22 Mai 2020
O teletrabalho se tornou um dos aspectos distintivos dessa nova realidade de trabalho pós-covid-19. Uma medida excepcional, forçada pelas circunstâncias e favorecida pela tecnologia, que em determinados setores poderia se tornar a norma. Qual a origem dessa forma de trabalho?
A reportagem é de Carlos Joric, publicada por La Vanguardia, 21-05-2020. A tradução é do Cepat.
Na verdade, se olharmos para trás (muito) para trás, o trabalho em casa foi mais a norma do que a exceção. Assim como a revolução digital propiciou a expansão do teletrabalho, a revolução agrícola do neolítico, ocorrida cerca de 10.000 anos atrás, permitiu que as sociedades de caçadores-coletores parassem de se movimentar em busca de alimentos e pudessem cultivá-lo ou criá-lo em suas casas.
Com o desenvolvimento dos assentamentos humanos, aumentou a divisão e a especialização do trabalho. Os grupos sociais começaram a se diferenciar, entre outros aspectos, de acordo com o seu ofício. No entanto, com poucas exceções - boiadeiros, transumantes, vendedores ambulantes, pescadores... -, a maior parte dos trabalhadores realizava seu trabalho na esfera doméstica: granjas, oficinas, comércios, palácios, edifícios religiosos...
De fato, os ofícios que envolviam certo nomadismo não eram bem vistos. Inclusive se chegou até a discriminar quem os desempenhava, como na Espanha, os maragatos (León), pasiegos (Cantabria), vaqueiros (Astúrias) ...
Com o início de outra revolução, a industrial, o sistema produtivo se transformou completamente. Não era mais o comerciante que ia à casa do artesão, mas o artesão que ia à “casa” do comerciante, à fábrica, para trabalhar nela.
Diante da impossibilidade de competir com a produção em massa, grande parte dos artesãos não teve escolha a não ser se tornar um trabalhador assalariado. Junto com eles, foi incorporada uma grande força de trabalho não qualificada, principalmente camponeses empobrecidos que se mudaram do campo para os centros industriais. Nascia o proletariado.
Na primeira metade do século XX, o desenvolvimento da sociedade de consumo gerou uma maior variedade de profissões, permitindo o crescimento da classe média urbana. O mercado de trabalho se diversificou e se estratificou como nunca. No entanto, a maioria dos funcionários ainda tinha algo em comum: trabalhavam fora de casa. Alguns deixavam suas casas rumo às fábricas ou explorações industriais e outros se mudavam para o centro da cidade, onde estavam as oficinas e os estabelecimentos comerciais.
Fora deste sistema, restavam poucos. A maioria eram pequenos comerciantes e profissionais liberais (artistas, advogados, médicos, arquitetos), que tinham a oficina, a loja ou o escritório em sua casa. Assalariados que tradicionalmente moravam no local de trabalho, como professores, clérigos, empregados e porteiros de edifício, foram pouco a pouco residindo em sua própria casa.
Na maioria das casas ocidentais, na segunda metade do século XX, apenas permaneciam as donas de casa. Algumas, por necessidade ou interesse (muitas mulheres foram expulsas do mercado de trabalho após ingressar nele durante a Segunda Guerra Mundial), decidiram combinar seus trabalhos domésticos com o trabalho remunerado.
Os trabalhos mais comuns tinham a ver com suas próprias habilidades domésticas: costurar e passar, principalmente. Outros implicavam algum tipo de formação diferente: mecanografia, cabeleireiro, aulas particulares... A maioria eram trabalhos esporádicos praticados fora da economia oficial.
Também existia um tipo de emprego muito popular - e bastante precário - que ainda continua funcionando: os trabalhos manuais. Empresas que pagam trabalhadores para que, de suas casas, montem bijuterias, canetas, coloquem cartas em envelopes, montem caixas (como as pizzas que aparecem no filme recente Parasita).
Foi nesse contexto doméstico onde surgiu um novo método de trabalho: vender em casa. Empresas como a popular Tupperware implementaram, com grande sucesso, um sistema de vendas por demonstração articulado através das chamadas party plan, reuniões organizadas por uma “anfitriã” em sua casa, onde apresentava e vendia os produtos ao seu círculo social. Embora hoje em dia a figura da “anfitriã” tenha sido separada da vendedora (que se desloca para outras casas), no início, durante os anos 1950, costumava ser a mesma pessoa.
“Teletrabalho” (telecommuting, em inglês) foi um termo cunhado pelo engenheiro da NASA Jack Nilles. A ideia surgiu como uma resposta à escassez de combustível que ocorreu nos Estados Unidos, em 1973, devido ao embargo de petróleo decretado por exportadores árabes aos países que apoiavam Israel na Guerra do Yom Kipur.
Em seu inovador estudo Telecommunications-Transportation Tradeoff (1976), Nilles argumentou que “se um em cada sete trabalhadores não precisasse se deslocar para seu local de trabalho, os Estados Unidos não precisariam importar petróleo”.
A partir dessa crise, o teletrabalho esteve muito presente no debate público. Em 1979, o Washington Post publicou o influente artigo “Working at Home Can Save Gasoline”, em que se tratava desta questão. Junto às vantagens relacionadas à economia e a menor dependência energética, os defensores do teletrabalho acrescentaram outras: redução de engarrafamentos, revitalização social e comercial de bairros residenciais e cidades-dormitório, favorecendo a conciliação trabalho-família e, portanto, acesso das mulheres ao mercado de trabalho (a questão da paridade ainda estava em sua infância), diminuição da poluição...
No entanto, também houve vozes contra. Os sindicatos temiam que os empregadores usassem o teletrabalho para cortar salários, prolongar a jornada de trabalho e evitar custos sociais contratando (falsos) autônomos. O patronato, por sua vez, via com bons olhos as economias que implicava a redução de infraestruturas, mas desconfiavam da falta de controle físico sobre o empregado, tanto para encorajá-lo, como para discipliná-lo.
Como vemos, esses argumentos são praticamente idênticos aos que estão atualmente em debate. Embora com uma grande diferença: uma parte do ceticismo que gerava o teletrabalho durante seu início esteve motivado pela precariedade dos sistemas de armazenamento de informações e telecomunicações existentes.
Apesar dessas limitações, algumas empresas estadunidenses, como IBM, American Express e General Electric, começaram a experimentar trabalhos remotos nos anos 1980. Uma década depois, com a expansão da Internet e dos computadores pessoais, o teletrabalho começou a ser visto como uma alternativa viável ao trabalho presencial. Os governos começaram a implementá-lo em suas próprias administrações e a promovê-lo como parte dos planos para a conciliação da vida pessoal e profissional (na Espanha, o Plano Concilia de 2005).
Hoje, coincidindo significativamente com outra crise global, as previsões feitas por Jack Nilles, há quase meio século, podem se tornar realidade. O experimento já está feito. Grande parte do mundo está ou esteve em teletrabalho durante várias semanas. Agora é o momento de analisar os resultados. O teletrabalho fará parte da esperada “nova normalidade”?
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O teletrabalho nasceu de outra crise - Instituto Humanitas Unisinos - IHU