29 Junho 2020
“A pandemia exacerbou o distanciamento eclesial tipicamente católico entre clérigos e leigos, e ajudou a Igreja institucional a reforçar a sua centralidade”, escreve Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por Commonweal, 19-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se há algo de positivo que surgiu nesses muitos meses de pandemia, é o pensamento construtivo sobre o que isso pode significar para a Igreja Católica. Há uma espécie de autoexame coletivo e individual em andamento, talvez mais bem exemplificado pelo teólogo tcheco Tomáš Halík, que é psicoterapeuta por formação.
Como ele afirmou em um dos artigos mais perspicazes publicados recentemente sobre o tema, “este nosso tempo de mudança de civilização requer, talvez, uma nova teologia da história contemporânea e um novo modo de entender a Igreja”.
Em todo o mundo, a pandemia revelou exemplos e testemunhos de santidade, de viver o Evangelho, muitas vezes de uma forma direta mas “anonimamente cristã”.
O vírus nos mascarou e, ao mesmo tempo, desmascarou hipocrisias profundamente arraigadas nas formas contemporâneas de catolicismo militante, como as posições e retóricas absolutistas pró-vida e pró-liberdade religiosa, que ignoram o fato de que proteger a saúde e a vida das outras pessoas prevalece sobre a sua própria indiferença proclamada aos riscos para a sua saúde e vida.
A crise também dissipou a ilusão de que a Igreja pode ser um espaço isento daquilo que acontece fora dela. Podemos ver isso na profunda desorientação que a Igreja institucional pareceu experimentar ao lidar com as medidas necessárias por uma infecção generalizada. Forçada a agir dentro dos espaços restritos definidos pelas diretrizes de proteção à saúde, ela parecia incapaz de responder com algo mais do que aquelas que pareciam ser respostas pré-escritas a perguntas pré-escritas.
Isso ficou mais evidente na “obsessão eucarística”, que às vezes assumiu as características de uma abstinência fetichista, mais do que de uma necessidade espiritual. Pior ainda, algumas das disputas entre a Igreja Católica e as autoridades políticas pareciam versões do século XXI dos confrontos dos séculos XI e XII com um império na defesa de uma ideia medieval de “liberdade da Igreja”, e não os debates inspirados pela compreensão católica contemporânea da liberdade religiosa.
Mas, nesses últimos meses, também testemunhamos, mais uma vez, a arrogância do poder, a recorrência de conflitos mutuamente destrutivos e a persistência de interesses eclesiais particulares. A dificuldade destes tempos provavelmente encerrou qualquer sonho de palingênese, qualquer expectativa de que possamos imaginar uma nova Igreja institucional. Reforma eclesial? O fato é que a pandemia exacerbou o distanciamento eclesial tipicamente católico entre clérigos e leigos, e ajudou a Igreja institucional a reforçar a sua centralidade.
Todas as suas energias foram gastas para manter o sistema existente em funcionamento, especialmente em termos de liturgia e de governança da Igreja. Mesmo reconhecendo algumas exceções, o clero permanece encarregado da liturgia, e, do papa para baixo, eles têm mostrado uma criatividade limitada ao inserir algo no discurso simbólico.
Por exemplo, teria sido um sinal se, pelo menos em um dia da semana, o papa tivesse celebrado em Santa Marta não a missa, mas sim uma Liturgia da Palavra. O jejum eucarístico teria, então, unido todo o corpo de Cristo.
Mas não se trata apenas do controle clerical da liturgia. Os leigos católicos têm sido dispersados e ficado quase sem voz, exceto em suas liturgias domésticas invisíveis e suas expressões espirituais privadas.
Quanto aos comentaristas teológicos profissionais, eles tiveram que levar em consideração mais uma vez o problema de parecerem supérfluos e de precisarem justificar a sua própria existência contra as necessidades urgentes da comunidade dos fiéis.
O fato é que as crises como a pandemia podem revelar fragilidades institucionais, mas também podem ampliar vantagens institucionais nos níveis local e universal. Essa é a situação que estamos vendo agora na Igreja institucional. A minha impressão é de que a avaliação mudou. Um leigo pouco visível se tornou praticamente invisível, enquanto as vulnerabilidades da comunidade profissional dos teólogos – que dependem de um sistema cada vez mais instável de faculdades católicas privadas – ficaram evidentes.
Enquanto isso, um sistema clerical com fortes ligações políticas agora pode afirmar ainda mais o seu poder: a voz da Igreja Católica na mídia de massa ainda é, amplamente e por padrão, a voz do clero.
Mesmo que “a vida” da Igreja como instituição tenha sido suspensa pela pandemia, a própria instituição continua sendo uma presença pervasiva. Pergunte a quem planejou casamentos ou primeiras comunhões ou que tiveram que organizar um funeral para um membro da família. Eu suspeito que alguns dos sonhos de renascimento eclesial e litúrgico eram o eco de uma aspiração do Iluminismo tardio à idade adulta intelectual e espiritual, no sentido de estabelecer a independência das estruturas externas.
Mas aqueles que, durante a pandemia, tiveram que cuidar das necessidades espirituais dos idosos e dos doentes, ou de crianças pequenas que sentiam falta da Liturgia da Palavra para as crianças com seus colegas de escola, provavelmente estão um pouco menos confiantes na sua capacidade de se virarem bem sem a Igreja institucional.
Provavelmente, era desejável ver essa crise como uma oportunidade para reimaginar a liturgia de um modo progressista ou para acabar com o clericalismo em favor de reformas centradas na comunidade. Talvez o momento tenha revelado falhas no conservadorismo político, mas não se pode dizer o mesmo sobre o componente clerical da Igreja Católica, pelo menos nesta parte do mundo.
Certamente, a pandemia também lança uma luz sobre o significado do pontificado de Francisco, para além das pequenas discussões sobre este ou aquele aspecto particular dos seus ensinamentos e políticas: a transição para uma hermenêutica espiritual e teológica da realidade encarnada como ela é e onde ela está.
Dada a necessidade e a urgência dessa transição, o problema institucional da Igreja Católica só se torna mais grave. Ainda esperamos, com razão, que os bispos reajam contra aquilo que consideramos como um escândalo para o Evangelho. É por isso que muitos acharam particularmente revoltantes as recentes palavras complacentes dos prelados católicos a Donald Trump. Mesmo que os católicos tenham parado de esperar pela orientação dos bispos sobre certos assuntos, ainda queremos ser representados pela Igreja institucional perante o mais alto cargo político do país, especialmente em um ano eleitoral.
Não há nenhuma dúvida de que a Igreja deve recomeçar a partir do querigma e seguir em frente rumo ao coração do nosso mundo. Mas existe um vazio no nível institucional (e também nos níveis eclesial e político) que não pode ser preenchido pelo nível anti-institucional ou pós-institucional.
A pandemia, forçando quatro meses (no mínimo) de dispersão social e eclesial, provavelmente gerará uma teoria atualizada da relação entre “crer e pertencer”. Ficou demonstrado que, apesar de toda a fragilidade do sistema institucional, a sua persistência não diminui. Este é, para mim, um momento constitucional, tanto para a Igreja quanto para o mundo. A nossa experiência com o sistema eclesial ao longo dos últimos meses nos mostrou a diferença entre os sonhos e a realidade.
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Covid-19 e Igreja clerical: vantagens institucionais. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU