22 Outubro 2020
Em inícios deste ano, múltiplos acontecimentos deixaram a questão síria em um segundo plano nas esferas midiática e política, na Europa ocidental e nos Estados Unidos. A crise sanitária, econômica e social derivada da propagação do coronavírus e o intenso e contínuo acompanhamento diário da pandemia, por um lado e, por outro, a sucessão de acontecimentos no Oriente Médio e África - no Iraque e Líbia, depois no Líbano, e antes disso na Argélia e Sudão -, junto com as notícias da normalização das relações dos Emirados Árabes Unidos e Bahrein com Israel, distanciaram a Síria dos “radares” da cobertura e dos observatórios daqueles assuntos que afetam a região.
A reportagem é de Ziad Majed, publicada por Rebelión, 21-10-2020. A tradução é do Cepat.
Assim, hoje, o conflito na Síria e pela Síria já é uma “luta” distante do interesse que suscitava em muitos âmbitos jornalísticos e políticos. Se não fosse por algumas conversas dispersas e os poucos artigos que abordam o fenômeno dos mercenários sírios que lutam na Líbia e a nova guerra que explodiu entre os azeris e os armênios, em Nagorno-Karabakh, seria possível dizer que lembrar da questão síria passou a ser algo que compete exclusivamente a alguns ativistas que acompanham a questão nas redes sociais e a alguns pesquisadores cujo campo de especialização continua sendo o país.
Mapa da Síria. (Fonte: Wikimedia Commons)
É muito provável que a situação continue assim durante um período nada desprezível, dado que a atenção hoje está centrada nas eleições estadunidenses, em seu possível resultado e nos cenários que possam surgir dele e, por outro lado, nos acontecimentos na fronteira da Europa oriental com a Rússia.
Não obstante, existem outras causas que explicam a alienação “ocidental” (e a árabe e a internacional), em relação à questão síria, que nem sempre obedecem a prioridades: determinadas notícias e crises retiram da observação e análise as questões relativas a Idlib, aos detidos e desaparecidos há vários anos e aos cenários no sul, leste e nordeste do país.
Que o conflito sírio tenha saído de seu marco nacional, que as ocupações estrangeiras se enfrentem para tirar proveito da geografia síria e que tenha diminuído o ritmo de bombardeios e as operações militares significam que falar hoje da revolução e o regime, da oposição e os partidários de Assad e das matanças e violações seja como recolocar um disco muitas vezes reproduzido, entre 2011 e 2018, e que já não interessa ao público, independentemente da qualidade do conteúdo e o quanto seja atual.
Do mesmo modo, a intervenção russa, que modificou radicalmente os equilíbrios das forças a favor do regime, depois que o Irã (e a inação árabe e ocidental) conseguiu salvá-lo e garantir suas rotas aéreas e terrestres de fornecimento, criou uma situação que levou os líderes e políticos dos diferentes Estados, assim como a maioria dos meios de comunicação desses mesmos países, a considerar tal situação como o fato mais firme, claro e inextrincável, ao mesmo tempo.
Para aqueles que são partidários de Moscou, o que é possível fazer contra este país à margem das sanções que impedem que se possa impor uma solução definitiva, que reflita sua superioridade militar? O que é possível acrescentar ao que já foi dito, repetido e fotografado na cobertura desta tragédia humana, há anos, exceto destacar, de vez em quando, que o coronavírus avançou aqui e ali ou manifestar um novo crime cometido pela artilharia ou a aviação em tal ou qual município? Como é possível investigar alguma novidade que afete as políticas estadunidenses, turcas e iranianas (e israelenses) em relação à Síria, quando já se disse tudo milhares de vezes e os fatos e seu contexto se repetiram tanto que entediam a maioria daqueles que estão cientes? É possível, por meio da denominada Comissão Constituinte, oferecer algo novo sobre a trajetória política e suas negociações esquecidas até mesmo por aqueles que debateram sobre a formação das delegações e os preparativos para isso?
Todas essas considerações e dúvidas nos levam, se assim são, a buscar vias para recuperar a presença da questão síria nos âmbitos político e midiático e a evitar que as causas que representa desapareçam do debate público, mas isto não será nada fácil. O desinteresse pela questão síria, após anos de reflexão, centrando-se nela e expressando opiniões contrárias a seu respeito, o fator tempo e a mudança dos rostos do conflito, assim como a divisão das lealdades e as alianças e o fato de que a violência ultrapasse, desde o início, os limites da atrocidade que uma mente possa imaginar, sem dar trégua aos traumas e estupefação, acrescentam às prioridades que apontamos crises e “coberturas” midiáticas que não deixam muita margem para influenciar uma opinião pública que se sente impotente e pensa que qualquer mobilização é inútil, sobretudo, após a queda de Alepo, em fins de 2016, como consequência dos ataques da maquinaria de guerra russa.
A cobertura de negociações, trajetórias políticas e nomeações de enviados da Organização das Nações Unidas conduziu a iniciativas pouco claras e que desvirtuaram as responsabilidades internacionais, retirando das comissões e organismos ocidentais o peso de um “expediente” espinhoso, no qual é difícil se envolver de cheio e em cujos acontecimentos é difícil influenciar diretamente, sem considerar que podem ocorrer os “piores” cenários possíveis, como se costuma repetir.
Não há dúvida de que a desaceleração das organizações sírias, a redução dos atos em que participam algumas delas nas capitais europeias, durante um tempo, o desaparecimento das organizações opositoras oficiais e de seu discurso político e midiático e a transformação da maioria delas em porta-vozes de atores regionais que se enfrentam pioraram esta ausência síria.
Apesar de alguns julgamentos na Alemanha e França terem iniciado e da emissão de ordens de prisão contra responsáveis do regime sírio, graças ao trabalho de associações e indivíduos sírios, e apesar dos esforços judiciais em outros países para julgar os criminosos de guerra, o desinteresse tem se mantido praticamente nos mesmos níveis.
Tudo isso supõe que hoje é necessário propor iniciativas e retomar as campanhas que voltem a ter o foco na questão síria, e aproveitar as experiências anteriores para recordar que abandonar a Síria como cenário de morte e de imunidade dos assassinos, por anos, além de uma profunda injustiça e uma série de violações já conhecidas, provocará mudanças no Oriente Médio e em todo o mundo, desde o fato de que a Al-Qaeda e o Daesh exploram a tragédia dos sírios e se esforçam para utilizar as injustiças para atrair jovens e convertê-los em jihadistas à crise e o sofrimento dos refugiados, e as decisões, disputas e exploração racistas que ocorrem a respeito desse tema em todas as partes.
Além disso, ocorre o avanço da Rússia frente ao retrocesso ocidental na Síria e da forma como a mesma o aproveita para avançar em muitos outras frentes, o fracasso político no comportamento internacional com o Irã, que se expande pelo Iraque, Síria e Líbano, as tensões europeias com a Turquia e o aumento da ingerência desta última em guerras das quais também tiram benefício Estados (como Emirados e Arábia Saudita) que buscam desempenhar “papéis relevantes”, ao mesmo tempo em que os conflitos se mantêm abertos e a impotência ocidental e da Organização das Nações Unidas continuam patentes na hora de abordá-los. Por tudo isso, acontecem múltiplas mutações, nos últimos anos, e não resta dúvida de que a Síria continua sendo uma das causas mais destacadas disso.
Nada impede que aconteçam novas e perigosas mutações com base nas anteriores, nem se pode descartar que sejam retomados episódios de assassinatos que devolvam a questão dos refugiados ao contexto das tensões e as chantagens, e que aqueles que haviam esquecido a Síria se lembrem que segue havendo uma matança intermitente nela.
Por tudo o que foi dito, por muitas outras questões, pela lembrança das dezenas de milhões de detidos e desaparecidos e pelo fato de que se deve insistir em que manter criminosos no governo não colocará fim ao conflito, nem devolverá a estabilidade, mesmo que o mundo tenha se esquecido das valas comuns e da destruição de casas, é preciso retomar a atividade e ampliar seus horizontes para impedir que o esquecimento, em um mundo em que os meios de comunicação desempenham uma função determinante na hora de provocar reações e gerar causas para defender, engula a Síria definitivamente.
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Síria, a esquecida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU