do irmão que está ao nosso lado. O ‘Além’ [Oltre] de Deus nos remete ao ‘outro’ [altro] do irmão. Mas, se queremos conservar a fraternidade, não podemos perder de vista o Céu. Que nós, descendência de Abraão e representantes de diversas religiões, sintamos que, acima de tudo, temos este papel: ajudar os nossos irmãos e irmãs a elevar o olhar e a oração ao Céu. Todos precisamos disso, porque não bastamos a nós mesmos. O ser humano não é onipotente; ele não consegue sozinho. E, se excluirmos Deus, acabamos adorando as coisas terrenas. Mas os bens mundanos, que levam muitos a esquecerem a Deus e aos outros, não são o motivo da nossa viagem sobre a Terra. Elevamos os olhos ao Céu para nos elevarmos das baixezas da vaidade; servimos a Deus para sairmos da escravidão eu eu, porque Deus nos leva a amar. Esta é a verdadeira religiosidade: adorar a Deus e amar o próximo. No mundo de hoje, que muitas vezes se esquece do Altíssimo ou oferece uma imagem distorcida dele, os fiéis são chamados a testemunhar a sua bondade, a mostrar a sua paternidade mediante a sua fraternidade.”
Pense nas vezes em que alguém casualmente diz: “Mantenha a religião fora da política... é assim que as guerras começam”. As imagens da Guerra dos Trinta Anos vêm à mente, embora a nossa historiografia dessa guerra tenha se desenvolvido e agora saibamos que as causas foram muitas e variadas, e nem todas religiosas.
Na verdade, há algo a ser dito sobre o entendimento das diferenças entre política e religião. Certamente, devemos evitar confundir as duas. Mas Francisco vira de cabeça para baixo o preconceito antirreligioso moderno. É o materialismo que gera lutas civis. A religião, a verdadeira religião, deve convidar à humildade e à solidariedade; de fato, a nossa capacidade de culto verdadeiro a Deus é ligada pelo Papa Francisco concretamente ao nosso compromisso com o próximo. A frase “os fiéis são chamados a (…) mostrar a sua [de Deus] paternidade mediante a sua [dos fiéis] fraternidade” é primorosa.
O último item é fácil de se perder e veio nesse mesmo discurso no encontro inter-religioso em Ur. O papa disse:
“O terrorismo, quando invadiu o norte deste amado país, destruiu barbaramente parte do seu maravilhoso patrimônio religioso, incluindo igrejas, mosteiros e lugares de culto de várias comunidades. Mas, mesmo naquele momento escuro, brilharam as estrelas. Penso nos jovens voluntários muçulmanos de Mosul, que ajudaram a refazer igrejas e mosteiros, construindo amizades fraternas sobre as ruínas do ódio, e nos cristãos e muçulmanos que hoje restauram juntos mesquitas e igrejas. O professor Ali Thajeel referiu-nos também o retorno dos peregrinos a esta cidade. É importante peregrinar aos lugares sagrados: é o sinal mais belo da nostalgia do Céu sobre a Terra. Por isso, amar e preservar os lugares sagrados é uma necessidade existencial, na recordação do nosso pai Abraão, que em vários lugares ergueu ao céu altares ao Senhor (cf. Gn 12,7.8; 13,18; 22,9).”
Uma das coisas de que eu mais gosto neste papa é que ele se lembra da natureza tátil da nossa fé cristã, do fato de que a maioria de nós, pessoas comuns, deseja tocar o sagrado ou, neste caso, fazer uma peregrinação a um lugar sagrado. Aqueles que são mundanamente sábios zombam de tais instintos como superstição. Alguns que são teologicamente sofisticados menosprezam tais atos de devoção. Eu sou o menos espiritual dos homens, mas aprendi que uma religião que não abraça as expressões populares da fé é uma religião morta. (...)
Quando foi eleito, Francisco optou por não morar no palácio apostólico, mas, em vez disso, na Domus Sanctae Marthae, uma casa de hóspedes do Vaticano onde os visitantes se hospedam e onde alguns outros membros da equipe moram. Ela tem todo o charme de um hotel barato, mas limpinho. Todos fomos atraídos pela simplicidade do estilo de vida que a sua escolha refletia, mas ele mesmo citou uma razão diferente: ele não queria ficar isolado no palácio apostólico.
A pandemia nos forçou ao isolamento no ano passado, e todos nós temos lutado contra ele de formas diferentes. Agora sabemos que o papa passou o ano passado armazenando tesouros e, no Iraque, ele começou a compartilhá-los conosco. Foi uma viagem deslumbrante.
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As intuições espirituais que Francisco exibiu no Iraque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU