23 Junho 2020
A poucos dias do lançamento do livro eletrônico “Oltre Summorum pontificum” [Além do Summorum pontificum], Alberto Dal Maso oferece uma ampla e saborosa resenha, que pode ser lida tanto por aqueles que leram o livro, quanto por aqueles que desejam conhecer os seus conteúdos fundamentais.
O artigo é de Alberto Dal Maso, liturgista-pastoralista italiano, leigo casado, membro da comissão editorial da Editora Queriniana, da Bréscia, professor da Fundação Bruno Kessler, de Trento, e ex-professor da Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma, publicado por Come Se Non, 22-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Novo livro organizado por Zeno Carra
e Andrea Grillo. (Imagem: Divulgação)
O e-book “Oltre Summorum pontificum” é um pouco aquilo que, nos anos 1980, se definiria, na música, como uma “compilation” de vários artistas. Seis especialistas internacionais em liturgia, cada um na sua língua e cada um a partir da perspectiva acadêmica, do horizonte eclesial e da sensibilidade pessoal que o caracteriza, oferecem uma contribuição para “ajudar os bispos a responderem com discernimento e clarividência ao questionário” que lhes foi enviado pelo cardeal Luis Ladaria, com uma carta datada de 7 de março de 2020, a fim de avaliar o impacto pastoral do motu proprio emitido por Bento XVI há 13 anos.
A ocasião imediata do livro eletrônico publicado pela EDB é constituída pelos recentes desenvolvimentos em torno da questão das “duas formas do único rito romano”, um tecnicismo controverso com o qual se justificaria a coexistência da missa tridentina e da missa pós-conciliar. Dois decretos de 25 de março de 2020, emitidos – em plena emergência da pandemia – pela Congregação para a Doutrina da Fé, introduziram uma ampliação do porte dessa coexistência. Uma carta aberta assinada por um grande grupo de teólogos, não apenas italianos, reagiu a isso, pedindo para superar a situação cada vez mais anômala.
Enquanto isso, foi publicada, no dia 7 de maio de 2020, a citada iniciativa vaticana de uma pesquisa junto aos bispos católicos – por desejo do Papa Francisco – sobre a aplicação do motu proprio de 2007. Enfim, registrou-se uma tomada de posição de um cardeal da Cúria, o suíço Kurt Koch, que, na edição de junho da Herder Korrespondenz, convida a se chegar a uma reconciliação entre essas duas formas celebrativas, a “nova” e a “antiga”.
O contexto menos imediato de “Oltre Summorum pontificum”, no entanto, constituiu-se precisamente pela relação entre antigo e novo, entre pré-Concílio e o pós-Concílio; ou seja, como agora veremos, repassando os conteúdos do e-book, pela dialética entre tradição e desenvolvimento. A isso se refere implicitamente, se passamos do caso para o tema mais geral, o questionário vaticano. Tradição e desenvolvimento, que ao longo da história da Igreja nunca foram duas grandezas concorrentes, também hoje pedem para caminhar de mãos dadas – para evitar toda arbitrariedade evanescente e para esconjurar toda rígida fixidez.
E, no entanto, vem o momento em que, ao tornar novo o antigo (aventura inevitável entre os humanos), algo do antigo deve ser destruído: porque é da natureza das coisas que o presente, ao assumir o passado, não pode deixá-lo totalmente ileso. Os bispos da orbe católica, então, são convidados a discernir não tanto “se”, mas sobretudo “como” determinadas formas de descontinuidade se tornam necessárias, em vista de uma maior continuidade (fidelidade à tradição), para relativizar e repensar relações de continuidade que, vigentes até ontem, hoje não são mais coerentemente sustentáveis.
Conscientes do que está em jogo, os seis autores – coordenados por Andrea Grillo e Zeno Carra – não respondem ponto a ponto à grade de perguntas que fundamentam a pesquisa emitida pelo cardeal Ladaria: nenhum deles pretende sugerir respostas “corretas” aos bispos. Tanto é que optam por articular o seu raciocínio ao longo das entrelinhas de três estímulos, muito diferentes daquelas nove perguntas:
1) motivar a necessidade de superar o atual estado de exceção litúrgica;
2) esclarecer como deve ser entendida a reconciliação litúrgica desejada pelo cardeal Koch;
3) identificar estratégias concretas para sair do atual impasse.
Prossigamos, então, em ordem, para uma sintética visão geral das contribuições oferecidas pelo texto quadrilíngue.
Zeno Carra, doutorando na Augustinianum de Roma, mas que foi precocemente reconhecido pelo seu valioso estudo sobre a presença eucarística de Cristo (“Hoc facite”, Ed. Cittadella, 2018), abre as danças com uma contribuição de recorte tanto teórico quanto pragmático. Tendo limpado o campo de simplificações apressadas e indevidas, que desembocariam em soluções inadequadamente ponderadas, o jovem padre veronense demonstra como é “difícil de imaginar” a prática do vetus ordo como tal diante das reivindicações e das disposições da Sacrosanctum concilium.
A partir desse dado, porém, ele não deduz uma exaltação acrítica e partidária do novus ordo, do modo como se apresenta na prática atual; pelo contrário, o autor embaralha as cartas perguntando se não existem elementos do rito pré-conciliar que, “se recuperados no novo, podem ajudar no cumprimento das reivindicações conciliares”, especialmente onde foram obscurecidas por alguns “desvios” imprevistos. A perspectiva, intrigante e realmente, em princípio, repleta de promessas (aqui exemplificada apenas por algumas referências, obviamente), dá corpo à hipótese de uma mesa de conciliação na qual, para além dos lados contrapostos em uma guerra de posição, se veja “continuar aquele ato de tradição que é a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II”.
O segundo autor a tomar a palavra é o professor de Liturgiewissenschaft da Universidade de Friburgo, na Suíça, que escreve em alemão. Martin Klöckener abre a sua encorpada contribuição, acima de tudo, analisando o recurso à forma “extraordinária” – no fim, circunscrita – e estigmatizando as formas “espúrias” que ativam quer um bizarro birritualismo da parte do mesmo clérigo, quer uma errância de nova cunhagem entre antigo e novo. Depois, ele explica onde está a aporia representada pelos dois usos justapostos do mesmo rito, ilustrando como devem ser corretamente articuladas a diversidade e a unidade na única celebração da Igreja.
A partir da sua perspectiva, Klöckener não vê margens de negociação para “ajustes” cômodos entre vetus e novus ordo: ele faz emergir, sem fingimentos, a sua incompatibilidade, revisando os porquês teológicos e litúrgico-pastorais de uma impossível coabitação deles tanto em princípio, quanto de fato. Pois está em risco “também a credibilidade da Igreja e da mensagem do Evangelho”, e, por isso, um compromisso por baixo representado por “uma fusão das duas formas” deve ser excluído. Isso, no entanto, não o impede de advogar que se proceda a uma apropriada avaliação crítica da forma “ordinária”. De fato, o teólogo de origem alemã vê com bons olhos que se deem “novos passos na direção da reforma” no espírito conciliar, defendendo maiores esforços na direção de um correta e efetiva ars celebrandi.
A prosa inglesa do jesuíta estadunidense John F. Baldovin introduz uma terceira leitura da superação possível do “estado de exceção” na liturgia. Se, em vários lugares, observou-se que as duas formas do único rito romano representam, na realidade, duas abordagens muito diferentes à lex orandi, tanto no plano teológico, quanto no plano pastoral, o estudioso sublinha, em particular, o fato de que elas “comunicam eclesiologias diferentes”. Ele observa que o suposto retorno ao passado, em vez de ser uma solução que cria maior unidade e concórdia, representa um enorme empobrecimento em várias frentes.
Não apenas isso, mas a prática de escolher uma liturgia à la carte “é sintomática do consumismo contemporâneo”, reduzindo o litúrgico como um bem comercial a ser inserido como se desejar no carrinho de compras no supermercado. Paradoxalmente, existem oposições a toda e qualquer inovação que seja, na realidade, altamente inovadora (e não de acordo com o melhor dos perfis): um conservadorismo radical, então, se combina com uma evolução, para dizer o mínimo, problemática. O professor do Boston College também reconhece que a reforma pós-conciliar foi imperfeita na realização plena do desígnio esboçado na Sacrosanctum concilium. Precisamente por isso, então, ele encoraja que convirjam as energias de todos, e não uma série de esforços divisivos, para melhorar a qualidade celebrativas das nossas paróquias, na direção da actuosa participatio.
Não é o caso de brincar com as palavras, invocando uma “reforma da reforma” inversa; e não é o caso de abolir totalmente e por toda parte a possibilidade de celebrar na forma “extraordinária”. Em vez disso, para Baldovin, é necessário se concentrar em uma formação mais qualificada nos seminários e nas escolas de teologia (assim como em uma formação contínua) e preparar uma catequese dos novos ritos, adaptada a todos os fiéis, que possa iniciá-los em uma correta interiorização das palavras e dos gestos que introduzem ao Mistério.
Benedikt Kranemann, ex-professor em Münster e desde 1998 liturgista na Universidade de Erfurt, volta a evidenciar, desde o início, a “singularidade” da coexistência de dois ritos, especialmente quando considerada em referência a “todo o edifício litúrgico” e não apenas à missa (na realidade, o vetus ordo na Alemanha só é defendido por pequenos grupos marginais, por sentimentos de nostalgia ou por fascínio estético).
Kranemann, então, se dedica a explicar em detalhes como e por que uma anomalia tão estridente gera uma situação insustentável do ponto de vista teológico e pastoral, especialmente em relação “à dignidade e ao direito dos batizados”. No entanto, ele também reconhece que várias potencialidades da liturgia reformada após o Vaticano II, ainda não exploradas a fundo, aguardam para serem redescobertas ou promovidas na prática efetiva. Se bem entendida, então, a proposta de uma reconciliação litúrgica entre “antigo” e “novo” pode ser interpretada como uma retomada do projeto litúrgico conciliar e uma continuação e implementação ainda maiores dele.
A mudança de paradigma que ocorreu com aquela que é provavelmente a reforma litúrgica de maior alcance ao longo da história da Igreja é tão cheia de consequências que se torna impossível expurgá-la e voltar atrás. Portanto, não se trata de pôr em risco os bons resultados alcançados, mas sim de superar os déficits e as fraquezas existentes, potencializando os pontos de força do trabalho realizado até agora.
A quinta voz do e-book é a do francês Arnaud Join-Lambert, que se dedica a distinguir o lado teórico e o lado “humano” da questão, focalizando-se neste último. De fato, a contribuição parte de uma triste desventura que ocorreu ao autor: nela ficou evidente a ele que, quando se trata da dupla forma do rito romano, não está em jogo tanto a teologia litúrgica, mas sim outras dinâmicas pessoais que polarizam os ânimos, elevam a taxa de conflitualidade e produzem feridas.
Então, torna-se urgente uma reconciliação dentro do corpo eclesial; ou, melhor, em relação a porções limitadas desse corpo, já que “a questão das duas formas não se levanta em todo no mundo, de fato: existem centenas de milhões de católicos que não dão qualquer importância à celebração da antiga forma do rito romano” – ou a ignoram ou se escandalizam com ela. No front tradicionalista, além disso, o professor da Universidade Católica de Louvain-la-Neuve propõe distinguir duas classes de pessoas: por um lado, “aquelas que estão apegadas à forma antiga da missa”, mas não rejeitam a sua forma ordinária nem contestam o último Concílio; e, por outro, aquelas que “estendem a reivindicação da missa na forma antiga a todas as outras liturgias”, rejeitando as posições até mesmo dogmáticas do Vaticano II.
As primeiras devem se tornar o objeto da solicitude pastoral dos bispos e da atenção fraterna dos outros fiéis católicos, em vista de uma reconciliação litúrgica, também explorando as potencialidades até agora desatendidas do novus ordo. As segundas, uma vez que parecem usar o Summorum pontificum como “direito adquirido” para perseguir um tipo diferente de objetivos, fazendo emergir duas Igrejas paralelas, duas estruturas autônomas, levantam a suspeita de que não há os pressupostos operacionais para uma pacificação. Uma reconciliação só seria realmente possível na presença de um espírito fraterno recíproco, enquanto a contestação teológica do Concílio só pode levar a uma dolorosa separação.
A última das contribuições, a do italiano Andrea Grillo, professor em Roma e em Pádua, parte de longe para tomar impulso. Acima de tudo, ele relê a reforma do rito romano, preparada pelo Movimento Litúrgico e solicitada de acordo com os “altiora principia” do Vaticano II, como uma primeira/primária reconciliação litúrgica: uma recolocação no eixo da capacidade mistérica do celebrar eclesial com a sensibilidade e o mundo contemporâneos. Em relação a essa tarefa incontornável, a presença paralela de uma “forma extraordinária” representou um vulnus, abrindo espaço perigosamente para as várias “formas da Igreja anticonciliar”.
De fato, esse paralelismo, sendo uma construção abstrata no plano teórico, frágil no plano teológico, dúbia no plano jurídico, ingerível no plano prático, consegue polarizar o olhar: torna estrábico, duplica a visão. O vetus ordo torna-se cada vez mais obscurantista; o novus ordo, cada vez mais intelectualista. Impossível recorrer a uma síntese unificante nessas condições. O teólogo de Savona propõe então “um trabalho comum em uma única mesa” que, voltando a escutar fielmente a voz do Concílio, trabalhe na mesma forma “em diferentes níveis” (não só no verbal, dos conteúdos cognitivos) e valorize “toda a tradição do rito romano”.
Esse microcosmo de ideias – substancial panorâmica que ultrapassa as habituais fronteiras italianas – confia ao leitor uma riqueza de intuições e de sugestões para que se amadureça uma consciência própria do desafio em curso e se exercite a própria responsabilidade eclesial, qualquer que seja.
A 13 anos da publicação do Summorum pontificum, chegou a hora de fazer um balanço, sem dúvida. Quando decidimos fazer as contas, porém, sempre nos expomos a um risco. Uma tentação é a de improvisar um processo, talvez em meio aos gritos e à algazarra dos diversos grupos partidários, contra o motu proprio e a sua aplicação – e também a reforma conciliar e a sua aplicação. A alternativa mais sábia é convocar as competências em torno do tema espinhoso, analisar os dados e raciocinar pacatamente, depois de ter deixado do lado de fora as torcidas exaltadas de ambos os lados.
Os autores internacionais de “Oltre Summorum pontificum” optam com seriedade e convicção por esse segundo caminho, em uma lógica de serviço e comunhão. Para salvaguardar o “poder original” do anúncio e da celebração, sem abandonar a sua impetuosa “profecia evangélica”.
Esse já é um resultado valioso. Mas, “para uma reconciliação litúrgica possível” (como diz o subtítulo), o livro digital dedicado ao saudoso Silvano Maggiani vai além, e é aqui que provavelmente surpreende pela audácia.
Trata-se de reabrir, com coragem e convicção, o canteiro de obras da reforma litúrgica pós-conciliar? A resposta dos seis teólogos é afirmativa, eu diria até unânime e sem hesitação. Se esse canteiro já exibia claramente o cartaz “Trabalhos em andamento” e absolutamente não pretendia ser concluído, a partir desse e-book emerge explicitamente um encorajamento a prosseguir nesse empreendimento: também corrigindo erros de cálculo e distorções, e também valorizando preciosos materiais anteriores, por que não? Contanto – eis o requisito posto claramente – que não haja quaisquer ambiguidades sobre a aceitação incondicional da teologia (não apenas litúrgica) do Vaticano II, autêntico ponto sem retorno da reflexão e da ação eclesial.
Isso significa desejar que se abra todo um leque de possibilidades e, ao mesmo tempo, significa banir dois extremos:
1) conceber quer uma “fusão a frio”, quer uma hibridação entre as duas formas do rito romano;
2) reivindicar uma musealização da recente reforma litúrgica (quer por parte dos proponentes, quer dos oponentes).
O livro tem algum defeito? Provavelmente, ele não é perfeito. Por exemplo: ampliar a plateia dos autores permitiria ser mais inclusivo – por gênero e idade, por sensibilidade e visões, por enraizamento geográfico e eclesial... – e ajudaria a fornecer uma amostra mais extensa da aplicação do motu proprio e da ideia de reconciliação litúrgica.
Por outro lado: realizar mais edições internacionais, cada uma em uma única língua (com todos os textos traduzidos), permitiria ampliar a plateia dos fruidores. Na realidade – é compreensível – a publicação do texto teve que se submeter às restrições de um cronograma muito apertado. As respostas ao questionário vaticano, recordamo-lo, deverão chegar à Congregação para a Doutrina da Fé até o fim do próximo mês de julho.
Certamente, a partir dessas páginas eletrônicas, emerge o rosto de uma comunidade científica que não tem medo de apelar ao debate e à discussão dentro do mundo eclesial: que não está encastelada na defensiva, mas busca o debate, que reconhece com franqueza as diversidades (para além dos preconceitos) e, valorizando-as como riquezas, inicia um processo de intercâmbio, de colaboração, de crescimento.
(Se a paciência do leitor permitir, uma minirretratação de minha parte é necessária e pode funcionar como uma nota. Mais do que estar na frente de um “Various Artists LP”, como eu dizia no começo, a impressão obtida no fim desse e-book é de escutar uma das partituras para violoncelo de Bach: seis movimentos autônomos, mas coerentes no conjunto, cada um com sua estrutura própria e seu andamento peculiar de linhas melódicas, mas todos frutos criativos de uma mens unitária. Aqui, conciliar. Que, fundamentalmente, inspira a voar alto.)
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A tarefa que nos aguarda. Resenha do livro “Para além do Summorum pontificum”. Artigo de Alberto Dal Maso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU