09 Julho 2020
Donald Trump, que pretende restaurar a grandeza de seu país, implanta, desde que chegou à Casa Branca, uma política externa agressiva, inclusive em relação aos aliados dos Estados Unidos. Seu nacionalismo responde a uma demanda profunda da sociedade americana? Que papel seus compatriotas querem que seu país desempenhe no cenário internacional? A atitude dos Estados Unidos mudará substancialmente se Joe Biden chegar ao Salão Oval?
A entrevista é de Yann Mens, publicada por Alternatives Économiques, 04-07-2020. A tradução é de André Langer.
Pesquisadora convidada do Centro para os Estados Unidos e a Europa do Brookings Institution (Washington), Célia Belin, que recentemente publicou Des démocrates en Amérique: l’heure des choix face à Trump (Éditions Fayard e Fondation Jean-Jaurès), examina as tendências profundas da política externa americana, no contexto da crise sanitária, econômica e social.
A atitude de Donald Trump no cenário internacional é uma mistura de agressividade e vontade de se recolher. Essa atitude reflete tendências fundamentais e duradouras da política externa americana?
A agressividade é para Donald Trump um modo de comunicação em geral. No que diz respeito à política externa, ele tem uma concepção muito restrita dos interesses nacionais de seu país, na medida em que não leva em conta a estabilidade ou a prosperidade dos aliados dos Estados Unidos. Esse nacionalismo está associado ao unilateralismo. As ideias de negociação ou de segurança coletivas, de multilateralismo, não encontram nenhum lugar em sua concepção de relações internacionais. Daí a retirada dos Estados Unidos de todos os principais acordos assinados no governo de seu antecessor, a começar pelo acordo climático de Paris.
A Administração Trump privilegia acordos bilaterais, tanto na área da segurança, como do comércio, por exemplo. Essa corrente unilateralista, no entanto, é bem anterior ao atual presidente. Faz muito tempo que ela está ancorada no Partido Republicano e se manifesta regularmente desde que este chegou ao poder. Donald Trump apenas a desenvolveu sobremaneira no estilo agressivo que é o seu.
Donald Trump não somente negligenciou os aliados dos Estados Unidos, principalmente na Ásia e na Europa, como também os maltratou. Por quê?
Donald Trump nunca entendeu direito a utilidade das alianças. Certamente, as alianças tradicionais dos Estados Unidos com o Japão, Coreia do Sul, Austrália e, claro, a Europa, através da OTAN, sofreram por inércia. No entanto, o presidente não hesitou em iniciar uma quase guerra comercial com a União Europeia, por exemplo.
De maneira mais geral, ele se recusou a negociar com os aliados de seu país questões tão importantes como a questão climática ou a ascensão da China, que também permitiu que esta se apresentasse como um elemento moderador no cenário internacional, ou inclusive como advogada do multilateralismo. Esta agressividade em relação aos aliados é realmente uma característica do governo Trump. Essa não é uma tendência básica da política externa americana, embora tenha havido momentos de tensão no passado, como em 2003, quando França e Alemanha se opuseram à guerra no Iraque.
Quais seriam as principais mudanças na política externa caso Joe Biden chegasse à Casa Branca?
Acredito que os Estados Unidos estão começando a perceber que perdem muita credibilidade no cenário internacional quando sua política externa está sujeita a movimentos pendulares tão fortes a cada momento. Desde que chegou ao poder, o governo de Donald Trump não parou de demolir tudo o que o anterior havia feito... Tais oscilações tornam quase impossível uma cooperação estreita com os aliados e beneficiam os rivais dos Estados Unidos que, por outro lado, parecem mais constantes. Esses movimentos pendulares, no entanto, não são uma novidade.
Alguns especialistas acreditam que, ao retirar as tropas do Iraque muito rapidamente em 2011, Barack Obama cometeu um erro que favoreceu o aumento da ingerência iraniana nesse país e também deixou o terreno aberto para a ascensão do Estado Islâmico. Obviamente, o movimento liderado por Donald Trump em matéria de política externa tem sido muito mais violento. Ele retirou os Estados Unidos do acordo nuclear iraniano, do projeto da Parceria Transpacífica com uma dúzia de países da região, do acordo entre os Estados Unidos e Cuba... Ele paralisou o funcionamento de uma parte da Organização Mundial do Comércio e ameaça cortar suprimentos para a Organização Mundial da Saúde.
Se eleito, Joe Biden fará questão de não desconstruir tudo o que Donald Trump fez, mas capitalizar o que pode ser usado. Com a Coreia do Norte, por exemplo, os tabus caíram graças às reuniões entre Donald Trump e Kim Jong-un, mesmo que não haja resultados tangíveis no momento. Em relação ao Irã, Joe Biden não disse que traria os Estados Unidos de volta ao quadro do acordo de 2015, porque as coisas mudaram nesse terreno desde a sua saída. Teerã relançou seu programa nuclear e sua política no Golfo tornou-se mais agressiva...
É possível, no entanto, que uma Administração Biden manifeste seu interesse em uma gestão cooperativa dessa crise e proponha trabalhar em um novo acordo. Por outro lado, seria mais simples para os Estados Unidos assumirem novamente o acordo de Paris porque os outros signatários continuaram a implementá-lo. Washington pegaria um trem que não mudou de direção. No que diz respeito à OTAN, Joe Biden, sem dúvida, se apoiará nos compromissos que a Administração Trump obteve de alguns Estados membros para que aumentem seus gastos com a defesa, contribuindo para fortalecer a Aliança Atlântica.
Os aliados europeus e asiáticos dos Estados Unidos serão tratados melhor se Joe Biden suceder Donald Trump?
No caso de o candidato democrata ser eleito para a Casa Branca, sem dúvida testemunharemos uma inversão de método, com a vontade de promover os interesses nacionais dos Estados Unidos por meio de processos de cooperação multilateral, de jogos de soma positiva entre os atores internacionais. No entanto, a política de Joe Biden não pode ser um simples passo atrás, semelhante àquele que Barack Obama deu, porque o ambiente mudou. Os Estados Unidos percebem, por exemplo, que a Europa voltou a ser um campo de batalha para influenciar a Rússia e a China, que são aliadas do Velho Continente. Assim, por exemplo, a aliança entre a Rússia e a Hungria. Mas, acima de tudo, a política chinesa, no âmbito das Novas Rotas da Seda, que corteja os países da Europa Central e Oriental, os Bálcãs ou a Itália, como observamos durante a epidemia da Covid-19.
Os Estados Unidos também observam o desenvolvimento de correntes nacional-populistas na Europa, que se refletem nos sucessos eleitorais de partidos às vezes incentivados por Moscou, mas também em um fenômeno como o Brexit, que Washington não previra. Os americanos compreendem que tudo isso agora faz parte de um problema estratégico. Eles não podem mais ter um olhar desapegado e tecnocrático sobre a Europa, coisa que a Administração Obama fazia com frequência, que considerava que essa parte do mundo estava passando por problemas econômicos, mas que era estável em termos de segurança e mais capaz do que antes de resolver seus próprios problemas. Os Estados Unidos percebem que devem se ocupar novamente com o Velho Continente, demonstrar seu apoio às instituições da União Europeia e aos países que são seus melhores aliados.
Os Estados Unidos ficarão menos tentados a se voltar às questões internas se o candidato democrata vencer?
O que certamente não mudará se o candidato democrata vencer em novembro próximo é a vontade de não imiscuir mais os Estados Unidos em conflitos distantes de seu território, e particularmente no Oriente Médio. Desde o fracasso da guerra no Iraque e a estagnação no Afeganistão, onde as tropas estão presentes há 19 anos, a sociedade americana tem sido hostil a esse tipo de envolvimento oneroso em vidas humanas e em dinheiro em guerras que ela considera que não são suas.
A ideia predominante é que, por mais terríveis que tenham sido os ataques de 11 de setembro, a vontade de prevenir novos ataques desse tipo não deve ser a causa e a fonte do empobrecimento dos Estados Unidos durante anos. Por outro lado, são objeto de debate as modalidades da retirada americana dos países em que ainda estão envolvidos: os Estados Unidos deveriam abandonar esses Estados à sua própria sorte, correndo o risco de o caos se estabelecer ali? Ou deveriam continuar a fornecer-lhes algum tipo de apoio não militar, através do aparato diplomático e da ajuda ao desenvolvimento? Donald Trump está espontaneamente na primeira linha. A segunda alternativa foi a de Barack Obama, e onde Joe Biden, sem dúvida, se inscreverá. No entanto, a questão das tropas americanas no exterior não se coloca apenas nos terrenos de conflito.
Donald Trump estaria, sem dúvida, disposto a repatriar tropas que estão simplesmente posicionadas na Europa, por exemplo, para possíveis intervenções na África, no Oriente Médio… Este é o significado do anúncio recente da possível retirada de 9.500 soldados americanos da Alemanha, boa parte dos quais, no entanto, seriam simplesmente transferidos para a Polônia. A atitude de uma equipe Biden seria sem dúvida diferente. O candidato democrata sabe que as tropas pré-posicionadas entre os aliados constituem uma grande vantagem militar e estratégica.
Dito isto, de modo geral, a tendência geral de fechamento às questões internas será ainda mais forte nos Estados Unidos nos próximos anos, à medida que o país está mergulhado em uma crise de saúde associada a uma profunda crise econômica, social e política. As primeiras preocupações do próximo governo, qualquer que seja sua cor política, serão a reconstrução do país e as questões de política interna. Os futuros líderes terão pouco tempo e recursos para se envolver no campo internacional.
Mesmo que queiram limitar o envolvimento de seu país em questões externas, os americanos seguem convencidos de que o mundo precisa da liderança dos Estados Unidos?
Sim, os americanos estão convencidos disso. Até meados do século XX, os Estados Unidos estavam concentrados principalmente no seu desenvolvimento interno e na projeção de seu poder em torno do seu território. Mas a sua participação nas duas guerras mundiais, em grande parte contra a sua vontade, projetou-os para o cenário internacional. Em 1945, eles se viram militarmente responsáveis pela estabilidade do Japão e da Europa, porque ali estacionaram as tropas. Garantidores da reconstrução econômica desses países também, uma vez que lhes aportaram consideráveis financiamentos, por exemplo, através do Plano Marshall. Este momento histórico continua a marcá-los, e eles falam sobre isso com frequência.
Os Estados Unidos acreditam que foram o grande arquiteto daquilo que chamam de ordem internacional liberal posterior à Segunda Guerra Mundial, tendo a palavra liberal aqui um duplo significado: político e econômico. Eles não percebem o quanto se tratou realmente de uma construção conjunta com seus aliados. Encontrando-se no topo da cena internacional e dotados dos meios que lhes permitiram, durante várias décadas, interferir na estabilidade do mundo, consideram-se indispensáveis. Um sentimento reforçado com o colapso do bloco soviético no início dos anos 90 e quando se viram sem rival.
Essa visão muito etnocentrada tende a subestimar o que acontece em muitas regiões do mundo em que os Estados Unidos há muito tempo exercem uma influência fraca, como a África, mas também naquelas em que sua influência está hoje em declínio, como a vizinha América Latina. Isso é bom, porque eles se consideram indispensáveis há décadas, e acham muito difícil admitir que o mundo muda sem eles. E mais ainda que outras potências, como a China, estão se tornando imprescindíveis.
O medo da China é comum a toda a classe política americana?
Toda a classe política está preocupada com o aumento do poder econômico, tecnológico e militar deste país e com a maneira como sua rivalidade com os Estados Unidos será estruturada. A National Security Strategy de 2017, documento elaborado pelo Departamento de Defesa, falava de “concorrência entre grandes potências”, ou seja, essencialmente a Rússia e a China que ainda eram tomadas mais ou menos no mesmo nível. Três anos depois, a percepção dos estrategistas americanos mudou. A China tornou-se o grande concorrente estratégico. Tanto que quase não ouvimos mais vozes defendendo um diálogo com Pequim, exceto em questões raras de interesse comum, como o clima. Quanto à questão de saber como conduzir essa competição estratégica, dois caminhos diferentes emergem.
Alguns, mais entre os Republicanos, querem limitá-la a questões econômicas e de segurança. Outros querem estendê-la ao plano ideológico. De fato, uma parte dos estrategistas democráticos quer que os Estados Unidos se tornem novamente os líderes do “mundo livre”, que eles constituem, e liderem uma aliança de democracias contra os poderes autoritários com o objetivo declarado de defender as normas e os ideais do mundo livre, como a informação transparente ou o livre comércio, por exemplo.
Em um artigo publicado em março passado pela revista Foreign Affairs, Joe Biden evoca uma coalizão sem dizer explicitamente que seria direcionada contra a China, mas compreende-se que este país é o primeiro alvo. É uma maneira de ideologizar a rivalidade sino-americana. Ao contrário da França, que gostaria de usar o multilateralismo para conter o poder chinês, os democratas americanos parecem preferir a constituição de um campo, como durante a Guerra Fria contra a União Soviética.
A política externa deverá desempenhar um papel significativo na escolha dos eleitores americanos durante as eleições de novembro?
Como em muitas democracias, esta não é a principal preocupação dos eleitores. O que os motiva na hora de votar são, antes de tudo, os problemas do seu cotidiano e, mais ainda no contexto da atual crise, muito mortífera, ligada ao coronavírus. Mas é impressionante notar que desde o 11 de setembro, alguns assuntos de política externa podem pesar no debate da eleição presidencial.
Em 2008, as críticas de Barack Obama à guerra no Iraque funcionaram claramente a seu favor, primeiro durante as primárias democratas contra Hillary Clinton, depois durante as eleições presidenciais contra John McCain. Em 2012, a execução de Osama Bin Laden por um comando americano contribuiu para a sua reeleição. E em 2016, Donald Trump demonstrou que, após quatro décadas de globalização, algumas questões de política interna e externa só podiam ser tratadas em conjunto. Sua retórica de campanha baseava-se na ideia de que uma determinada parcela da América, a classe média branca empobrecida pela desindustrialização e pelas deslocalizações, deveria se afirmar novamente no país e no cenário internacional.
Ele martelou na ideia de que o resto do mundo estava abusando dos Estados Unidos, fazendo-os assinar tratados internacionais, especialmente os comerciais, que eram prejudiciais aos seus interesses. E que, além disso, faziam chacota deles! Por resto do mundo, ele entendia principalmente a China, acusada pelas autoridades americanas de distorcer a concorrência ao subsidiar suas empresas estatais ou praticando o roubo em larga escala da propriedade intelectual. Daí o apelo de Donald Trump ao protecionismo. Mas por resto do mundo também entendia a Europa, cujos gastos com defesa costumam ser inferiores aos compromissos assumidos no âmbito da OTAN e muito inferiores aos dos Estados Unidos.
A outra área onde as políticas interna e externa inevitavelmente se misturam é a da imigração. Donald Trump a aborda de maneira estritamente como uma questão interna e de segurança, com seu projeto de construção do muro ao longo de toda a fronteira mexicana. Joe Biden, pelo contrário, evoca um plano de investimentos na América Latina para que esses países se desenvolvam e para que seus habitantes não necessitem mais ou queiram deixá-los. Da mesma forma, a questão climática é, por definição, um assunto que diz respeito aos dois campos e que está no centro das preocupações de muitos americanos, apesar da presença de numerosos céticos do clima nos Estados Unidos.
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“Os americanos estão convencidos de que o mundo precisa da liderança dos Estados Unidos”. Entrevista com Célia Belin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU