19 Novembro 2020
“Ellacuría deve ser eliminado e não quero testemunhas”. Foi a ordem que o coronel René Emilio Ponce deu ao batalhão Atlacatl, o mais sanguinário do Exército salvadorenho. A ordem foi cumprida na noite de 16 de novembro de 1989, quando os jesuítas Segundo Montes, Juan Ramón Moreno, Amando López, Ignacio Martín Baró, Joaquín López y López, Ignacio Ellacuría e sua colaboradora Elba Ramos e sua filha Celina, de 15 anos, foram assassinados na Universidade Centro-Americana “José Simeón Cañas”, de San Salvador (UCA).
Neste artigo vou me concentrar em Ellacuría, reitor da UCA, discípulo de Rahner e Zubiri, colaborador próximo deste último e editor de algumas de suas obras. Foi filósofo e teólogo da libertação, cientista social e promotor da teoria crítica dos direitos humanos, quatro dimensões difíceis de encontrar e harmonizar numa só pessoa, mas, neste caso, conviveram não sem conflitos internos e externos, e eles se desenvolveram com clareza intelectual e coerência vital.
O artigo é de Juan José Tamayo, teólogo espanhol, publicado por Religión Digital, 17-11-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
“Reverter a história, subvertê-la e lançá-la em outra direção”, “curar a civilização doente”, “superar a civilização do capital”, “evitar um desfecho fatídico e fatal”, “baixar os crucificados da cruz” (estas são as suas expressões) foram os desafios aos quais quis responder com palavras e escritos, compromisso político e experiência religiosa. E ele pagou por isso com sua vida.
31 anos após seu assassinato, Ellacuría ainda está vivo e ativo em suas obras, muitas delas publicadas postumamente. Em 1990 e 1991, dois de seus livros foram publicados: “Mysterium liberationis. Conceitos fundamentais da teologia da libertação” (Ed. Trotta), da qual é o redator junto com seu colega Jon Sobrino, então a melhor e mais completa visão da dita corrente teológica latino-americana e filosofia da realidade histórica – editada por seu colaborador Antonio González –, cujo fio condutor é a filosofia de Zubiri, mas recriada e aberta a outras correntes como Hegel e Marx, lê criticamente. Faz parte de um projeto mais ambicioso trabalhado desde os anos setenta do século passado e que foi truncado com o assassinato. Posteriormente, a UCA publicou seus Escritos Políticos 3 vols., 1991; Escritos Filosóficos, 3 vols., 1996, 1999, 2001; Escritos Universitários, 1999; Escritos Teológicos, 4 vols., 2000-2004.
Nos trinta e um anos desde seu assassinato, estudos, monografias, teses de doutorado, congressos, conferências, pesquisas, cursos monográficos, círculos de estudo, cátedras universitárias com seu nome continuaram existindo, demonstrando a “autenticidade” de sua vida e a criatividade e validade de seu pensamento nos diferentes campos do conhecimento e da atividade humana: política, religião, direitos humanos, universidade, ciências sociais, filosofia, teologia, ética, etc.
O que descobrimos com a publicação de seus escritos e os estudos sobre sua figura é que Ellacuría teve excelentes professores: Rahner em teologia, Zubiri em filosofia, dom Oscar Romero em espiritualidade e compromisso libertador e colegas como Jon Sobrino, colega da UCA e professor de Cristologia. Com eles aprendeu a pensar e agir alternadamente.
Mas o seu discipulado não foi acadêmico, mas sim criativo, visto que, inspirado pelos seus professores, desenvolveu o seu próprio pensamento e tornou-se professor, se por tal entendemos não só aquele que dá aulas magistrais em sala de aula, mas que, na expressão de Kant, se aplica ao professor de filosofia que ensina a pensar. Ellacuría faz parte do pensamento de seus professores, mas não fica com eles; avança, vai além, os interpreta no novo contexto e, em grande medida, os transforma. Sua relação com eles é, portanto, dialógica, de colaboração e influência mútua. Suas obras assim o provam e os estudos sobre ele o confirmam.
Seu colega e amigo Jon Sobrino escreveu páginas de leituras necessárias sobre o “Ellacuría esquecido”, nas quais recupera três pensamentos teológicos fundamentais: o povo crucificado; trabalhar por uma civilização da pobreza, superando a civilização do capital; a historicização de Deus na vida de suas testemunhas, que Ellacuría cunhou com um aforismo memorável “com dom Romero, Deus passou pela história”. Ellacuría entende a teologia da libertação como teologia histórica do clamor ante a injustiça, estabelece uma correta articulação entre teologia e ciências sociais e assume um compromisso com a transformação da realidade histórica a partir da análise política e de seu papel como mediadora nos conflitos. São três aspectos que José Sols Lucia desenvolve.
O teólogo austríaco Sebastián Pittl recupera a primeira ideia destacada por Sobrino e a interpreta teologicamente: a realidade histórica dos povos crucificados como lugar hermenêutico e social da teologia. Também faz uma leitura da concepção ellacuriana de espiritualidade enraizada na história a partir da opção pelos empobrecidos.
O resultado é uma teologia pós-idealista cujo método não é o transcendental de seus professores, mas a historicização dos conceitos teológicos e a partir da práxis histórica. A teologia de Ellacuría tem um forte componente ético-profético. Aplicando-se a ela a consideração levinasiana da ética como filosofia primeira, bem se poderia dizer que para o teólogo hispano-salvadorenho a ética é a teologia primeira, o profetismo a manifestação crítico-pública da ética, a esperança ativa o caminho pelo qual caminhada e utopia o horizonte para a construção de um Outro Mundo Possível.
O objeto da filosofia ellacuriana é a realidade histórica como unidade física, dinâmica, processual e ascendente. Daqui emanam os conceitos e ideias fundamentais de sua filosofia: história (materialidade, componente social, componente pessoal, temporalidade, realidade formal, estrutura dinâmica), práxis histórica, libertação, unidade da história. Seu método é a historicização de conceitos filosóficos para libertá-los do idealismo e da idealização em que a filosofia, a teologia e a teoria universalista dos direitos humanos costumam incorrer.
H. Samour, um dos melhores especialistas e intérpretes do filósofo Ellacuría, reinterpreta o professor relacionando o seu pensamento com a realidade histórica contemporânea, ao mesmo tempo que considera a filosofia da história como uma filosofia da práxis. Recentemente está se desenvolvendo uma nova linha de investigação do pensamento filosófico do intelectual hispano-salvadorenho: aquela que faz uma leitura multidimensional com as seguintes derivações criativas, que enriquecem, recriam e reformulam sua filosofia:
a) Sua conexão com a dialética hegeliana-marxista, o que implica analisar a concepção dialética de Ellacuría, o uso do método dialético em sua análise política e histórica e a dialética entre a história pessoal – biografia – e a história coletiva – o povo salvadorenho –, em outras palavras, o impacto e a capacidade transformadora de sua vida e morte na história de El Salvador (Ricardo Ribera).
b) A sua conexão com a teoria crítica da primeira Escola de Frankfurt, que integra dialeticamente as diferentes disciplinas dando origem a um saber emancipatório, bem como a sua incidência na negatividade da história (L. Alvarenga).
c) Sua conexão com a filosofia utópica de Bloch em um dos últimos textos mais emblemáticos de Ellacuría: “Utopia e profetismo na América Latina” (Tamayo).
d) Sua teoria original do “mal comum” como mal histórico, a crítica da civilização do capital e as diferentes formas de superá-la (Hector Samour).
e) O resgate filosófico do cristianismo libertador (Carlos Molina).
f) O fundamento moral da atividade intelectual, a relevância do lugar dos oprimidos nos diferentes campos e facetas do trabalho teórico e a crítica da ideologia (J. M. Romero).
g) As contribuições para o pensamento decolonial com sua caracterização da conquista como a imposição de um sistema de dominação múltipla: cultural, política, econômica e religiosa, ecológica, que perdura até hoje (J. J. Tamayo).
Ellacuría fez contribuições relevantes no campo da teoria e da fundação dos direitos humanos. Nesse sentido, vale destacar sua contribuição para a superação do universalismo jurídico abstrato e de uma visão desenvolvimentista dos direitos humanos, e para a elaboração de uma teoria crítica dos direitos humanos (J. A. Senent, A. Rosillo).
O pensamento de Ellacuría não é atemporal, mas histórico, e deve ser interpretado não de uma forma essencialista (embora algumas de suas primeiras obras escritas sob o discipulado escolar e a influência de Zubiri tenham essa orientação), mas historicamente, em diálogo com os novos climas culturais. Assim lido e interpretado, pode abrir novos horizontes e iluminar a realidade histórica contemporânea. O cineasta Imanol Uribe está rodando o filme “La mirada de Lucía” com roteiro de Daniel Cebrián, baseado na história verídica do massacre de seis jesuítas e duas mulheres colaboradoras em novembro de 1989 em El Salvador, que chocou o mundo. “É, para além do seu pano de fundo político e social, uma história de personagens, da sua luta pela verdade e da justiça num país em guerra e do seu desejo de ultrapassar aquele momento de horror”.
As ideias apresentadas neste artigo têm um desenvolvimento posterior e bem fundamentado no livro Ignacio Ellacuría. 30 anos depois. Anais do Colóquio Comemorativo Internacional. San Salvador, 17-21 de novembro de 2019, editado por Héctor Samour e Juan José Tamayo, que aparecerá na editora Tirant Lo Blanc em janeiro de 2021.
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“Ellacuría teve excelentes professores: Rahner em teologia, Zubiri em filosofia e Oscar Romero em compromisso libertador”. Artigo de Juan José Tamayo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU