02 Setembro 2020
O presidente Xi Jinping generosamente elogiou o primeiro livro do economista, O Capital no Século XXI, que critica as falhas do capitalismo. Mas Piketty diz que o seu mais recente livro sobre a desigualdade não se encontra disponível na China por ele ter se recusado a permitir que trechos críticos das diferenças de riqueza no país fossem censurados.
A reportagem é de Sidney Leng, publicada por South China Morning Post, 30-08-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Quando em 2013 o economista francês Thomas Piketty publicou o aclamado livro O Capital no Século XXI, texto profundamente crítico do moderno capitalismo e das desigualdades, foi um sucesso imediato na China, vendendo centenas de milhares de exemplares. O livro de quase setecentas páginas recebeu elogios do presidente Xi Jinping, quem, num discurso de 2015, usou os achados meticulosamente pesquisados sobre a desigualdade emergente nos Estados Unidos e na Europa para alegar que a economia política marxista continuava tão relevante quanto sempre.
Porém, o novo livro de Thomas Piketty, intitulado Capital e Ideologia, que expande o tema da desigualdade, aparentemente não terá o mesmo sucesso depois que caiu na mira dos censores chineses.
Publicado fora da China ano passado, ele ainda está para ser lançado no país devido a demandas do editor chinês de Piketty, o Citic Press Group, de que todas as partes relacionadas à desigualdade na China sejam eliminadas.
“Eu recusei essas condições, portanto a essa altura parece que Capital e Ideologia não será publicado na China”, contou Piketty por e-mail ao jornal South China Morning Post.
Em reposta, o Citic Press Group falou que se sente honrado por trabalhar com Piketty em O Capital no Século XXI, e que os direitos autorais de seu novo livro ainda estão sendo negociados.
A censura de livros é muitas vezes uma pré-condição para lançamentos na China, onde o Partido Comunista mantém um forte controle sobre o que pode ser publicado, transmitido e compartilhado on-line.
Embora o livro do economista francês não vise de forma alguma a China, ele tem várias páginas tratando da tolerância do partido para com o aumento da desigualdade, com a opacidade de dados oficiais sobre a renda e a destruição da riqueza e com o paradoxo entre um sistema político socialista e uma sociedade altamente desigual.
A parcela da riqueza da China nas mãos dos 10% mais ricos da população era em torno de 40 a 50% no começo da década de 1990, nível de desigualdade abaixo do que Suécia. Mas, em 2018, este número subiu para quase 70%, perto das sociedades altamente desiguais, como a dos EUA, segundo dados citados por Piketty.
O autor acrescenta que as informações públicas sobre renda e distribuição de riqueza na China é ainda mais escassa do que na Rússia, outro país altamente desigual.
Em 2006, Pequim ordenou que “os contribuintes de alta renda” declarassem seus rendimentos anuais acima de 120 mil yuans (17.400 dólares). No entanto, a publicação dos dados se encerrou em 2011.
Piketty descreve o paradoxo de um país liderado por um partido comunista, o qual sustenta o “socialismo com características chinesas”, que não tem um imposto sobre herança e dados de nenhuma espécie sobre a transferência de riqueza entre as gerações.
“Mas agora que dois terços do capital chinês está em mãos privadas, é surpreendente que aqueles que mais se beneficiam da privatização e da liberalização da economia têm autorização para passar toda a riqueza que têm aos filhos sem nenhum imposto, nem mesmo um imposto mínimo”, escreve Piketty.
“Portanto, encontramo-nos no começo do século XXI em uma situação altamente paradoxal: um bilionário asiático que quiser passar à frente sua fortuna sem pagar nenhum imposto sobre herança deverá se mudar para a China comunista”.
Piketty também escreve que há poucos sinais de uma reforma concreta para combater a desigualdade sob a liderança de Xi.
“Não está claro se prender oligarcas ou funcionários do Estado que se enriqueceram de forma visível e escandalosa seja suficiente para enfrentar o desafio”.
A desigualdade e suas causas são tópicos delicados na China, mesmo enquanto Pequim se prepara para declarar, no final deste ano, que atingiu sua meta de alcançar uma “sociedade amplamente próspera” na qual as pessoas geralmente se sentem seguras e ricas.
Ao mesmo tempo, a crescente desigualdade de riqueza na China se tornou um problema grande demais para ser ignorado, especialmente porque a China está adotando uma nova estratégia econômica de “dupla circulação”, que terá como foco o aumento do consumo interno.
Em maio, o primeiro-ministro Li Keqiang disse que havia 600 milhões de chineses vivendo com uma renda de 1 mil yuans (145 dólares) ou menos por mês, o que desencadeou um amplo debate sobre se a China é uma nação rica ou pobre.
Estes números, que posteriormente foram confirmados pela agência de estatísticas da China, seguiram-se a um relatório do banco central no qual se constatou que os 20% mais pobres das famílias urbanas detinham apenas 2,6% da riqueza do país, enquanto os 10% mais ricos possuíam 47,5%.
A sociedade imaginada por Karl Marx, com base no princípio “de cada um de acordo com sua capacidade, a cada um de acordo com sua necessidade”, ainda é uma perspectiva remota na China.
No discurso de 2015, Xi disse que O Capital no Século XXI, de Piketty, “gerou um debate acalorado na comunidade acadêmica internacional” e que seus argumentos sobre o impacto do “capitalismo desenfreado” na desigualdade de riqueza eram “dignos de nosso pensamento profundo”.
“Os fatos mostram que a contradição inerente entre a socialização da produção e a posse privada dos meios de produção ainda existe no capitalismo (…) após a crise financeira internacional, muitos estudiosos ocidentais revisitaram a economia política marxista e O Capital para refletir sobre as desvantagens do capitalismo”, disse Xi.
Para Piketty, no entanto, os elogios de Xi a seu livro anterior oferecem pouco conforto.
“Esta é uma citação muito interessante, de fato”, disse Piketty. “O que considero realmente triste é que até agora o meu novo livro Capital e Ideologia não foi publicado ainda na China devido à censura”.
O Instituto Humanitas Unisinos – IHU promove o ciclo de palestras A construção histórica da desigualdade: Análise à luz do livro Capital e Ideologia de Thomas Piketty, a ser realizado de 29 de setembro a 27 de outubro de 2020, na modalidade EAD. As atividades serão transmitidas ao vivo através da plataforma Microsoft Teams e do YouTube. Mais informações sobre a programação e inscrições podem ser consultadas aqui.
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China censura livro de Thomas Piketty que toca na crescente desigualdade do país - Instituto Humanitas Unisinos - IHU