23 Junho 2020
O Papa Francisco quer que a Igreja reconstrua uma família humana mais economicamente justa e ecologicamente consciente na esteira da pandemia de Covid-19, segundo o padre que tem ajudado a coordenar a resposta vaticana à crise mundial atual.
A reportagem é de Christopher Lamb, publicada em The Tablet, 19-06-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O Pe. Augusto Zampini Davies é um dos principais membros da comissão criada pelo Papa Francisco para atuar na resposta da Igreja à pandemia de Covid-19. Ele é também o secretário adjunto do dicastério voltado ao desenvolvimento humano, que coordena os trabalhos nesta área.
“O papa nos pediu: preparem o futuro, o que é diferente de nos preparar para o futuro”, disse o o Pe. Augusto ao The Tablet.
“Essa pandemia é terrível. Mas podemos considerá-la um chamado a despertar, para mudarmos aquilo que não estava funcionando”.
O padre argentino, que trabalhou de consultor teológico para a Cafod durante o tempo em que estudou na Inglaterra, disse que a crise vivida hoje é uma oportunidade para se repensar o sistema financeiro global, combater a desigualdade e examinar temas como a renda básica universal.
Natural de Buenos Aires, nascido em 1969, o religiosos trabalhou, antes de ser ordenado ao sacerdócio, no banco central da Argentina e no escritório de advocacia internacional Baker & McKenzie.
O padre defendeu a ideia de que a Laudato Si’, encíclica papal que versa sobre o cuidado do meio ambiente, oferece um roteiro para sairmos desta crise. Este texto, que atualiza a doutrina social católica para incluir o cuidado da criação, vincula preocupações ecológicas e a questões sociais.
Como a crise climática, disse o Pe. Augusto, a Covid-19 é um problema mundial que exige cooperação internacional e uma mudança de comportamento. Ele destacou que não há nenhum “reparo técnico” à pandemia e que é “impossível sairmos dela de forma isolada”.
Por sua vez, o Vaticano lançou um guia para a implementação de Laudato Si’, ao mesmo tempo definindo algumas medidas ecológicas que o Estado da Cidade do Vaticano adotou nos últimos cinco anos. A Santa Sé também anunciou a sua intenção de aderir à Emenda de Kigali ao Protocolo de Montreal, que busca reduzir a emissão de gases responsáveis pelo enfraquecimento da camada de ozônio.
“Esse é o momento para mostrarmos que é possível mudar, que uma mudança no nosso estilo de vida é possível. É o momento de ajudarmos a economia a se recuperar, mas precisamos fazê-lo de um modo que não prejudique o planeta. Caso contrário, teremos mais problemas do que soluções”, explicou o padre. “É um tempo de cura: de curar as pessoas, de curar as instituições, de curar o planeta (...) pressionar no sentido de uma nova solidariedade universal, como diz Laudato Si’”.
A comissão para a resposta à Covid-19, criada pelo Papa, tem cinco grupos de trabalho e vem analisando como a Igreja pode responder concretamente à crise atual, ao mesmo tempo em que oferece propostas nas áreas da economia, da saúde e da segurança. Para isso, a Santa Sé tem trabalhado com universidades do mundo todo, incluindo a Universidade de Georgetown, em Washington, DC, nos Estados Unidos, e a University College London, da Inglaterra.
Segundo o Pe. Augusto, Francisco está empolgado com o trabalho que vem sendo realizado, o qual emprega a metodologia do “ver-julgar-agir”. E acrescentou: “Passamos muitos materiais e ele – o papa – nos inspira muito. Ele sugere ideias e nós as exploramos”.
Os governos, de acordo com o religioso, precisam aprender as lições da crise financeira de 2008, que viu os bancos receberem auxílios, mas que também viu milhões de pessoas perdendo o emprego e seus meios de subsistência.
Devido aos isolamentos sociais impostos pela Covid-19, os governos do mundo inteiro intervieram para ajudar as suas economias e, agora, estão explorando formas de se renovarem por meio de ajuda estatal. O Pe. Augusto disse, no entanto, que essas intervenções não podem se resumir a uma ajuda ao mercado corporativo, que salva uns poucos e esquece a sociedade mais ampla.
“Chegou a hora de repensarmos todo o sistema financeiro internacional”, afirmou ele. “Uma de nossas principais análises e propostas tem a ver com estes auxílios financeiros e o que fazer com eles, pois são dinheiro público. Não estamos dizendo que não precisamos ajudar ninguém, mas que esse dinheiro público deveria servir ao interesse público – o que descrevemos por bem-comum”.
O religioso continuou: “Parte da razão pela qual os bancos e instituições financeiras não estão se saindo tão mal na comparação com outros setores é porque eles receberam ajuda com dinheiro público dez anos atrás”.
Augusto pôs este desafio às instituições financeiras: “Agora que estamos realmente com problemas, é preciso eles paguem de volta, não só com caridade, mas começando com decisões de investimento. Como irão forjar o mercado? Onde irão colocar o dinheiro para ajudar na regeneração da economia, em vez de uma mera recuperação?”
Embora seja preciso ajudar as empresas, os governos também precisam fazer algo para os que não têm assistência estatal nem empresarial. Para ajudá-los, o papa propôs a ideia de um salário básico universal, conceito que remonta ao tratado político escrito por São Tomás More em 1516, chamado Utopia.
A ideia de uma renda básica universal ganhou força mais recentemente depois que se tornou a proposta central da campanha presidencial de Andrew Yang, nos EUA.
Os críticos de esquerda, entretanto, enxergam esta proposta como uma medida liberal, enquanto os de direita a descartam como uma intervenção estatal extremada. Consequentemente, o Vaticano tem sido criticado por apoiar a ideia.
“Já fomos acusados de ser neoliberais e socialistas ao mesmo tempo”, disse o Pe. Augusto. “Existem muitos prós e contras na aplicação da renda básica universal, mas os prós são realmente maiores que os contras, porque são uma resposta imediata que os países podem dar num momento de crise. Eles sabem como pô-la em prática, pois uma resposta assim já foi dada antes. Não é reinventar a roda”.
E acrescentou: “É uma possibilidade concreta que os países podem pôr em prática para responder a essa situação, particularmente aos milhões de pessoas que merecem ajuda. É um instrumento. A posição da Igreja é que este instrumento é bem-vindo na medida em que analisemos e promovamos políticas para novos empregos, caso contrário, seria problemático”.
Augusto Zampini Davies é teólogo moral, tendo lecionado teologia, ética e direitos humanos. É mestre pela Universidade de Bath em bem-estar e desenvolvimento humano e doutor em teologia pela Universidade de Roehampton, ambas na Inglaterra.
Com a suspensão das liturgias públicas, ele falou que celebrou a Semana Santa e a Páscoa sozinho, em Roma. “É a primeira vez que celebro o Tríduo Pascal no meu quarto. Nunca pensei que isso fosse possível”, disse ele.
A atual pandemia, segundo o religioso, não é apenas um momento para repensarmos a economia, mas também uma oportunidade de a Igreja decidir sobre aquilo que é essencial em sua missão, um tempo para recomeçar. “O coronavírus tem desafiado as nossas ideologias: as nossas ideologias políticas, econômicas e religiosas”, completou.
“O que é essencial? Eis a questão. O que é essencial a Igreja retomar, para se regenerar e permitir que o Espírito Santo acenda a dimensão essencial do cristianismo? Se Cristo caminha com nós neste momento trágico, para onde ele quer nos conduzir?
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Vaticano propõe repensar o sistema financeiro pós-Covid - Instituto Humanitas Unisinos - IHU