02 Junho 2020
“Se os bilionários e o sistema que os produzem perderam alguma vez a razão de ser, é agora. É preciso distribuir riqueza. Fomentar a saúde pública. Acabar com o pesadelo. Dona Nobis Pacem (Dá-nos a paz)”, escreve Werner Lange, professor aposentado de sociologia e veterano ativista pacifista, em artigo publicado por El Salto, 01-06-2020. A tradução é do Cepat.
Em seu rápido e implacável auge desde sua primeira etapa baseada no laissez-faire, o capitalismo parece ter chegado de maneira inadvertida ao seu último adeus com a pandemia da covid-19. O coronacapitalismo é portador de doenças sociais crônicas, acumuladas em muitas décadas de exploração brutal, mas também contraiu uma nova doença fatal que não havia sido experimentada ou esperada anteriormente. Mais de 22 milhões de americanos estão subitamente desempregados e as inchadas filas de desempregados crescem a cada dia que passa devido à pandemia.
Esse desemprego em massa imposto está sugando progressivamente o fluido vital, a mais-valia do capital em geral e ameaça colapsar todo o baralho de naipes gerado pela maximização do lucro privado. Sem que o trabalho possa criar mais riqueza através de sua produtividade em aumento no lugar de trabalho necessário para sua própria sobrevivência, existem lucros em queda ou nulos para a maioria dos proprietários privados e investidores corporativos.
Daí a atual corrida para “abrir a América”, apesar dos enormes riscos para a saúde pública. A riqueza privada sempre prevaleceu sobre a saúde pública no manual de instruções capitalista. Mesmo assim, a enormidade da crise e o potencial explosivo de transformação que possui estão mudando as regras e os pontos de vista sobre o bem comum. A queda do capitalismo, pelo menos tal como o conhecemos, está no horizonte.
A base material para uma mudança qualitativa tão desejada vem se desenvolvendo em décadas de decadência e desespero, a pandemia tão somente acelerou em grande medida e expôs de maneira espantosa a depravação e a fragilidade que enfrentamos. Se havia alguma rede de segurança, a desumana concentração da riqueza e as políticas misantrópicas não fizeram mais que a dissolver.
Após cerca de 50 anos de crescente desigualdade, os 400 americanos mais ricos agora possuem mais riqueza do que os 150 milhões mais pobres entre nós, 22% da riqueza gerada pelo trabalho nos Estados Unidos acabam na carteira da décima parte do 1% mais ricos, enquanto quase 60% das famílias americanas carecem de economias suficientes para pagar uma conta médica de 1.000 dólares para uma emergência ou conserto do carro. Essas concentrações obscenas de riqueza e as evidentes brechas de desigualdade não tinham sido vistas desde 1928, pouco antes da Grande Depressão. E, no entanto, a marcha para o abismo continua.
As políticas públicas a favor dos ricos, juntamente com a ideologia do darwinismo social que condena os pobres, alimentam esta desigualdade. Para quem conhece a dinâmica da economia política, fica claro que o Estado é um órgão da classe dominante, mas foi somente no advento do regime Trump e na pandemia de coronavírus que esse órgão se revelou como seu desafio. As políticas públicas predominantes desse regime misantrópico sugam à distância.
O corte de todos os fundos direcionados à Organização Mundial da Saúde (OMS) compromete diretamente os esforços globais para conter e superar a pandemia. Enquanto aumenta a venda de armas nos Estados Unidos, Trump convocou de maneira implícita para uma insurreição armada para “libertar” certos estados de suas medidas para conter a pandemia.
Com o corte legal da taxa de impostos das empresas de 35 para 21%, em 2017, promovido pelo governo de Trump, o Tesouro norte-americano deixou de arrecadar cerca de 1 trilhão de dólares, que foi adicionado à carteira de valores corporativos com o objetivo dedicá-las a lucrativas operações de compra e venda de ações. O gigantesco presente para os americanos super-ricos em 2020, que é chamado de lei CARES, exaspera em grande medida o roubo legal de fundos públicos. Cerca de 500 bilhões de dólares em empréstimos foram entregues diretamente às maiores empresas dos Estados Unidos sem uma supervisão, nem prestação de contas significativa.
Devido a manejos fiscais, outros 1,2 milhão de dólares foram entregues em média a cerca de 43.000 milionários, enquanto os americanos em dificuldades podem receber uma renda extraordinária de 1.200 dólares. Há poucas dúvidas de que o governo de Trump direcionará boa parte dessa generosidade a seus apoiadores entusiastas e leais sócios de negócios. O capitalismo de amigos não é novidade para Trump, especialmente quando se trata de sua droga favorita para combater a Covid-19: a hidroxicloroquina.
Várias empresas farmacêuticas de propriedade de apoiadores de Trump estão assumindo como certo que a agência sanitária (Food and Drug Administration, FDA) lhes concederá tratamento favorável em seus esforços para produzir em massa essa substância não autorizada e potencialmente perigosa. A Sanofi, empresa francesa que produz a HCQ sob a marca Plaquenli, também atraiu esses partidários, incluindo três membros da família Trump, que possuem parte de suas ações, além do milionário e fiel aliado de Trump, Ken Fischer, principal acionista da Sanofi. O secretário de Comércio de Trump, Wilbur Ross, também tem ações da Sanofi. Se a autorização do FDA chegar, todo mundo estará aguardando esses lucros caídos do céu.
Como principal porta-voz e camelo da HCQ, Trump mostra seu desdém por avisos científicos e sua lealdade irracional às práticas do darwinismo social. Sob seu mandato, a administração penitenciária comprou pílulas de HCQ no valor de 60.000 dólares, sem dúvida, destinadas ao uso experimental entre certos presos de prisões federais. Da mesma forma, sua busca selvagem por uma solução milagrosa para a pandemia provavelmente influenciou a decisão do governo indiano de estabelecer possíveis testes da substância, como profilaxia, entre milhares de moradores da favela de Mumbai, atingidos pela pobreza. Mais uma vez, humanos vulneráveis serão usados como cobaias.
Se trapacear com substâncias não testadas é uma prioridade para esse regime, o desejo de políticas conhecidas que possam combater o crescimento da insegurança alimentar e econômica não é. A New Poor People's Campaign estima que 140 milhões de estadunidenses são pobres, um surpreendente 52% das crianças estadunidenses são empobrecidas ou de baixa renda, e a metade dos inquilinos gasta um terço de suas modestas rendas em moradia e cerca de 49 milhões de famílias possui uma dívida coletiva de 1,5 trilhão de dólares em empréstimos estudantis. E mesmo assim nada é feito para aliviar qualquer desses urgentes problemas sociais.
Mesmo antes da pandemia, cerca de 27 milhões de americanos não tinham seguro de saúde, quase 66% das dívidas das famílias eram devido à incapacidade de pagar as contas médicas e, só em 2018, quase 250.000 campanhas médicas da plataforma GoFundMe foram lançadas por famílias em apuros. Nas últimas duas semanas de março, 3,5 milhões de estadunidenses perderam a cobertura de saúde dependente de seu contrato de trabalho, e milhões não tinham permissões familiares, nem baixas por doenças retribuídas.
Nenhum outro país que luta contra a pandemia enfrenta esses desafios adicionais pela sobrevivência. A fome começa a mostrar sua feia cabeça nos Estados Unidos, como nunca havia feito nos tempos modernos: 11 milhões de crianças vivem em lares com alimentação precária. A Feeding America, uma organização nacional de 200 bancos de alimentos, estima que cerca de 17 milhões de americanos possam passar fome em breve. E, no entanto, o governo Trump está propondo cortes nas contas de alimentos e no Programa de Assistência Nutricional Suplementar (SNAP). A mentalidade do tipo “que comam bolos” se enraizou e cobra seu preço.
Enquanto os animais selvagens andam cada vez mais por algumas ruas desertas e se amontoam filas quilométricas de carros para conseguir alimentos, há aqueles que não apenas escaparam do impacto mortal da pandemia, mas que durante ela aumentaram muito sua riqueza. Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo, com uma riqueza líquida de 138 bilhões dólares, ganhou recentemente outros 24 bilhões de dólares extraídos da mais-valia gerada pelos explorados trabalhadores da Amazon.
Vários outros bilionários estadunidenses (Mark Zuckerberg, Warren Buffett, Elton Musk, Larry Ellison, Larry Page, Bill Gates) viram sua enorme riqueza crescer 20 bilhões de dólares no total no início de abril. No mesmo período, quase cinco milhões de trabalhadores norte-americanos solicitaram seguro-desemprego, a maioria perdendo a cobertura de saúde associada a seus contratos. Milhões de americanos que anteriormente viviam dependentes de auxílios, agora sobrevivem dia após dia. Muitos não os conseguem.
Em meados de abril, quase 34.000 norte-americanos morreram de covid-19 (o número ultrapassou 100.000 no final de maio). As vítimas mortais no mundo todo são projetadas em milhões neste verão, e a taxa de desemprego nos Estados Unidos pode chegar a 30%, sem precedentes. Uma atrocidade sem precedentes requer uma resposta sem precedentes.
Se os bilionários e o sistema que os produzem perderam alguma vez a razão de ser, é agora. É preciso distribuir riqueza. Fomentar a saúde pública. Acabar com o pesadelo. Dona Nobis Pacem (Dá-nos a paz).
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Estados Unidos: coronacapitalismo e seu iminente colapso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU