14 Mai 2020
“A ideia de progresso que define nossa época é muitas vezes mais parecida com a progressão de uma doença do que com sua cura. Para Walter Benjamin, o progresso, quando visto pelo olhar dos oprimidos, assemelha-se muito a um vendaval que deixa um rastro de vítimas e escombros. Nessa perspectiva, progresso é sinônimo de catástrofe e a utopia tem a ver, sobretudo, com a esperança de interromper esse progresso”, escreve Santiago Álvarez Cantalapiedra, economista, diretor da Revista Papeles, em artigo publicado por Público, 13-05-2020. A tradução é do Cepat.
Embora o termo utopia tenha surgido no Renascimento, as primeiras expedições pelas terras utópicas foram tão antigas como as capacidades simbólicas e de fabulação do ser humano. Talvez seja por isso que Francisco Fernández Buey, que demonstrou tanto apreço pela razão utópica, sempre associasse as ilusões que nascem naturalmente da vida dos seres humanos à ideia de utopia.
Sabe-se que utopia é um nome inventado por Thomas More, que os filólogos atribuem à combinação do prefixo grego ou, (não) com a palavra topos (lugar). Três séculos e meio depois, o economista e filósofo John Stuart Mill utilizou pela primeira vez o termo distopia, em uma intervenção parlamentar, para se referir à perspectiva pouco encantadora que se desprendia da vigência de alguns fatores do presente. Cinco décadas depois, Patrick Geddes e Lewis Mumford apresentam – nos lembra José Manuel Naredo em seu artigo - o termo eutopia para expressar o bom lugar para estar e para onde deveríamos ir.
Por que deveria nos interessar, na era do Antropoceno, a utopia entendida como eutopia? Que significado pode ter no começo do século XXI, pressionados como estamos por ameaças globais que adquirem uma dimensão existencial? São perguntas que nos levam a orientar nosso olhar, pela primeira vez, nos trinta e cinco anos de vida da revista, para esse lugar imaginado que deveria estar nos mapas que merecem ser vistos.
Como sugere Jesús Joven, ao nos introduzir na obra de Thomas More nesta edição, a sociedade que prefigura essa primeira utopia literária está longe de ser uma sociedade justa (devido à existência da escravidão), tampouco parece uma sociedade desejável, nem mesmo para o autor que a imagina, pois nela se faz evidente a ausência de Deus. É provável, portanto, que More não estivesse imaginando um “bom lugar”, mas um “não-lugar” para comentar criticamente o mundo que o cercava. Esse papel crítico é a primeira e mais importante função que pode ser atribuída à utopia. Mas há pelo menos duas outras funções a mais que merecem nossa atenção.
A segunda função da utopia é ajudar a imaginar alternativas. A utopia como invariante da história humana faz parte das ilusões naturais de que fala Leopardi e reivindica Fernández Buey, uma torre de observação para visualizar e antecipar outra realidade. O gênero utópico serviu, por exemplo, para lançar novos princípios sociais a serviço da emancipação da mulher - no caso de Charlotte P. Gilman, precursora com seu Terra das Mulheres (1915) - ou para uma organização alternativa da economia - como a imaginada pelo socialista norte-americano Edward Bellamy, em seu romance Looking Backward (1888) -, que mais tarde, como resultado de tantas lutas, acabou se tornando realidade em muitos lugares. O sufrágio feminino, a educação universal e a abolição do trabalho infantil são princípios que pertenceram um dia ao gênero utópico e estão presentes hoje em um grande número de sociedades em nosso mundo, embora - evitemos esquecer – não em todas.
Assim, o potencial crítico da utopia adquire sentido em meio à obscuridade do presente somente quando se coloca a serviço da emancipação humana. Mas, para poder liberar esse potencial, precisa começar diferenciando os iludidos daqueles que abrigam sonhos, pois criar ilusões não é o mesmo que ter sonhos. E o que diferencia uma coisa da outra? Os iludidos se diferem dos utópicos por defenderem ideais que estão fora da história. Suas ilusões não são realizáveis. Pelo contrário, o utópico abriga um sonho viável, talvez não no momento atual e dentro da ordem social dominante, mas não impossível em outro momento histórico e sob outras circunstâncias. O utópico, diferentemente do iludido, encaixa a utopia a uma realidade que não se reduz ao campo do que existe.
A realidade também é um campo de possibilidades, de opções para explorar e de experiências alternativas para praticar, algumas até já iniciadas, embora rapidamente sufocadas e deslocadas para um segundo plano da história pelo poder. Quando se formula uma utopia, ressalta Juan José Tamayo, “não se está propondo o impossível, procura-se mudar as coordenadas que a tornam impossível para que seja possível”.
A terceira função da utopia está intimamente relacionada com essa dupla função crítica e alternativa que acabamos de comentar. A utopia, como instância crítica que também ajuda a visualizar outra realidade, se torna motivação para a ação e o horizonte que guia a mudança social. Como apontou Paco Fernández Buey, é essencial iniciar e sustentar a ação política a partir de uma perspectiva emancipadora: “Nunca houve, nem haverá filosofia moral sem utopias, isto é, sem a prefiguração de sociedades imaginárias mais justas, mais igualitárias, mais livres e mais habitáveis das que temos conhecido e que conhecemos. A imaginação utópica foi e será o estímulo positivo de todo pensamento político moral”. Talvez tenha sido Eduardo Galeano quem - do campo literário - mais reivindicou esse papel da utopia.
São muito conhecidas as palavras com as quais fez eco a resposta dada pelo cineasta argentino Fernando Birri à pergunta: para que serve a utopia? “A utopia está no horizonte. Caminho dois passos, ela se afasta dois passos e o horizonte corre dez passos além. Então, para que serve a utopia? Para isso, serve para caminhar”. Utopia que combina crítica e alternativa, que guia a práxis e a orienta para ela. Essa é a sua função.
A publicação, em Lovaina, em 1516, da obra Sobre o melhor estado de uma República que existe na Nova Ilha Utopia inaugura o pensamento utópico moderno. Embora a noção de utopia esteve enraizada em seus inícios ao âmbito social e tinha um acentuado caráter político, com o tempo foi cedendo lugar a favor de ilusões tecnocientíficas. Este trânsito não é acidental. As utopias, devido à sua carga crítica e alternativa, tornaram-se uma ferramenta perigosa a serviço da emancipação humana.
Pierre Musso lembra que essa mudança da utopia para o ilusório solucionismo tecnológico ocorre em épocas muito precoces como as das revoluções sociais e operárias dos anos 1830, na França: “O objetivo era evitar conflitos políticos para celebrar o progresso técnico e a revolução industrial (...) A utopia deixa de ser sociopolítica para se tornar técnico-científica. Essa inflexão fundamental, em suas origens, pretendia uma tomada de poder tecnocrática, relegando a um segundo plano a utopia social e até socialista. É isso que pretendem alguns sansimonianos ao reduzir a mudança social a realizações técnicas”.
No limiar da “quarta revolução industrial”, derivada da integração da inteligência artificial com a nanotecnologias e a biologia sintética, as ilusões tecnológicas renascem cada vez com mais força. O livro Homo Deus de Harari sintetiza melhor do que qualquer outro as ilusões presentes na sociedade atual. A possibilidade que foi aberta ao ser humano de acabar com os flagelos da fome, da guerra e da doença o permite ascender a um nível superior na escala evolutiva: “A ascensão dos seres humanos a deuses pode seguir qualquer um desses três caminhos: engenharia biológica, engenharia ciborgue e engenharia de seres não orgânicos”.
Não é necessário esperar a lentíssima seleção natural e a aleatória mutação dos genes quando for possível forçar mudanças com as alavancas da biotecnologia, inteligência artificial e da nanotecnologia. Hoje, essa ilusão tem um nome e enormes recursos a seu serviço. O transumanismo, que nada mais é do que a busca pela imortalidade através da tecnologia, conta com o apoio inestimável do Google e da NASA, por meio da Universidade da Singularidade, dedicada exclusivamente a esse assunto.
A capacidade de sedução das novas tecnologias parece irresistível. Mas se por um momento pudéssemos suspender essa atração, encontrando melhores condições para nos perguntarmos se essas opções são realmente desejáveis, é provável que nos sugiram algumas reservas. A bem sucedida série Black Mirror reflete com maestria o desconforto e a inquietação que nos causam tanto ilusionismo tecnológico. Em seus capítulos, é abundante a distopia e escassa a eutopia.
Cabe perguntar se essa substituição das utopias pelas distopias é algo recente ou vem de longe. Embora a ficção distópica sempre viveu seus momentos mais dourados após as grandes crises coletivas, desde seu início, a utopia carregou em seu avesso a distopia. Portanto, é necessário distinguir as utopias puras das paródias utópicas, que não buscam apresentar um ideal, mas evitá-lo. Entre os autores das primeiras, encontramos More, com sua Utopia, Campanella, com A cidade do Sol, Bacon, com Nova Atlântida, Bellamy, com ‘Olhando para trás’ e, acima de tudo, Morris, com Notícias de Lugar Nenhum.
Entre os cultivadores das segundas, autores como Italo Calvino, H.G. Wells e Úrsula K. Le Guin, que imaginaram em muitas de suas obras futuros distópicos, com a intenção de que, ao antecipar esses horizontes sombrios, estaríamos em melhores condições para evitá-los. Outros como Yevgueni Zamiatin, com Nós, Aldous Huxley, com Admirável Mundo Novo, e George Orwell, com 1984, é possível que nem sequer contaram com tal esperança.
De qualquer forma, poucos foram os tempos tão propensos a distopias como hoje. Estão tão presentes em nossos dias que grande parte da literatura juvenil mais célebre responde a esse gênero (veja a trilogia de Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, e o tríptico de Verónica Roth, formado com seus romances Divergente, Insurgente e Convergente, todas levados ao cinema, nos últimos anos, com grande sucesso de público).
Tampouco escaparam dessa tentação muitos autores consagrados, como é o caso do mundo apocalíptico descrito por Cormac McCarthy, em A estrada, o renascimento do antissemitismo suscitado por Philip Roth, em Complô contra a América, e a recepção que alcançaram os dois romances de Margaret Atwood sobre a República de Gileade (O conto da aia e Os testamentos).
A ficção científica cultivou um campo muito próximo ao das utopias. O racionalismo mágico presente neste gênero literário permitiu viajar para a Lua ou para as profundezas da Terra, quando ainda não era possível. A consciência do futuro como um vasto território de possibilidades permitiu que algumas mentes lúcidas fossem capazes de antecipar eventos que outros seres humanos presenciaram.
Desde que no século II o escritor grego Luciano Samósata imaginou uma viagem à Lua, o ser humano realizou a maioria das ilusões que abrigou: chegou aos confins dos oceanos, deu a volta ao mundo, explorou os abismos mais profundos e formulou teorias, como a das cordas cósmicas e os buracos de minhoca, que tornam verossímeis as viagens no tempo imaginadas pelo incomparável Herbert George Wells, vinte anos antes do não menos genial Einstein formular a teoria geral de relatividade.
A ficção científica é um gênero moderno, filha da confiança no futuro e da ideia de progresso. O futuro como algo melhor que o presente. “O progresso é a realização das utopias”, dizia Oscar Wilde. A narrativa utópica é de certa forma uma variante da filosofia do progresso, mas que ideia de progresso cabe abrigar em nosso tempo?
A ideia de “progresso” que define nossa época é muitas vezes mais parecida com a progressão de uma doença do que com sua cura. Para Walter Benjamin, o progresso, quando visto pelo olhar dos oprimidos, assemelha-se muito a um vendaval que deixa um rastro de vítimas e escombros. Nessa perspectiva, progresso é sinônimo de catástrofe e a utopia tem a ver, sobretudo, com a esperança de interromper esse progresso. Quando se avança na direção errada, o progresso é a última coisa que se necessita. Não faz sentido progredir em direção ao abismo, e é para onde nos conduz esse modelo de civilização.
A civilização industrial capitalista deslumbra suas vítimas com um progresso aparente, não real, porque, em seu curso, deteriora as bases naturais e sociais sobre as quais se sustenta. Isso nos levou a uma crise ecossocial da qual emergem várias ameaças existenciais: ameaças climáticas, pandemias causadas pela globalização com efeitos imprevisíveis na saúde pública e disputas por recursos estratégicos que pressionam a geopolítica internacional em um contexto de proliferação nuclear.
O futuro não tem o mesmo significado agora que antes da crise ecológica. Antes dessa crise, o futuro ainda podia ser visto como um território de possibilidades: cabia pensá-lo como um momento melhor para projetarmos o que não é possível alcançar no presente. Mas agora não. A crise ecológica determinou o nosso futuro. Vemos isso claramente quando observamos as consequências da mudança climática. Do ponto de vista da crise climática, o futuro nunca será melhor e, portanto, toda a nossa luta pelo futuro gira entre o “ruim” e o “pior”.
E a diferença entre os dois futuros é enorme: nada menos que a possibilidade entre uma convivência ainda civilizada e a mais atroz das barbáries. Há tanta diferença entre os dois futuros que a utopia só pode ser pensada como a aspiração de alcançar o menos ruim. Nossos tempos são de concessões, de busca do mal menor. O melhor deixa de estar a nosso alcance e devemos nos conformar com o menos ruim. São tempos de utopia formulada de forma negativa: “hoje, não estamos lutando para construir a brilhante utopia, mas para evitar as distopias piores".
Predominam hoje as distopias, que não são mais que a crescente consciência de que estamos vivendo um grande desastre social e civilizatório. Dar uma guinada no sentido trágico do presente passa por fazer florescer a carga alternativa da utopia, coisa que o pensamento que permanece meramente distópico não consegue imaginar. Se a distopia chega a ser, no melhor dos casos, uma crítica, quando aponta para o estado de barbárie a que nos conduz o presente, a utopia, além da crítica, fornece a imaginação política necessária para lançar a realidade em outra direção, em direção a um bom lugar, rumo à eutopia.
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A utopia na era do Antropoceno. Artigo de Santiago Álvarez Cantalapiedra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU