23 Julho 2020
“O decrescimento é a fórmula da desaprendizagem baseada nos cuidados, na autonomia e suficiência, os três valores que Timothée Parrique usa para definir o decrescimento. Esses valores são essenciais para entender que o objetivo final dos decrescentistas não é o decrescimento, mas a descolonização”, escreve Jamie Tyberg, ativista climática, de origem sul coreana, e diretora de desenvolvimento da New York Communities for Change - NYCC, em artigo publicado por El Salto, 21-07-2020. A tradução é do Cepat.
Havia algo na Mensagem do Futuro de Alexandria Ocasio-Cortez que não se encaixava em mim. Narrada pela jovem congressista e ilustrado pela artista e ativista Molly Crabapple, este vídeo tentava descrever um mundo após o Green New Deal, ou novo pacto verde.
O vídeo ilustrava a proposta contida no novo pacto verde da congressista, apresentado apenas dois meses antes, e previa um futuro com saúde pública universal, emprego garantido pelo governo federal, assistência universal à infância e campanhas eleitorais com financiamento público. Todos os trabalhadores nos Estados Unidos tinham um emprego decente e viviam livres de discriminação.
As cenas mostraram trabalhadores construindo uma rede inteligente nacional, revisando estruturas e lançando novas ferrovias de alta velocidade em todo o país. O mundo tinha uma atmosfera vibrante e evitamos uma catástrofe climática. No entanto, essa visão não me convenceu.
Em 2018, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas - IPCC informou que, se uma transformação radical dos sistemas de energia, transporte e agricultura não ocorrer nos próximos 12 anos, o mundo caminhará em direção a um aquecimento global acima de 1,5 grau centígrado, considerado o máximo possível para a habitabilidade do planeta.
Até 2030, as emissões globais de dióxido de carbono precisariam ser reduzidas em 45% abaixo dos níveis de 2010 e atingir um valor líquido zero até 2050. Embora, obviamente, essa iniciativa exija um esforço internacional, os Estados Unidos utilizam cumulativamente mais energia per capita do que qualquer outro país, desde o ano 1960.
Ao mesmo tempo, os Estados Unidos produzem a menor parcela de energia renovável do mundo, e apenas seus militares produzem mais emissões de gases do efeito estufa do que 140 países juntos.
Do ponto de vista aéreo, essa visão revela que os Estados Unidos são o maior consumidor de energia do mundo, de maneira injustamente desproporcional e não apenas para a preservação e a reprodução da vida, mas também para despesas improdutivas, como luxo e guerra. Portanto, as transformações socioambientais que devemos realizar devem começar nos Estados Unidos.
No entanto, o vídeo nem mencionava a redução no consumo de energia nos Estados Unidos. Ao contrário, o vídeo concebe um mundo em que instituições como o Exército (que, entre outras coisas, destrói a agricultura autossuficiente) permanecem intactas. Parece que policiais, políticos e soldados recebem mais tempo na tela do que qualquer outra profissão.
Do mesmo modo, o vídeo defende que os trabalhadores americanos recebam salários e benefícios adequados, mas não diz nada sobre o fim da superexploração dos povos e nações despossuídos em todo o mundo, através dos quais os Estados Unidos acumulam sua riqueza.
Nesta iteração do futuro, parece dar como determinado que opressores e oprimidos podem coexistir em harmonia, sem explicar de maneira alguma como.
Por que esse fato foi omitido no discurso dominante que acompanha esse popular vídeo viral? É verdade que não houve muitas imagens esperançosas do futuro que nos aguarda, após a crise climática, por isso entendo o apelo. No entanto, uma abordagem materialista na tradição de Epicuro e Marx lançaria dúvidas sobre as contradições do consumo infinito de energia, em um planeta com recursos finitos.
De fato, essa análise demonstraria que nenhuma tentativa anterior, em larga escala (seja capitalista ou socialista), foi capaz de permanecer dentro dos limites ecológicos.
Talvez essas lacunas chamaram a minha atenção porque estive envolvida no âmbito do decrescimento. Como uma descendente do povo colonizado da Coreia, que não é cidadã dos Estados Unidos por opção, e como membro da última geração que pode conter a crise climática, descobri um lugar pedagógico no decrescimento.
Trata-se de um discurso e um movimento especificamente livres (e ferozmente contra) do denominador comum da sociedade pós-industrial: crescimento infinito. Na minha opinião, o movimento de decrescimento é projetado tanto para os colonos, como para “aqueles que chegam”. Jodi Byrd, cidadã da nação Chickasaw, de Oklahoma, define “aqueles que chegam” em The Transit of the Empire (O trânsito do império) e empresta o termo do poeta barbadense Kamau Brathwaite. Aqueles que chegam são “pessoas forçadas a entrar nas Américas pela violência do colonialismo e imperialismo europeu e anglo-americano em todo o mundo”.
Como uma amarela “que chega” e vive em terras roubadas, tornei o decrescimento meu dever, uma ferramenta de agitação intelectual e política em busca da descolonização.
Segundo o historiador Timothée Parrique, o movimento pelo decrescimento “começou como uma preocupação ambiental pela diminuição no uso de recursos, mais tarde se tornou a ponta de lança dos movimentos de emancipação contra o desenvolvimento, o capitalismo e o crescimento econômico”, para finalmente amadurecer como um projeto utópico próprio”.
Com o tempo, o decrescimento deixou de ser uma crítica ao crescimento da sociedade atual e se tornou uma alternativa completa, “uma estrutura na qual diferentes linhas de pensamento, imaginário e estratégias convergem”. Em resumo: o decrescimento nos ensina a cuidar dos ecossistemas da Terra, a cuidar das pessoas, a redistribuir e devolver qualquer excedente de volta à Terra e às pessoas.
Além disso, ao ler trabalhos sobre decrescimento escritos por pensadores negros e indígenas, como The Black Shoals: Offshore Formations of Black and Native Studies, de Tiffany Lethabo King, pude entender como o decrescimento pode ser usado em prol da descolonização.
A autora escreve sobre a necessidade de “frustrar os modos liberais (e outros) de humanismo” através do “movimento abolicionista negro, descolonização de nativos e novas formas de sociabilidade e futuro”. O livro lança luz sobre a necessidade de "um processo de reorganização" em contraposição a uma alternativa.
Isso exigiria a linguagem usada pela Primeira Internacional Ecossocialista, um programa comum de luta publicado por “100 pessoas, de 19 países, em cinco continentes, incluindo 12 pessoas da América”. Os autores nos lembraram, naquele encontro, que “o único superávit é este sistema e o que faz falta não é uma alternativa a esse sistema, nem criar outro mundo possível ou novos modelos. O que é realmente necessário é reconhecer que somos o modelo original”.
Foi através desses textos que pude perceber como o decrescimento poderia ser um “processo de reorganização” de volta ao "modelo original".
Esse modelo original não é outro modelo produtivista e extrativista disfarçado de alternativa democrática. É por isso que o modelo não pode ser imaginado pela Mensagem do Futuro de Ocasio-Cortez, uma vez que não rompe o paradigma do crescimento.
Em seu lugar, o modelo original é um processo para reparar com delicadeza o que Marx chamou de “ruptura metabólica” entre os seres humanos e a terra.
O objetivo é a descolonização, que somente alcançaremos, segundo Frantz Fanon, adotando nosso próprio ritmo e, com ele, “uma nova linguagem e uma nova humanidade”.
O decrescimento é a fórmula da desaprendizagem baseada nos cuidados, na autonomia e suficiência, os três valores que Timothée Parrique usa para definir o decrescimento. Esses valores são essenciais para entender que o objetivo final dos decrescentistas não é o decrescimento, mas a descolonização.
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Do decrescimento à descolonização - Instituto Humanitas Unisinos - IHU