20 Julho 2020
O economista francês Thomas Piketty, autor de “Capital e Ideologia”, seu mais recente trabalho, lançado agora no Brasil, diz que as elites brasileiras cometem um erro ao perpetuar o abismo social no país, comprometendo o futuro da Nação. “O Brasil, face à pandemia, precisa de uma verdadeira política social, de investimento na saúde e de um sistema de renda mínima”, alerta.
Os trechos das entrevistas foram editados e publicados por Agência PT, 18-07-2020.
“A economia funciona com um chefe de empresa que, quando acumula alguns milhões de euros, já é imenso sucesso. Mas nas sociedades com mais milionários e mais concentração da fortuna, não é verdade que elas têm mais inovação e mais crescimento. É o contrário. Na verdade, precisamos da redistribuição permanente da renda”. A declaração é do economista Thomas Piketty, que lança no Brasil o best-seller “Capital e Ideologia”, em que trata da ampliação da desigualdade no mundo.
Ele alerta que o Brasil precisa se debruçar sobre suas desigualdades, se quiser seguir ocupando algum espaço de relevância entre as civilizações. “Acho que as elites brasileiras que recusam redistribuir a riqueza fazem um erro histórico, porque a longo prazo todo mundo pode se beneficiar de um sistema com mais justiça econômica, mais justiça social e prosperidade e desenvolvimento do que numa sociedade muito desigual que é o Brasil de hoje”, aponta.
Piketty lembra que a agenda econômica neoliberal, imposta às nações nos últimos 40 anos, com Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margaret Thatcher, no Reino Unido, virou um problema para o desenvolvimento humano. Ele alerta para aumento da desigualdade no Brasil, uma das nações com o maior abismo entre ricos e pobres do mundo, em que 50% mais pobres no país detêm em termos de renda apenas 10% da riqueza total, enquanto os 10% mais ricos têm mais de 50%.
“O Brasil, atualmente, é um país, do ponto de vista da repartição da renda e do patrimônio, ainda mais desigual do que a Europa de antes da 1ª Guerra Mundial”, adverte. “Se olharmos a propriedade, seria ainda mais extremo. Os 50% mais pobres teriam 2% ou 3%, enquanto os 10% mais ricos teriam 70% a 80% [de tudo]. São níveis de desigualdade que tínhamos na Europa no fim do século 19 ou começo do século 20”.
Piketty elogia as políticas sociais adotadas pelo PT nos governos Lula e Dilma, reconhecendo que ambos atenuaram as desigualdades sociais seculares no país. Apesar disso, adverte que faltou aos governos petistas mexer na estrutura social, com a adoção de uma reforma tributária que permitisse taxar os ricos para o financiamento de mais políticas sociais no planeta. Mas, ele reconhece as limitações do jogo político brasileiro.
O economista francês, de 49 anos, que esteve no início do ano com Lula e Dilma em Paris, durante a turnê dos ex-presidentes pela Europa, avalia que o sistema político e representativo nacional tem limitações. “No Brasil, mesmo sendo eleito com 60% dos votos, o presidente pode não conseguir conquistar maioria no Congresso. E isso não é uma mudança simples de ser feita”, observa.
De acordo com Piketty, este é um desafio para as forças progressistas brasileiras. “Em muitos países, como França e Reino Unido, se o candidato consegue 51% dos votos, tem maioria muito larga no Parlamento”, compara. “Em seguida, se sua política não funciona, vamos ver na eleição seguinte. O sistema político do Brasil não permite isso e demanda uma reflexão”.
Após “Capital no Século XXI”, em seu novo livro o senhor coloca a ideologia no centro da discussão. Por quê?
Minhas pesquisas me levaram à conclusão de que isso é a mais importante determinante das desigualdades. No livro anterior, eu já apontava a importância do fator político na redução das desigualdades no curso do século XX. A novidade no novo livro é que ampliei o estudo sobre desigualdades além dos países ricos. Estudo países no resto do mundo, como Índia e, em parte, o Brasil – sociedades escravagistas, coloniais. E todos esses novos dados me levaram à conclusão de que, se tentamos explicar os diferentes níveis de desigualdade na história com fatores estritamente econômicos e tecnológicos, culturais às vezes, não vamos muito longe.
Por quê?
Não conseguimos explicar essa diversidade incrível, as transformações que observamos na história. Há países que passaram de muito desiguais para se tornar muito igualitários, como a Suécia, que há um século era ainda mais desigual que o Brasil de hoje. As coisas podem mudar muito rapidamente. É um livro talvez mais otimista do que o anterior, em que insisto que há movimento de longo prazo na direção da redução das desigualdades. Há uma forma de aprendizado da justiça na história. A redução das desigualdades permitiu também mais prosperidade econômica, mais crescimento. Todos os países que ficaram ricos chegaram a isso reduzindo suas desigualdades durante o século 20. Ao mesmo tempo, insisto que não é um processo determinista, a situação pode virar, depende de mobilização política, ideológica, das sociedades.
Ou seja, a desigualdade é ideológica e política, e não realmente econômica ou tecnológica?
Exato. Mas especifico que, quando digo isso, não quero dizer que é fácil reduzir as desigualdades e que a igualdade absoluta seria a solução. Penso que vamos sempre ter um certo nível de desigualdade, simplesmente porque as pessoas são diferentes, tem projetos diferentes. É complicado encontrar o bom nível de igualdade ou desigualdade. É por isso, para mim, que o termo ideologia no livro não é forçosamente negativo.
Por quê?
Às vezes tem ideologia que vai longe demais para justificar a posição de certos grupos em relação a outros, notadamente da parte de grupo dominante. A abordagem no meu livro é de que as sociedades humanas precisam de ideologia, porque precisam tentar dar sentido ao nível de suas desigualdades, de suas estruturas sociais em geral. Não há sociedades na história em que os ricos se contentam em dizer que eles são ricos e os outros são pobres, e é sempre assim. Na verdade, os grupos dominantes vão sempre tentar explicar que são ricos, mas é do interesse dos mais pobres, porque é isso que permite manter a ordem nas sociedades de propriedades, manter a estabilidade social, inovação técnica. Os diferentes discursos são às vezes em parte hipócritas, mas são também em parte plausíveis. Tento dar a parte de verdade a esses diferentes discursos ideológicos para tentar tirar lições em seguida.
O senhor dá o exemplo da Suécia. Quais fatores foram mais importantes na transformação do país?
Não conhecia bem toda a história política da Suécia antes de fazer pesquisas para este livro. Um dos elementos que mais me impressionaram foi a que ponto a Suécia, que vemos hoje como um dos países muito igualitário, na verdade até o começo do século 20 era um dos mais desiguais na Europa. Em particular o sistema de direito de voto que vigorou de 1865 a 1911 era muito mais sofisticado na sua organização da desigualdade do que tudo que vimos nas sociedades europeias ou latino-americanas no século 19.
Em muitas dessas sociedades, somente os mais ricos tinham o direito de voto. Na França, no Reino Unido, em 1840, por exemplo, se você estava entre os 1% ou 5% mais ricos, tinha direito de voto – do contrário não tinha esse direito. Os suecos, entre 1865 e 1911, levaram essa lógica bem mais longe: somente os 20% mais ricos tinham direito de voto, mas no interior desses 20% esse direito variava conforme o nível de sua riqueza. Havia dezenas de municípios na Suécia onde apenas um eleitor tinha mais de 50% do direito de voto. E mesmo as empresas tinham direito de voto em proporção do capital investido no município.
Você vê aí o nível de sacralização da propriedade em que mesmo Donald Trump hoje não ousaria propor como sistema político. E isso mudou de maneira relativamente pacífica. Uma mobilização de sindicatos e da social- democracia que chegou ao poder em 1932 colocou a capacidade estatal do país a serviço de um programa completamente diferente. Aliás, hoje na Suécia algumas dessas lições históricas estão talvez esquecidas. Desde a crise bancária de 1991 entramos em outra fase histórica, suprimiu-se imposto sobre a fortuna, sobre a herança, e isso pode fragilizar o modelo sueco no longo prazo. Porque a lição da história é que as coisas podem mudar num sentido ou em outro. A mudança histórica e institucional pode ocorrer muito mais rapidamente do que achamos.
O senhor estudou a situação de mais países, incluindo Índia e Brasil. No caso brasileiro, o que chamou mais sua atenção, e também em comparação a outros países com enormes desigualdades?
Várias coisas me interessaram no estudo do caso brasileiro. Primeiro, o nível geral de desigualdade de renda e da propriedade no Brasil é muitíssimo elevado. Quem pensa que é preciso esperar para se tornar mais rico para redistribuir comete um enorme erro. O Brasil, atualmente, é um país, do ponto de vista da repartição da renda e do patrimônio, ainda mais desigual do que a Europa de antes da 1ª Guerra [1914-1918].
Só para termos uma ordem de grandeza: os 50% mais pobres no Brasil em termos de renda têm apenas 10% da renda total, enquanto os 10% mais ricos têm mais de 50% do total. Se olharmos a propriedade, seria ainda mais extremo. Os 50% mais pobres teriam 2% ou 3%, enquanto os 10% mais ricos teriam 70% a 80% [de tudo].
São níveis de desigualdade que tínhamos na Europa no fim do século 19 ou começo do século 20. Mas vimos na história, na Europa, que não eram necessários para o desenvolvimento econômico, e eram mesmo uma limitação. Porque, quando houve grande redistribuição na Europa em seguida a choques dramáticos, em grande parte depois de duas guerras mundiais, mas também à introdução de um sistema tributário mais progressivo, isso permitiu aumentar o crescimento.
Após a Segunda Guerra [1939-1945], passamos a ter crescimento que é até hoje maior do que havia antes da Primeira Guerra com uma sociedade muito desigual da época. Há lições da história europeia e da visão elitista da economia que havia na Europa até o inicio do século 20 que podem ser úteis para o Brasil. Acho que as elites brasileiras que recusam redistribuir a riqueza fazem um erro histórico, porque a longo prazo todo mundo pode se beneficiar de um sistema com mais justiça econômica, mais justiça social e prosperidade e desenvolvimento do que numa sociedade muito desigual que é o Brasil de hoje.
O senhor menciona no livro que os resultados do PT foram pouco expressivos na luta contra as desigualdades. E que as políticas sociais do partido no governo foram financiadas pela classe média, e não pelos ricos…
Não quero ensombrecer a situação. Os governos do Partido dos Trabalhadores permitiram, de toda maneira, melhorar a situação dos 50% mais pobres no Brasil graças a aumento de salário mínimo e política de transferência como Bolsa Família. Isso é muito positivo. O problema é a limitação dessa política porque, como não houve reforma tributária ambiciosa, para contribuição dos 10% mais ricos, a melhora relativa dos 50% mais pobres foi feita mais em detrimento dos 40% do meio [classe média]. No Brasil não teve reforma fiscal, nem com [o ex-presidente] Lula, que tornasse o sistema mais progressivo para permitir reduzir as desigualdades. Isso traz questões de fundo também sobre o sistema político e eleitoral brasileiro.
Como assim?
O Brasil é um país onde o candidato pode ter 60% na eleição presidencial, mas depois não tem maioria no Parlamento e é obrigado a fazer coalizões, negociações, o que sem dúvida contribuiu a perpetuar uma certa opacidade da corrupção e não permitiu adotar políticas que precisariam de uma maioria parlamentar. Em muitos países, como França e Reino Unido, se o candidato consegue 51% dos votos, tem maioria muito larga no Parlamento. Em seguida, se sua política não funciona, vamos ver na eleição seguinte. O sistema político do Brasil não permite isso e demanda uma reflexão.
O senhor parece decepcionado no livro com a social-democracia, não?
Sim. Estou decepcionado. A social-democracia, em particular na Europa, mas também em outras partes do mundo, na América do Norte, na América Latina com suas variantes, talvez menos ambiciosa, conseguiu de toda maneira coisas formidáveis. Reduziu a desigualdade como jamais vimos antes, mantendo ao mesmo tempo um nível de crescimento e prosperidade como nunca antes.
O problema é que, a partir dos anos 1980-90, a social-democracia não conseguiu pensar a globalização de maneira socialista. O grande erro dos partidos da social-democracia europeia foi avançar na livre circulação de capitais sem nenhum sistema de imposto mundial em comum. Porque essa política de liberalização generalizada de fluxos de capitais teve efeito em todo lugar no mundo.
Foi um erro histórico, porque impede redistribuir o quanto quisermos, impede de estabelecer sistema de justiça fiscal e termina por minar o contrato social. Ou seja, as classes média e populares acabam pagando taxa de imposição mais elevada do que os mais ricos, que, por sua vez, podem colocar seu capital em qualquer lugar. E isso termina por questionar a legitimidade do partido social-democrata. Também há novos desafios.
Quais?
Como a questão da justiça educativa e entrada no ensino superior. Era mais fácil para a social-democracia europeia nos anos 1950, 60, 70 ter objetivo de igualdade educativa. Mas depois não foram mais ambiciosos. Esses partidos acabaram se tornando o que eu chamo de “esquerda brâmane” no meu livro, pois atraem o voto de eleitores mais educados, mas perdem a confiança do eleitorado popular. É preciso recuperar uma ambição mais forte de transformação do sistema econômico, fiscal, educativo, se a democracia-social quer realmente mudar as coisas.
Com a pandemia de covid-19, há risco de sairmos dessa crise com mais desigualdades nas sociedades em geral?
É muito cedo para dizer. Pelo momento, tenho a impressão de que essa crise vai legitimar mais despesas sociais, mais investimentos nos sistemas de saúde, obrigar os governos a ter mais imaginação sobre dívida pública. Na Europa, os países vão, enfim, começar a ter uma dívida pública comum. Isso é importante não só para a Europa.
A questão é se uniões regionais no plano comercial e financeiro podem se tornar também uniões com orçamento comum, modelos de desenvolvimento comuns, endividamento comum, planos de relance. Há toda uma reforma atualmente da zona monetária única na África Ocidental.
Na Europa, é preciso mudar a regra de unanimidade para se ter imposto ou relance em comum. Enquanto persistir esse sistema de decisão, vai ser muito difícil a Europa votar programa de relance econômico realmente ambicioso, impostos justos.
Uma das conclusões de meu livro é que, para mudar a economia, é preciso mudar as regras do sistema político. Se isso não for feito ao mesmo tempo, fazemos o jogo dos que apostam no retorno das fronteiras, retorno dos conflitos de identidades como vemos com Marine Le Pen na França, [Matteo] Salvini na Itália, Bolsonaro no Brasil. Estamos num momento decisivo, em que todas as trajetórias são possíveis e diferentes países não vão forçosamente seguir a mesma direção. As coisas estão muito abertas.
Temos pandemia, tensões geopolíticas fortes, guerra comercial. Uma reforma do capitalismo é possível nesse caos internacional?
Penso que não só é possível como é necessário. O crescimento de correntes nacionalistas e xenófobas ameaça continuar se não repensarmos alternativas ao sistema econômico atual. Se explicamos às pessoas que não há alternativa e que só há uma política econômica possível, acabamos nos refugiando em controle de fronteiras como a única coisa que os Estados podem ainda controlar. É indispensável reabrir o debate econômico sobre como organizar a globalização, a economia.
Como o senhor vê Bolsonaro?
Às vezes penso que ele é um Trump piorado. E me inquieta muito a evolução da situação no Brasil. Eu tenho vontade de dizer a Bolsonaro e a seus apoiadores que nunca é tarde para mudar. Na história, vemos muitos governos que mudam sua ideologia quando eles estão no poder face a novos desafios a enfrentar. O Brasil, face à pandemia, precisa de uma verdadeira política social, de investimento na saúde, sistema de renda mínima, e espero que o Brasil vai chegar lá.
Alguns críticos chamam o senhor de ingênuo, com propostas de superar o capitalismo com estabelecimento de propriedade social, herança para jovens aos 25 anos de idade. O que o senhor responde?
Tento me basear no que funcionou no século 20. Quando falo de propriedade social, isso quer dizer mais direito para os representantes de operários nas empresas. É algo adotado na Alemanha e na Suécia, onde até 50% do direito de voto é dos representantes de operários.
É algo que os acionistas não gostam, nem na França, nos EUA ou no Brasil, mas funcionou bem na Alemanha e na Suécia, que estão entre os mais ricos e produtivos do mundo. Permite mais participação, mais implicação dos trabalhadores nas empresas.
Proponho estender esse sistema a todos os países e ir mais longe. Quanto à propriedade temporária, quando alguém faz fortunas enormes deveria devolver uma parte à sociedade a cada ano, para permitir àqueles que vêm de famílias pobres de começar a vida com um patrimônio mínimo.
A economia funciona com um chefe de empresa que, quando acumula alguns milhões de euros, já é imenso sucesso. Mas nas sociedades com mais milionários e mais concentração da fortuna, não é verdade que elas têm mais inovação e mais crescimento. É o contrário. Na verdade, precisamos da redistribuição permanente da renda.
Como o senhor vê a economia global em alguns anos?
Acho que esta crise pode contribuir para uma mudança da ideologia dominante no sistema econômico, na Europa, nos EUA, e espero que no Brasil, indo na direção da economia mais igualitária, mais social, mais equitativa e mais sustentável. Ouso esperar que esse choque nos conduza nessa direção. Mas dependerá da mobilização de cada um. Uma das lições de minhas pesquisas é que há várias trajetórias possíveis e não depende apenas de alguns grupos de elite, de economistas, de jornalistas. Depende, antes de tudo, da mobilização cidadã.
Mesmo enxergando a crise do coronavírus como chance de mudança, o que vemos neste momento, ao contrário, é que as respostas dos governos à epidemia talvez sejam um vetor de aumento da desigualdade. Países pobres e endividados vão sofrer mais, trabalhadores precários vão perder renda, e os grandes pacotes financeiros têm ajudado mais a sustentar os mercados e as grandes empresas.
Você tem toda a razão. O primeiro impacto do coronavírus será o de um aumento da desigualdade entre os países e dentro deles também. Os países ricos provavelmente ficarão até mais obcecados com eles mesmos, sem se preocupar realmente com o que está acontecendo com outras regiões.
E muitos dos países mais pobres não têm sistemas de proteção ou renda básica e serão afetados de uma maneira mais sinistra. Mesmo em países como a França, existem trabalhadores temporários ou em contratos flexíveis que não têm acesso a nenhum tipo de benefício. É o mesmo tipo de coisa que acontece em países como o Brasil. Mas a grande pergunta é se esse cenário será ou não um incentivo para que os governos acelerem a criação de algum tipo de rede de proteção.
A grande dificuldade é que o sistema econômico internacional possui uma ideologia dominante que ainda torna muito difícil a países como o Brasil ou a Índia, por exemplo, adotarem sistemas de taxação mais progressiva, que os torne menos desiguais e que possam financiar políticas sociais.
Individualmente, o maior entrave aos países na adoção de políticas de taxação mais progressiva parece ser o fato de o mundo viver hoje uma superfinanceirização econômica e de livre trânsito de capitais. O dinheiro pode simplesmente ir embora de onde é mais tributado. Não é difícil atacar o que o sr. chama de “ideologia dominante” e a desigualdade sem uma ação conjunta dos países na mesma direção?
Os países poderiam fazer mais, e países como o Brasil deveriam pensar em uma reforma tributária progressiva sem esperar pelo resto do mundo.
Mas, claramente, com o fluxo internacional de capitais que temos no mundo hoje, sem uma taxação comum entre os países, e com a atual uma opacidade completa, fica muito difícil para os países pobres aumentarem individualmente os impostos sobre os ricos —e eles acabam recaindo sobre os mais pobres e as classes médias.
Por isso os países ricos têm muita responsabilidade. Por isso qualquer coisa que venha a acontecer nos Estados Unidos e na Europa na saída desta crise será muito importante para os outros países do mundo. Esse sistema de livre trânsito de capitais precisa ser mudado, pois construímos isso sem um outro, de taxação e regulação comum.
Construímos um direto sagrado que os indivíduos detêm de poderem se desenvolver usando toda a infraestrutura e o sistema educacional de seus países para depois, no clique de um botão, mandar seu dinheiro para outro lugar sem que nenhuma entidade administrativa possa fazer algo a respeito. Mas não há nada de natural nisso. Isso faz parte de um sistema legal muito sofisticado e internacional, que precisa ser modificado.
Mas alguns países podem individualmente tentar mudar esses parâmetros, exigindo algum tipo de taxação comum ou mais abertura de informação sobre as origens desses capitais. Nos Estados Unidos, o presidente Barack Obama conseguiu exigir algumas informações dos bancos suíços sobre cidadãos americanos com a ameaça de retirar a licença bancária dessas instituições.
Também nos Estados Unidos, os pré-candidatos Bernie Sanders e Elizabeth Warren propuseram criar um imposto sobre riqueza. Esse é o tipo de debate que vai voltar muitas vezes ainda, particularmente os Estados Unidos. Mas também no Reino Unido e em países como a Alemanha, onde há muita pressão pela adoção de uma taxação maior sobre a riqueza.
O interessante dessas propostas nos Estados Unidos é que elas vieram acompanhadas de uma “taxa de saída”. Se alguém quiser tirar o dinheiro do país, teria de pagar um imposto de 40%. E isso é algo muito diferente da livre circulação de capital.
Como economista preocupado com essa questão, como vê as perspectivas de um país extremamente desigual, populoso e pobre como o Brasil? Estamos no meio de uma pandemia, altamente endividados e governados por um presidente belicoso como Jair Bolsonaro.
Espero que as pessoas que votaram em Bolsonaro e contra o PT consigam agora mudar a sua visão de mundo. Não sou muito otimista quanto a isso, mas algumas vezes na história vimos inclusive governos de direita mudando radicalmente de posicionamento e plataforma diante de pressões sociais.
Se olharmos para o que o PT fez no Brasil, houve boas políticas para melhorar a situação dos 50% mais pobres, sobretudo com a política de aumentos reais para o salário mínimo e o Bolsa Família. Mas ficaram faltando as reformas estruturais, como uma modificação no sistema tributário no sentido de uma taxação mais progressiva. No fim, isso acabou contribuindo para a decepção da sociedade com o PT.
Nos EUA, foi preciso mudar a Constituição para que fosse criado um Imposto de Renda federal, em 1913, levando o país nas décadas seguintes a ter o sistema de taxação mais progressivo da história. Portanto, muito frequentemente alterações constitucionais como essas são críticas para levar adiante as grandes mudanças econômicas e sociais.
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Piketty: “A desigualdade no Brasil é da Europa no século 19” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU