22 Setembro 2020
Para Naomi Klein, a normalidade não é mais que uma “crise permanente”, por conseguinte, nada mais errado do que voltar cega e rapidamente a ela. A escritora, jornalista e ativista canadense acredita que este é um momento para parar e aprender as “lições” deixadas pela pandemia. Tudo está “rompido”: o planeta, a relação com a natureza, as relações coletivas, os lugares de cuidado. Mas com “alegria” as comunidades são chamadas a encarar um trabalho “cívico e intergeracional”, que ao mesmo tempo é um direito: o da reparação.
A reportagem é de María Daniela Yaccar, publicada por Página/12, 19-09-2020. A tradução é do Cepat.
Klein ofereceu a magistral conferência, “Os anos de reparação”, no marco da primeira Cúpula Mundial da Internacional Progressista. Sua exposição foi seguida por uma mesa-redonda da que participaram Tasneem Essop (África do Sul), Carola Rackete (Alemanha) e Aruna Roy (Índia). Nela expuseram a necessidade da redação de uma “carta magna internacionalista global”, que coloque a pobreza e a desigualdade no centro da cena.
“Toda vez que a normalidade volta, o vírus ganha. Isso é o que estamos vendo. Se voltarmos a certa ideia de crescimento, veremos pessoas morrendo com o vírus. Existe uma relação íntima”, definiu a autora de “Sem logo”. “Os líderes se apresentam como se estivessem em guerra. Que tal se tivermos outra metáfora deste vírus, que não seja pensar que é um inimigo mortal e diabólico?”, disse, para convidar a pensar nas “lições” deixadas pela pandemia, como uma “chamada de atenção”, de “encontro com a história”.
Em princípio, a Covid-19 “deixou claro que para os dirigentes deste mundo, e não só para Trump, a vida não importa nada”, manifestou. Também ensinou que ninguém deveria viver amontoado, em parte alguma do mundo, porque “o vírus foi mais fatal” em países com populações aglomeradas. Em terceiro lugar, muitos trabalhos outrora desprezados são os que atualmente são reconhecidos como essenciais. “Percebemos qual é o trabalho importante no mundo. Não é o que pensávamos”.
Outra coisa que o coronavírus ensina é que são as “comunidades” que “salvam o mundo”. “É um desastre a situação das pessoas que vivem sozinhas em seu apartamento e possuem toda a sua vida pelo Zoom. Nossa melhor tecnologia é a comunidade. Viver juntos, estar juntos, nos apoiar mutuamente”, ressaltou a autora de “A doutrina do choque”. “Há mais e mais pandemias que saltam do mundo animal. Estamos atacando a natureza, por isso nos responde. Para estar em boa saúde, precisamos aprender. A Covid nos contamina mais em espaços fechados e estamos muito melhor ao ar livre. Não são lições novas, mas às vezes precisamos de uma crise para que as pessoas entendam tais coisas”, expressou.
“O coronavírus nos ensina sobre os valores da natureza, o fundamental da economia do cuidado. Está nos dizendo que é preciso parar. Ir mais devagar para frear esta situação”, aconselhou. Caso contrário, retornaremos a uma normalidade que não é mais que “uma crise permanente”, “Iremos nos deparar com um muro, outra vez”, alertou.
Klein prefere falar de solidariedade em vez de empatia. Quando a sociedade se torna viciada no “crescimento perpétuo” e na “perspectiva do progresso”, quando se move na aceleração constante, não deixa espaço para aquele sentimento. Os seres humanos se tornam ilhas. “Quando seguimos neste ritmo, não temos tempo para nos fazer perguntas sobre as misérias que estendemos no mundo. O capitalismo moderno se baseou neste sistema racista e de exploração. Nosso modo de vida aumenta os riscos deste modo de vida. A pandemia pode permitir imaginar outro tipo de mundo. Talvez essa seja a lição fundamental”.
“O que faremos com um 2020, com tudo caindo ao redor?”, perguntou a escritora. A resposta que surge é a “reparação”, algo que poderia ser conquistado com “um plano urgente e coletivo”. Porque habitamos um mundo “rompido” em muitos sentidos. Um planeta “rompido”, com relações coletivas “rompidas”, lugares do cuidado – hospitais e escolas – rompidos, como resultado de um “menosprezo organizado há muitos anos”. A classe política está rompida. Enquanto, ao mesmo tempo, os mais ricos do mundo e as empresas se alimentam dos “Estados fracassados”. São felizes diante desta “ruptura total”.
Rompida a natureza. Rompida a nossa relação com a ecologia. “Faz uma semana que, onde eu estou, não vemos o céu, pela fumaça das florestas que estão queimando. As aves migratórias caem do céu, dezenas de milhões não podem fugir da fumaça. Não é uma surpresa. Sabemos que o planeta está rompido. É um momento para abrir nossos corações e acolher uma missão coletiva urgente. Novas histórias e narrativas”.
“A reparação é um marco no qual podemos trabalhar as esferas econômicas, ecológicas e políticas que estão rompidas”, definiu. É um direito e, ao mesmo tempo, um trabalho cívico e intergeracional. “É a prática do refazer, reparar, reequilibrar as coisas. Entre o coração e a mente, os indivíduos e suas coletividades, os humanos e o mundo natural. É preciso reparar as escolas e o sistema de transporte. Mas o mais importante é reparar este mundo baseado na supremacia dos homens brancos cristãos”, destacou.
Uma reparação inclui: desinvestir na Polícia, colocar fim à colonização e a morte “legalizada”, devolver aos povos originários o que lhes foi retirado. “Quando enxergamos qual é o problema, existe a possibilidade de nos libertar. Quando já não nos escondemos da verdade, damos um passo muito importante. Não podemos continuar sendo cegos. Deixar-nos enganar por um imperialismo barato e um patriarcado de má qualidade”.
“Não podemos voltar ao business como sempre. Continuar ignorando os fascistas que estão caminhando. As matas que estão queimando. Há uma necessidade de um plano urgente e coletivo. Não se trata de pausar a vida até que a vacina chegue, mas de nos fazer as perguntas reais para começar um processo de reparação e apoiar um Novo Acordo Verde. Temos que reivindicar a nossos governos que a reparação esteja no centro”, instou a autora.
Claro que não existe uma solução de um dia para outro para séculos de opressão. O processo “irá demorar”, porque “se fez muito dano”. Além disso, o capitalismo “tem a ilusão de que cada dia é um novo começo”. A reparação poderia tomar ferramentas dos movimentos feministas e anticoloniais. “Esta é uma oportunidade. Há um colapso da economia, das empresas, das companhias aéreas. Se não estamos fazendo este trabalho juntos neste momento, o que estamos fazendo? Iremos nos deparar com muitas outras perdas, choques e extinções. Se entendemos que a nossa missão fundamental é a reparação, temos que encontrar alegria neste processo. Porque agindo assim, iremos reparar a nós mesmos”.
A Internacional Progressista deve anunciar a qual tipo de progresso aponta e de qual deseja se distanciar. O progresso até aqui operou como “ideologia mortal e fatal”, impondo sua lógica sobre mulheres e camponeses, desenvolvendo uma “cadeia hierárquica” das relações sociais. “Levou à ideia de que nada vale no mundo, a não ser tudo o que destrói e transforma. E nos levou às crises que estamos enfrentando”.
No início, Klein rapidamente mencionou o tema da mudança climática, um dos eixos de discussão das “organizações do sul global, há muitos anos”. “Falamos de transformação do sistema, transição. Evo Morales lhe deu outro nome. Falamos dos direitos da mãe terra, em Cochabamba. No Canadá. falamos do Leap Manifesto. Tem muitos nomes. Há uma geração que tem a sua imaginação colocada nesta luta pelo tema climático. E existem muitos limites sobre como conseguir desenvolver uma perspectiva de esquerda comum: como iremos proteger o planeta e defender as comunidades empobrecidas”, sustentou.
“Todas estas problemáticas têm um ponto em comum: como podemos nos distanciar da energia fóssil, enquanto vamos construindo um mundo mais justo, para poder oferecer uma reparação às pessoas que foram despojadas de suas terras. Sempre houve uma tensão, mesmo que chamemos isso de Novo Acordo Verde ou de outra forma. Todas as mudanças desse nível de transformação obviamente terão um impacto sobre o PIB, e nossas sociedades estão profundamente ligadas à devastação ambiental e a necessidade de consumir mais energia. Se não estamos dispostos a passar estes riscos, não conseguiremos transformar a matriz de produção. Se não vamos à raiz do problema, o excesso de concentração dos mais ricos deste planeta, não iremos conseguir a transformação”.
Na mesa-redonda coordenada por David Adler e compartilhada com Tasneem Essop (África do Sul), Carola Rackete (Alemanha) e Aruna Roy (Índia) foi estabelecida a necessidade da construção de uma carta magna global que coloque a pobreza e a desigualdade no centro da cena.
“A crise das migrações, os refugiados climáticos, a pobreza, a injustiça social e a mudança climática estão conectadas. Há uma consciência crescente disto. Leva-nos a entender o sistema, que é a causa. Não precisamos pensar grande. Estamos falando de direitos básicos para a resiliência. Implica sistemas de saúde grátis, acesso à água, soberania alimentar e moradia. O centro são a desigualdade e a pobreza. Talvez não estejam nas grandes agendas políticas, mas é o centro das agendas dos movimentos e estamos em uma só luta, que é a derrubada de muros, e aí a ideia de uma carta magna global”, expôs Essop, especialista em clima, energia e justiça social. “Temos que ter uma carta global de direitos à saúde, educação, alimentação, a nossos rios e matas. Precisamos de governos mais transparentes, que prestem contas a seus povos. Um novo tipo de democracia”, concordou Roy, ativista.
Klein se uniu a estas ideias. “A urgência é a fome”, sentenciou. “Há muitas emergências que não estamos tratando como tais e outras que não são e as tratamos como tais”, acrescentou, e se referiu às aberturas apressadas nas escolas. Também disse que “não há contradição entre o sentido de emergência e a paciência”, para a qual a situação nos convida. Que se pode voltar às ruas, como ocorreu nas marchas de Black Lives Matter, com todas as precauções. “O risco é dentro: voltar a nos conter nos espaços previstos pelo capitalismo para armazenar humanos”.
As ruas pedem para substituir a arquitetura da infraestrutura do castigo pela do cuidado, e é o momento de escutar os mais “empobrecidos”. Nos Estados Unidos, pontualmente, são necessários mais “governantes negros”, disse quem se apresentou como “veterana da campanha de Bernie Sanders”. “A narrativa apocalíptica é profunda e enraizada. É uma perspectiva de redenção, de que poucos de nós sobreviveremos. Precisamos alimentar outra imaginação. As pessoas estão cultivando outro futuro, temos que visibilizá-lo. Estão dispostas. Prepara-nos para outra fase, outro momento. Para ir além do já era, vamos às compras. É preciso evitar essa narrativa e abrir outras possíveis. É importante construir esta infraestrutura, é o mandato da Internacional Progressista, para que a sociedade seja mais do que um slogan”, concluiu Klein.
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Naomi Klein: lições da pandemia e a urgência de um plano de reparação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU