04 Setembro 2020
A trajetória teológica do catolicismo conservador estadunidense é uma das provas de que os Estados Unidos de Trump não são apenas um parêntese.
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado em La Croix International, 03-09-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Sou católico e anticristão.” Era assim que Benito Mussolini descrevia a sua relação com a Igreja.
Apesar das muitas diferenças entre a Itália sob o fascismo e a presidência de Donald Trump, a autodefinição de Mussolini também poderia ser aplicada a Trump, dada a forma desavergonhada com que o presidente dos EUA explorou a carta da religião como um “instrumentum regni”.
Isso está ocorrendo desde 2015, quando ele começou a sua primeira campanha presidencial. E se intensificou ao longo dos últimos meses, graças em parte à colaboração de organizações midiáticas católica conservadoras com sede nos EUA, que descobriram que essa é uma forma de lucrar com o seu desprezo pessoal pelo Papa Francisco.
Assim como Mussolini, Donald Trump é apenas nominalmente cristão e tem zero credibilidade pessoal como uma pessoa de fé. Ele também está usando a religião como um instrumento de propaganda, assim como “Il Duce” fez.
Trump está se inserindo nas “guerras culturais” em nome das “questões da vida” nos EUA, assim como Mussolini reuniu o apoio dos católicos contra o comunismo na Itália pós-Primeira Guerra Mundial.
Mas há também dinâmicas muito diferentes entre o catolicismo italiano dos anos 1920 e o catolicismo dos EUA hoje.
Os católicos da Itália e de outras partes da Europa aprenderam com a trágica experiência de duas guerras mundiais como a credibilidade da sua Igreja foi destruída pelo apoio delas a regimes autoritários.
Assim, o catolicismo declarou o fim da Era Constantiniana e virou a página de séculos de agostinianismo político que, durante a cristandade, forneceu a justificativa teológica para a Igreja reivindicar autoridade sobre o Estado e para que líderes antidemocráticos e autoritários usassem a violência como instrumento político.
Perto do fim do seu pontificado e pouco antes de sua morte, Pio XI levantou sua voz contra Mussolini e Hitler. Pio XII abriu as portas para a aceitação da democracia já antes do fim da Segunda Guerra Mundial com o seu discurso de Natal de 1944.
Avancemos rapidamente para o século XXI.
O catolicismo europeu notou a crise da ordem mundial pós-1945, visível especialmente através da crise do projeto europeu desde, pelo menos, 2005. Tanto o Vaticano quanto as hierarquias católicas criticaram alguns aspectos da democracia liberal, mas sem nunca adotar ideologias iliberais.
É uma situação diferente do catolicismo na Europa oriental, onde a globalização das guerras culturais estadunidenses encontrou um solo fértil.
Mas em nenhum outro lugar como nos EUA o aprofundamento das fissuras ideológicas dentro do catolicismo caminhou paralelamente e de forma espelhada em relação às fissuras entre os dois partidos políticos.
O atual “momento iliberal”, que está devastando as elites do catolicismo estadunidense, mostra as raízes muito diferentes entre as culturas políticas dos católicos do outro lado do Atlântico.
Durante a Guerra Fria, o anticomunismo dos católicos da Europa fazia parte da sua experiência de aprendizagem de ter lidado com o fascismo alguns anos antes. Isso trouxe um certo grau de aceitação dos valores liberais, democráticos e constitucionais.
Isso foi especialmente visível no Concílio Vaticano II (1962-1965) e na sua declaração sobre a liberdade religiosa, Dignitatis humanae.
Mas do outro lado do Atlântico – e apesar de a Dignitatis humanae ter sido o documento conciliar mais influenciado por um teólogo estadunidense, John Courtney Murray SJ – a cultura política das elites católicas não absorveu, pelo menos não na mesma medida, a aceitação dos valores liberais e democráticos que estão entre as vítimas das guerras culturais.
Vale a pena perguntar se o anticomunismo das elites católicas estadunidenses permaneceu mais semelhante à postura ideológica pré-1945 e pré-Vaticano II típica da societas perfecta.
Paralelamente, no conservadorismo estadunidense e na Igreja Católica dos EUA, “os princípios liberais eram valorizados apenas por serem um instrumento eficaz para destruir o comunismo".
Existem diferenças significativas entre a atitude dos católicos que apoiavam Mussolini nos anos 1920-1930 e a dos católicos brancos conservadores que apoiam Trump hoje.
Na verdade, os católicos italianos não eram simplesmente espectadores do projeto político e ideológico de Mussolini. Alguns deles estavam submetidos à tentação do autoritarismo e eram ativos no fato de dar cobertura moral e religiosa aos impulsos antidemocráticos e antiliberais.
Eles eram intransigentes quando se tratava de combater o comunismo, mas também o princípio liberal de distinguir entre Igreja e Estado.
E defendiam os efeitos jurídicos civis do antijudaísmo teológico (em alguns casos proeminentes, até mesmo após o colapso do fascismo), como nos lembra a abertura dos Arquivos Vaticanos para o pontificado de Pio XII.
Mas, ao mesmo tempo, os católicos italianos também alimentavam uma boa dose de cinismo, conveniência e astúcia, junto com a consciência não revelada da incompatibilidade, em última análise, entre o projeto totalitário fascista e a visão católica do Estado e da sociedade.
Bem antes do colapso do fascismo entre 1943 e 1945, muitos católicos italianos e autoridades vaticanas entenderam que o regime de Mussolini não iria durar.
Embora de forma autossatisfatória, eles entenderam, especialmente depois das leis raciais de 1938, os perigos trazidos para a Igreja pelas convergências ideológicas entre fascismo e nazismo.
Enquanto cardeais e bispos na Itália e no Vaticano faziam acordos com o regime fascista, uma geração de jovens católicos leigos nos anos 1930 e início dos anos 1940 estava secretamente formulando e desenvolvendo ideias – sob o olhar atento da hierarquia – para a Europa pós-fascista (não apenas a Itália), enquanto as gerações mais velhas atualizavam sua cultura política à luz das experiências da guerra e dos confrontos ideológicos com o autoritarismo na Europa.
Entre esses católicos estavam os reconstrutores da Europa e os fundadores daquela que mais tarde se tornou a União Europeia.
Talvez, daqui a algumas décadas, poderemos ler os diários de proeminentes prelados católicos dos EUA e as cartas trocadas entre eles para descobrir o que eles estão realmente dizendo hoje sobre Donald Trump.
Mas será tarde demais para redimi-los. O que pode ser entendido, embora não perdoado, sobre a relutância da cultura política dos católicos em se engajarem com a democracia e o antifascismo nos anos 1930 e 1940, é muito mais difícil de entender em 2020.
Não é apenas um problema que afeta a Igreja hierárquica, mas também as elites intelectuais e empresariais católicas dos EUA.
Há uma polarização mais profunda que não existe apenas entre os eleitores católicos brancos, mas também entre aqueles que têm voz na definição do futuro institucional e intelectual do catolicismo.
Entre eles, encontram-se acadêmicos e escritores, assim como clérigos mais jovens e as elites intelectuais de uma das Igrejas Católicas mais militantes do mundo.
Há uma convergência e um alinhamento entre o trumpismo instintivo encontrado em setores do eleitorado católico e o esforço calculado de membros das elites para dar cobertura a Trump através do grito de guerra do antiliberalismo.
Uma forma de ver esse antiliberalismo católico em apoio a Trump é a resposta do alt-right ao momento presente, a sua reação à crise do projeto do catolicismo moderno.
Mas para aqueles que estão familiarizados com a história, há outra forma de ver isso. O recurso deles a instintos antidemocráticos segue a veia da família ideológica dos católicos. Isso está no álbum de fotos do catolicismo do século XX no hemisfério ocidental.
O alinhamento público – um endosso, na verdade – da hierarquia católica a um partido político é sempre problemático; é ainda mais problemático em um sistema bipartidário, dadas as divisões que isso cria no nível eclesial. Neste caso do Partido Republicano de Trump, é ainda mais perigoso.
Esse é um problema destinado a durar mais do que Trump, aconteça o que acontecer no dia 3 de novembro.
Não é apenas uma questão de conveniência política; isto é, o fato de alguns prelados se alinharem com o partido no poder a fim de obter apoio para as escolas católicas e as questões ligadas à vida. Há também um alinhamento teológico entre os católicos antiliberais e a política conservadora trumpiana nos EUA.
Entre 1945 e o período pós-Vaticano II, a Igreja abandonou o catolicismo imperial, rejeitou o nacionalismo e deu os primeiros passos em direção a um catolicismo pós-colonial e global.
Mas, se olharmos para os argumentos levantados pelos católicos antiliberais estadunidenses hoje, pode-se ver a tentativa de negar a legitimidade dessa trajetória – não apenas pela teologia católica pós-Vaticano II, mas também pelo magistério católico oficial em relação à aceitação da democracia liberal e constitucional.
Historicamente, a Igreja Católica dos EUA esteve na vanguarda do catolicismo ao lidar com a democracia, enquanto o Vaticano representava a recusa intransigente em aceitar ideias políticas modernas. O que estamos vendo hoje é uma perigosa inversão de papéis.
Mas isso não se deve a uma radicalização da agenda política do Vaticano. Pelo contrário. Deve-se à tentativa dos incensadores católicos do trumpismo de dar vazão teológica a ideias e práticas que não representam mais o ensino católico.
Por exemplo, os bispos dos EUA fizeram um surpreendente alinhamento com Trump na questão da liberdade religiosa.
Eles fizeram isso enquanto o presidente continua ameaçando os direitos religiosos dos muçulmanos no país, sendo arrogante o tempo todo sobre a liberdade religiosa dos cristãos que vivem em países administrados por autocratas que Trump admira.
Essa involução da teologia da liberdade religiosa, que os católicos conservadores já não consideram mais um direito de todos os indivíduos, assemelha-se mais à doutrina medieval da “libertas ecclesiae”, a liberdade da Igreja.
Ela não é um mero defeito, mas sim uma característica da sua tentativa de subverter o ensino católico oficial pós-Vaticano II.
Não é algo que pode ser encontrado apenas nos relatos muitas vezes embaraçosos e involuntariamente risível das mídias sociais de católicos proeminentes, tanto leigos quanto clérigos. Ela encontrou um caminho aberto na vida institucional da Igreja.
Basta olhar para a maneira como a Conferência dos Bispos dos EUA enquadrou o argumento da liberdade religiosa ao longo dos últimos 10 anos: uma estratégia jurídica que minava sutilmente a teologia da liberdade religiosa do Vaticano II.
Nos últimos dias, os “maître à penser” pró-Trump cristãos têm feito cada vez mais apelos à violência em defesa da “lei e da ordem”.
Pode-se esperar que os bispos digam algo sobre a violência. Mas provavelmente eles não o farão, e não por conveniência política.
Há uma crise teológica no catolicismo dos EUA que provavelmente não vai desaparecer quando Trump for embora, seja lá quando for. Essa crise teológica não será resolvida pelas urnas.
As elites conservadoras católicas dos EUA desaprenderam a cultura democrática.
E esse não é um problema apenas para a Igreja Católica. É um problema para todo o país, onde os desvios morais e teológicos de importantes setores do evangelicalismo branco estão sendo acompanhados por esse tipo de desvio católico que não é apenas político, mas também teológico.
A trajetória teológica do catolicismo conservador estadunidense é uma das provas de que os EUA de Trump não são apenas um parêntese e não estão destinados a terminar com a eleição de um novo presidente, por mais urgente e necessário que isso seja.
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Catolicismo pró-Trump e as consequências políticas de uma crise teológica. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU