10 Setembro 2020
Desde que em 2014 um documentário da BBC o batizou como “Batman mexicano”, Rodrigo Medellín leva com dignidade um apelido que pode ser considerado menos universitário do que engraçado. Mas o multipremiado pesquisador do Instituto de Ecologia da Universidade Nacional Autônoma do México não é apenas um estudioso apaixonado por cada uma das mais de 1300 espécies existentes de morcegos, e um ecólogo que durante a pandemia viu multiplicada esta parte de seu trabalho, bem como reduzidas as idas ao campo para realizar suas pesquisas. Medellín é também um analista que entende a encruzilhada civilizatória que a humanidade atravessa, da qual a pandemia é apenas uma emergência de tramas mais profundas que têm a mudança climática e a perda de biodiversidade como chave.
“Esta crise pode acabar com a civilização como a conhecemos. Provavelmente, existirão humanos, mas de modo muito diferente, sem Internet, viagens, supermercados. É uma mensagem triste e dura para as gerações futuras, mas em 100 anos viveremos em uma realidade mais parecida com a de Mad Max”, disse ao La Nación, nesta entrevista de quase uma hora, pelo Zoom.
De sua casa em Olivar de los Padres, nas redondezas de Cidade do México, onde aproveitou as restrições de mobilidade para fazer um catálogo dos pássaros e outros animais que o visitam, afirma: “É preciso buscar o culpado por esta situação no espelho. Somos nós”.
A entrevista é de Martín De Ambrosio, publicada por La Nación, 05-09-2020. A tradução é do Cepat.
Como o coronavírus afetou o seu trabalho com os morcegos?
Afetou-me mais que ao restante das pessoas, porque em seu início a pandemia pendurou mais uma nova medalhinha nos morcegos. Tive que sair para defendê-los em um montão de fóruns, entrevistas, palestras, aulas e outros.
Do que são acusados e por qual motivo decidiu defendê-los?
São acusados de que o vírus surgiu deles, algo que é completamente falso. Foi dito que o vírus SARS-CoV-2 se parecia muito com um vírus do morcego-de-ferradura. Isto disparou a triste e completamente infundada campanha de destruição de morcegos em todo o mundo. Saí em defesa para demonstrar que os vírus efetivamente se parecem em 96%, mas isso não quer dizer que um venha do outro. É como dizer que somos chimpanzés porque compartilhamos a mesma quantidade de genes.
A verdade é que esses dois vírus têm ancestrais que se separaram e se distinguiram em algum momento. Até mesmo se algum cientista louco quisesse pegar o vírus do morcego e colocar em um humano, não poderia nos infectar, pois em razão de algumas proteínas que possui, fica claro que deve fazer um hóspede intermediário.
Então, houve um hóspede intermediário entre os morcegos e os humanos?
Sim, e parece que é o pangolim. Mas o que me pergunto é por que insistimos nesta obsessão em buscar um culpado... Em todo caso, é preciso buscar o culpado por esta situação no espelho: somos nós. Não só os chineses, mas todos. Na Argentina e no México temos parte da culpa pela maneira como nos relacionamos com o meio ambiente e usamos os recursos naturais. Por nossa gana de comer carne de wagnu (um bovino de origem japonesa) e maçãs do Chile e frango que está produzido em granjas com confinamento. Tudo isso gera e promove passadas e futuras pandemias. Hoje tocou a China, mas tivemos surtos e influenza aviária em muitos lugares do mundo, por exemplo.
Como se sai desta roda?
Claro, como romper o círculo vicioso. Esta pandemia é uma enorme chamada de atenção. O planeta nos disse que precisamos ter cuidado no modo como fazemos uso dos recursos. Há pandemias em processo de criação em todos os ecossistemas do mundo. Virão novas, não há dúvidas, por isso é necessário ver o que podemos fazer, como mitigar as probabilidades de que surjam. Quando nós, seres humanos, chegamos e perturbamos os ecossistemas, nós os simplificamos e perdemos espécies, as espécies oportunistas desenvolvem um crescimento importante de população e seus patógenos podem ter condições para gerar um surto.
Isto é algo que diz respeito não apenas às secretarias de meio ambiente, porque a pressão dos ecossistemas vem de nós, da demanda por carne, tomate e maçãs, e define a destruição de ecossistemas. Temos essa parte de culpa. Necessitamos de perspectiva. O mesmo acontece com as granjas de porco e os estábulos de vaca para carne ou leite. E com os criadouros de salmão no Pacífico Sul. Colocam antibióticos neles, mas cedo ou tarde, irá escapar algum germe e não sabemos o que pode acontecer com os patógenos do salmão em seres humanos.
Como pedir mais restrições para sociedades que as sofrem por uma pandemia ainda em curso?
A mensagem mais importante para os leitores é que a única coisa que não vale é continuar vivendo a vida como até agora. Todos temos alguma mudança a fazer que não nos modifique a qualidade de vida, nem nos leve a viver nas cavernas. Cada um deverá fazê-la a seu modo. Não peço que você não coma mais carne ou frango, peço que considere o impacto de suas ações cotidianas. Por exemplo, quanto tempo você demora no banho? Seria necessário medir quantos minutos se gasta e, no dia seguinte, demorar um minuto a menos e, na semana seguinte, reduzir mais.
Temos que conhecer as consequências de nossas decisões, o quanto se usa o carro, as luzes acesas nas casas, o quanto de gás no forno. Novamente, não é parar todo o consumo, mas reduzi-lo um pouco. Há doze anos, disse que não iria comer camarão, porque sei que cada quilo extraído representa 40 quilos de outros animais, mortos e lançados novamente ao mar porque os barcos camaroneiros só carregam camarão. Não preciso desse peso em minha consciência, eliminei o camarão. Quando encontro um produto sustentável, aí como. Reduzi a carne bovina a uma ou duas vezes por semana. Antes, era todos os dias. Teremos que sofrer embates e mudanças na dieta porque precisamos ver a mudança.
No início das quarentenas, falou-se de um respiro para o planeta e de que a situação poderia diminuir as emissões poluentes. Foi assim?
Inicialmente, sim. Mas foi um respiro muito pequeno, que não acarretou benefício para a fauna. Sim para ver o seu potencial de recuperação de nossos golpes.
O dano que a humanidade provoca não é tão duradouro como acreditávamos?
O conceito que mais temos que enfatizar neste tema é que todos temos algo a fazer. Da presidência da Argentina ao que joga o lixo em seu edifício, todos temos algo para ajudar, da separação do lixo à observação da pegada ecológica de cada um. Esta é uma oportunidade para aprender lições.
Há um debate a respeito de se a resposta é individual ou se são necessárias decisões de empresários e governos.
O poder de uma pessoa é o que muda o mundo. É verdade que uma boa decisão de um executivo tem um impacto muito grande, mas essas decisões não ocorrem porque o executivo é uma pombinha branca, mas porque os cidadãos decidiram que já não tolerarão mais a extração do petróleo, e que vão agir para não consumir tanto. Não digo fechar a Amazon, para dar um exemplo, mas, sim, pensar em uma maneira de otimizar tudo, minimizar envios e ordens de coisas que vêm do outro lado do mundo.
Como segue a história da mudança climática, após esta pandemia?
Essa é outra das lições que temos que aprender. Esta crise é uma brincadeira de crianças se comparada ao golpe que vem da mudança climática. E é inevitável, porque por mais que comamos só relva e não tomemos banho, nem utilizemos o carro, a mudança climática tem uma inércia que demora muito para diminuir. Há países que vão perder superfície. Essa gente não terá para onde ir e se tornarão refugiados. Isto afetará nossos países e teremos um grande fluxo de migrantes. Isso irá recrudescer em todos os lados. É o que vem.
Além disso, as negociações na ONU foram suspensas este ano.
Tristemente, o modelo de reuniões e negociações está muito falido. Greta Thunberg e outros mostraram que as negociações do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudança Climática), o Acordo de Paris e outros, são de papelão, são feitas para sair da pressão dos cidadãos, mas não há compromissos reais. Até mesmo nos países mais ativos, como Alemanha e França, são tomadas medidas muito limitadas. Os acordos multilaterais da ONU não têm dentes, não acontece nada caso você se comporte mal.
Qual é a profundidade da crise? Exageram os que falam de uma possível extinção da humanidade?
A sexta extinção massiva de espécies, que está em curso, vai de mãos dadas com a pandemia, a mudança climática, tudo o que vemos no mundo. Não podemos dizer que a humanidade acabará, mas os efeitos concomitantes entre as crises ambientais podem acabar com a civilização como a conhecemos. Provavelmente, a espécie humana continuará existindo de modo muito diferente, sem Internet, viagens, supermercados. É uma mensagem triste e dura para as gerações futuras, mas eu vejo que em 100 anos viveremos em uma realidade muito mais parecida com a de Mad Max, com a lei do mais forte, do que o que vivemos hoje.
É tarde para cuidar do planeta e de nós mesmos?
Nunca é tarde, jamais. Sim, talvez para eliminar completamente os golpes da próxima pandemia, da mudança climática e da perda de biodiversidade, mas não para mitigá-las.
No que falhamos como espécie?
O que falhou em termos evolutivos e ecológicos foi que nosso cérebro cresceu de tal maneira que conseguiu resolver de maneira imediata todos os problemas do meio ambiente. E ao resolvê-los assim, temos uma gratificação instantânea e um reforço positivo dessa conduta, mas não temos um mecanismo de visão de longo prazo, temos que cultivá-la porque não vem com o nosso cérebro. O modelo de desenvolvimento econômico de todo o mundo é de gratificação imediata, riqueza imediata, o poder imediato de todos. E isso não é sustentável.
A este coquetel, soma-se o que se conhece como infodemia, a epidemia de uma má informação. Como enxerga a questão? É possível solucioná-la de algum modo?
A infodemia é outro vocábulo recente que nos abriu os olhos ao poder da Internet. Uma linha no computador modifica o resto de sua vida. O ruim é que há tanta informação que não podemos filtrá-la e pela morbidez e a predisposição humana tendemos a acreditar nas notícias negativas que nos tiram da realidade em que estamos vivendo. A única coisa que podemos fazer é que tudo, de uma declaração de Trump à possibilidade de vacina, seja lido com espírito crítico e que se vá à origem e à fonte. Implica uma reeducação, porque não temos esse costume.
Para finalizar, gostaria de voltar aos morcegos. Por que seria necessário cuidar deles?
Os morcegos fazem parte dos animais mais maltratados pelas pessoas. São temidos assim como as serpentes, escorpiões e tubarões. No entanto, os morcegos nos salvam todos os dias de nossas vidas, porque controlam as pragas do milho, do tomate e de outras plantações. Até a sua roupa, o algodão que usa, existe porque os morcegos comeram as pragas durante milhares de anos. Há sementes que dependem dos morcegos para a sua dispersão, como a figueira. Também intervêm na polinização, por exemplo, do agave tequilana. O mundo seria completamente diferente sem os morcegos. Só peço que os deixem em paz, não é necessário lhes dar de comer, nem os acariciar, deixá-los em paz é o suficiente.
Na Wikipédia e em outras entrevistas, é dito que seu apelido é “Batman mexicano”, depois que um documentário o mostrou nas pirâmides maias, com os mamíferos voadores. É correto? Considera apropriado?
(Sorri) Não me importo. Podem dizer que sou a vovozinha do Batman e estaria bem. O que quero é que a mensagem chegue às pessoas.
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“O coronavírus é uma brincadeira de criança diante do que a mudança climática trará”. Entrevista com Rodrigo Medellín - Instituto Humanitas Unisinos - IHU