03 Junho 2020
"Será que o teletrabalho contribui de fato para uma maior libertação do trabalho? Não, se as leis laborais continuarem a ser o que são, se os sindicatos continuarem a ficar à porta das empresas, se os trabalhadores continuarem a ser perseguidos por pensarem de forma diferente, se o período normal de trabalho não for reduzido, etc. Neste quadro, o teletrabalho, prestado a partir de casa, só pode significar mais exploração e maior sujeição do trabalhador – e da sua família – ao trabalho", escreve Hugo Dionísio[1] jurista, técnico superior em Segurança e Saúde do Trabalho (SST), formador, gabinete de Estudos da CGTP-IN, em artigo publicado por AbrilAbril.pt, 01-06-2020.
Um pouco por todo o lado e em resultado da necessidade de confinamento da nossa atividade pessoal ao espaço habitacional, o teletrabalho tem ressurgido como uma panaceia para diversos males, entre eles, o da dificuldade de conciliação entre a vida profissional e o trabalho.
Todos pudemos constatar, ao longo dos anos, que o teletrabalho era apresentado como a solução para quem, por exemplo, em virtude de ter de tomar conta de filhos, via diminuída a sua capacidade de integração dos afazeres profissionais no quadro das suas responsabilidades parentais.
Bem verdade é que, para quem vive a distância considerável do local de trabalho, poder trabalhar a partir de casa lhe faz ganhar um tempo precioso perdido em transportes e seria irrealista pensar que tal ganho não é susceptível de se refletir na capacidade de conciliação entre a vida pessoal e o trabalho de cada um.
Mas, será que quem vê o teletrabalho apenas por este prisma, já refletiu na invasão que este modo de organização laboral pode significar na esfera privada individual, familiar e social de quem trabalha?
A verdade é que, o trabalho, quando prestado num espaço físico determinado, propriedade da entidade patronal, ajuda o trabalhador a confinar a atividade laboral a um espaço físico concreto, o que, por si só, pode constituir um fator positivo para a conciliação entre a vida privada e trabalho.
O fato de o trabalhador poder localizar, mental e fisicamente, o trabalho, a um espaço determinado, pode ajudá-lo a compartimentar a sua vida profissional, na sua vida pessoal, social e familiar. Na medida em que seja capaz de fazer essa desconexão mental, para o trabalhador, torna-se mais fácil de fazer a separação.
Essa separação, a fazer-se, não apenas pode refletir-se positivamente na forma como o trabalhador gere os riscos psicossociais a que está sujeito, durante o tempo de trabalho, como também se refletirá positivamente na não sujeição dos que com ele vivem, às consequências que tais riscos têm para o próprio trabalhador.
Também devemos ter em conta que, se o trabalhador se afastar do seu espaço físico de trabalho, sob controle da entidade patronal, também se pode estar a libertar de alguns dos riscos psicossociais que lhe estão associados. Mas, e quanto aos riscos que permanecem e que, ao contrário, são transportados para o seu lar?
O afastamento do trabalhador para a sua casa, por motivo de teletrabalho, pode libertá-lo ou diminuir a sua exposição aos riscos psicossociais inerentes às relações no local de trabalho. Contudo, não liberta o trabalhador dos fatores de risco como a discriminação entre trabalhadores, a injustiça no tratamento de situações similares, a subvalorização do desempenho individual, a prepotência com que é exercido o poder de direção…
A estes fatores tradicionais, podemos ainda adicionar o isolamento, a solidão, a escassez de contato humano para discussão, a menor suscetibilidade na troca de experiências, a perda de poder reivindicativo e, em função desse desligamento, a sujeição a condições de trabalho que ele não pode comparar e controlar. Em ultima análise, é possível a uma entidade patronal sujeitar um trabalhador isolado a uma carga cada vez maior de trabalho, associada a uma retribuição cada vez menor e dissociada do esforço suplementar, sem que ele perceba, sem que ele tenha os mesmos parâmetros de comparação que antes utilizava e que lhe permitiam saber se estava a ser discriminado ou não. Em situação de teletrabalho, é bem possível que todo esse encadeamento de experiências, que ajudam o trabalhador a moldar a sua relação com o trabalho e com a entidade patronal, sejam profundamente afetados em seu desfavor. Todos sabemos que um trabalhador isolado é um trabalhador mais vulnerável à sobre-exploração.
Mas, se o que referimos anteriormente apenas se reflete, numa primeira fase, no próprio trabalhador e na sua esfera individual, também é um fato, muito pouco refletido e estudado, por sinal, que passar a prestar a atividade em regime de teletrabalho significa, antes de tudo, levar o trabalho fisicamente para dentro de casa.
Assim, um aspecto muito importante a considerar consiste na intrusão e invasão do trabalho – e de tudo o que ele comporta – no ambiente familiar e pessoal do trabalhador. Ao levar o trabalho para casa, este deixa de estar confinado a um espaço físico concreto, apenas indireta e mentalmente presente na vida caseira do trabalhador.
A partir do momento da prestação da atividade em regime de teletrabalho, a atividade laboral, acompanhada do poder de direção da entidade patronal, passa a fazer parte do ambiente familiar, aumentando consideravelmente o nível de intromissão e perturbação que o trabalho pode representar na vida de um determinado agregado familiar. Já não é só o trabalhador que é sujeito diretamente aos riscos psicossociais presentes na relação de trabalho, pode ser toda a família.
Associados a todos os fatores de risco psicossocial, normalmente presentes nas relações de trabalho, devemos adicionar outros como a pressão para o cumprimento das tarefas, a pressão decorrente da necessidade de criação e delimitação de um espaço físico apto para o trabalho, a imposição, em casa, de condições de trabalho, etc. São estes e outros condicionalismos que são introduzidos num espaço que deveria ser só do trabalhador e dos seus.
Tudo estaria melhor se coubesse ao trabalhador a liberdade da decisão. Mas não, a tendência observada e bem presente na atual situação de calamidade – e já antes no estado de emergência – é que esse poder é dado à entidade patronal, na medida em que, ao torná-lo obrigatório para o trabalhador, quando as tarefas o comportem, é aquela que se dá o poder de decisão de invadir, ou não, através do trabalho, o lar de um trabalhador. Aliás, mesmo numa situação normal, em que a decisão é lavrada «por acordo», devemos questionar em que medida um trabalhador é livre para, efetivamente, não aceitar esse «acordo».
Era importante que, antes de se abraçarem estas tendências, aparentemente modernas e sofisticadas, como tantas outras que mais não têm servido do que para aumentar os níveis de exploração, transportando para o trabalhador custos de produção que antes estavam a cargo das empresas, se procedesse ao estudo do processo disruptivo, a nível individual, familiar e social, que o teletrabalho pode implicar numa determinada família, com especial incidência nos casos em que os trabalhadores têm isenção de horário de trabalho ou um qualquer regime de disponibilidade.
Mas há um exemplo que já podemos antecipar, o fato de, por causa do teletrabalho, o trabalhador poder passar a ter de suportar maiores consumos de eletricidade, água, internet, consumíveis, entre outros. A assunção – permitida na lei –, por parte do trabalhador, destes custos de produção, não apenas lhe baixa, objetivamente, a remuneração, como reduz o orçamento familiar.
Este é apenas um reflexo direto, contudo, podemos ir muito além. Por exemplo, ao introduzir o trabalho em casa, todo um conjunto de regras de funcionamento são introduzidas nessa residência, afetando a forma como as crianças ou quem com ele vive e coabita, partilham o mesmo espaço. O poder de direção da entidade patronal deixa de se confinar às instalações da empresa e ao sujeito da relação de trabalho, para se impor a todos os que o rodeiam, no seio familiar.
A empresa passa a estar presente na vida de todos com muito mais ênfase. Quanto vale esta intromissão e violação da nossa privacidade, intimidade e liberdade? Será que a troca entre «mais tempo ganho pela não deslocação» e o «trazer a relação e trabalho para dentro de casa» é efetivamente benéfica para o equilíbrio entre vida familiar, pessoal e o trabalho? Temos muitas dúvidas. E para o equilíbrio psicossocial do trabalhador?
Há um fator que não é despiciendo e não pode ser deixado ao acaso: o poder patronal, quando exercido no contexto do trabalho a partir da residência, significa poder patronal em casa do trabalhador, na sua intimidade. Quanto maior esse poder, na conformação da relação de trabalho às necessidades da empresa, maior a invasão dessa autoridade na vida do trabalhador e daqueles que com ele convivem.
Para além disso, os conflitos, as pressões, as contradições que o trabalhador antes vivia em espaço laboral determinado, passa agora a vivê-las em casa, à vista de todos e, como seres sociais que somos, pensar que esses fatores psicossociais não intervêm na construção das personalidades dos que vivem com o trabalhador é algo de muito pouco realista.
Será que o teletrabalho contribui de fato para uma maior libertação do trabalho? Não, se as leis laborais continuarem a ser o que são, se os sindicatos continuarem a ficar à porta das empresas, se os trabalhadores continuarem a ser perseguidos por pensarem de forma diferente, se o período normal de trabalho não for reduzido, etc. Neste quadro, o teletrabalho, prestado a partir de casa, só pode significar mais exploração e maior sujeição do trabalhador – e da sua família – ao trabalho.
Nota:
[1] O autor escreve ao abrigo do Acordo Ortográfico de 1990 (AE90).
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O teletrabalho e os riscos psicossociais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU