07 Mai 2020
Investigação conjunta da Repórter Brasil e do The Guardian percorreu duas florestas protegidas na região de Novo Progresso, no Pará, alvo de queimadas no ano passado, e encontrou desmatadores reincidentes que não pagam multas ambientais. Entre eles, um fiscal ambiental do Paraná e uma ex-candidata a vereadora. Com crimes impunes e redução da fiscalização, queimadas de 2019 devem se repetir neste ano em meio à pandemia do coronavírus.
A reportagem é de Daniel Camargos e Dom Phillips, publicada por Repórter Brasil, 05-05-2020.
Apesar de trabalhar como fiscal ambiental do governo paranaense, Paulo José Parazzi de Andrade é um dos responsáveis pela destruição de uma área protegida na Amazônia, na divisa do Pará com o Mato Grosso. Após derrubar parte da Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo, Andrade plantou capim – para a criação de gado.
Para chegar até lá é preciso atravessar estradas de terra estreitas que cortam a densa floresta amazônica, intercaladas com paisagens de cerrado. A reserva é uma área de transição entre os dois biomas, além de berço de afluentes dos rios Xingu e Tapajós. Por destruir parte desse santuário ecológico, Andrade recebeu pelo menos seis multas ambientais do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), que, somadas, chegam a R$ 5,4 milhões.
A Repórter Brasil, em parceria com o jornal The Guardian, percorreu durante uma semana, no final de 2019, os caminhos no interior da reserva biológica Nascentes Serra do Cachimbo e da Floresta Nacional (Flona) do Jamanxim, áreas protegidas que estão entre as mais queimadas e desmatadas da Amazônia. As áreas têm território maior que a Irlanda do Norte (1,7 milhão de hectares) e circundam Novo Progresso – cidade com 25 mil habitantes e 618 mil bovinos –, palco das articulações do ‘Dia do Fogo’, a queimada organizada por produtores rurais e empresários realizada em agosto do ano passado e que, depois de mais de sete meses, permanece impune e sem nenhum indiciamento.
Araras, bichos-preguiça, tamanduá, porcos do mato e até um raro macaco-aranha de pelagem branca cruzaram o caminho da reportagem, mas o animal onipresente é o boi. O desmatamento sistemático e as queimadas expulsam a fauna silvestre e abrem espaço para as pastagens. Das quatro áreas desmatadas visitadas pela reportagem, três estavam dedicadas à criação de bovinos e uma era fruto de grilagem (roubo de terras), inclusive com placas de “lotes à venda”.
Um cenário que é corriqueiro. No interior da Flona Jamanxim são pelo menos 101 fazendas de pecuaristas, sendo que 33 fornecerem bois diretamente para os frigoríficos e outras 68 vendem para terceiros, para engorda. Na Rebio (Reserva Biológica) Nascentes Serra do Cachimbo, existem 27 fazendas de gado, segundo levantamento feito pela professora de geografia da Universidade Wisconsin, Holly Gibbs, que monitora as cadeias de gado da Amazônia há mais de uma década.
Além do fiscal ambiental multado pelo ICMBio, a reportagem foi até áreas destruídas por uma candidata a vereadora e por dois produtores rurais. Todos ignoram a demarcação das reservas ambientais. Desmatam, queimam a floresta, repetem o crime diversas vezes e não pagam as multas ambientais. Na maioria dos casos, quando flagrados, dizem que a terra não pertence a eles.
Na primeira vez que foi autuado, em 2016, Andrade, o fiscal paranaense, foi acusado de desmatar 375 hectares e foi multado em R$ 4,5 milhões. Ao recorrer, alegou que a terra não pertencia a ele. O argumento persistiu em outras multas que recebeu, mas em setembro de 2018, os fiscais perceberam novos alertas de desmatamento no sistema de monitoramento por satélite e foram até a propriedade. Chegando lá, encontraram Andrade.
Ele argumentou que não possui a documentação da terra e, dessa maneira, a fiscalização não pode provar quem é o responsável pelo desmatamento. Também negou ser o dono das 18 toras de madeira nativa apreendidas. Porém, quando a fiscalização do ICMBio determinou que ele destruísse uma casa construída na área da reserva, Andrade assumiu que o imóvel era dele. Insistiu, no entanto, que não causara dano ambiental.
Procurado pela Repórter Brasil e pelo The Guardian, o fiscal ambiental do governo do Paraná não quis conceder entrevista. Porém, em sua defesa apresentada ao ICMbio, Andrade diz que o poder público deve “sanar os verdadeiros problemas” da Amazônia. Para ele, os órgãos de fiscalização não podem apenas “retirar os direitos dos homens e mulheres que são brasileiros e permanecem na tentativa de desenvolver sua região e país”.
A justificativa de Andrade é corriqueira entre aqueles que destroem e queimam a Amazônia, segundo o procurador Paulo de Tarso Moreira de Oliveira, do Ministério Público Federal em Santarém. É recorrente a reclamação de que, o esvaziamento da política de incentivo à ocupação da Amazônia — implementada durante a ditadura militar (1964-1985) –, deixou famílias expostas à fiscalização ambiental.
Para o procurador, desde a Constituição de 1988, o Estado não passa mais a mensagem de ocupação indiscriminada da Amazônia. “A despeito da legislação, algumas pessoas apostam em um modelo de exploração que o Estado brasileiro já não fomenta há bastante tempo”, completa.
O discurso antiambiental e inflamado do presidente Jair Bolsonaro agrada aos moradores de Novo Progresso. O soldador Jadir Paulo Rosa, de 36 anos, chegou na cidade há oito anos vindo de Santa Catarina e defende o presidente. “Temos muita confiança no Bolsonaro. Queremos a regularização das terras e somos totalmente contra as áreas de reserva”, afirma. “Se não tivesse mudado o governo eu teria que ter mudado de país”, completa.
Rosa é um entre vários moradores de Novo Progresso que não acredita no aquecimento global. “Isso não existe. Quem manda no clima do planeta é o oceano”. No final de semana de 10 e 11 de agosto, quando ocorreram queimadas articuladas na floresta, a cidade ficou sob forte névoa provocada pela fumaça.
Quem concorda com Rosa é o principal investigado pela articulação para o “Dia do Fogo”, o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Novo Progresso, Agamenon Menezes. O aquecimento global, ele diz, é uma farsa inventada por cientistas que “ganham para publicar essas matérias malucas aí”. Menezes entende que o “Dia do Fogo” foi invenção da imprensa para atingir o presidente Jair Bolsonaro. “Todo mundo quer derrubá-lo. Aproveitaram essa deixa”, afirmou o ruralista 18 dias antes de ter sido alvo da operação Pacto de Fogo, da Polícia Federal.
Fato é que a Amazônia ficou em chamas em 2019. O número de focos de queimadas, entre janeiro e agosto do ano passado, cresceu 110% em toda a região quando comparado com 2018. Foram 46.825 pontos, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), um aumento de 64% em relação à média dos últimos dez anos (2009-2018) para o mesmo período.
As projeções para o período seco deste ano — que começa no segundo semestre — são piores. No primeiro trimestre de 2020 os alertas de focos de incêndio corresponderam a uma área 51% maior do que os registros do mesmo período em 2019. De acordo com projeção do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipan), aumento do desmatamento em 2020, somado à vegetação derrubada em 2019 que não queimou, cria expectativa de uma nova temporada intensa de fogo.
Um estudo da ONG ambiental WWF mostra que 31% dos focos das queimadas foram em áreas que eram floresta até julho de 2018, o que deixa claro que as áreas protegidas estão sob ataque. Entre janeiro e agosto de 2019, o desmatamento nas reservas cresceu 84% em relação a 2018 e mais de 190% em relação a 2017.
Localizada bem no meio da Flona do Jamanxim está a fazenda da Jair Ferreira de Souza. Em 2015, ele foi multado pelo ICMBio por desmatar 226 hectares e recebeu uma multa de R$ 2,2 milhões. Na defesa apresentada por escrito ao órgão ambiental, Jair alega que a área não pertence a ele e reclama que os servidores do ICMbio não deram atenção para suas explicações. “Só queriam mesmo era achar alguém para aplicar a devida infração. Como não localizaram o proprietário me forçaram a assinar de qualquer maneira”, escreveu.
Souza voltou a destruir a floresta em julho de 2019, quando foi autuado pelo ICMBio por desmatar 62 hectares, teve a área embargada e foi multado em R$ 630 mil. No local, os fiscais encontraram gado com a marcação em brasa no couro com as iniciais JF (Jair Ferreira). Os fiscais foram até a casa de Souza, em Novo Progresso, e ele admitiu ser o responsável pelo desmatamento. Disse que precisava de pastagem e que pagou para derrubar a floresta.
“Se vender minha propriedade, ainda assim não consigo pagar”, alegou Souza na defesa apresentada ao ICMBio. Ele disse que a área está com a família dele há mais de 30 anos e quando chegaram o local não era uma reserva ambiental. A reportagem procurou o pecuarista por telefone e por mensagens de Whatsapp, mas ele não atendeu as ligações e nem respondeu aos pedidos de entrevista.
O local onde está a fazenda de Souza não tem relação nenhuma com a imagem do que deveria ser uma área protegida. É uma fazenda, na margem de uma estrada de terra, cercada por outras fazendas, todas com infraestrutura completa: casas, curral, cercas e porteiras. E bois, muitos bois. Centenas de animais pastando por locais com vestígios de queimadas recentes. Ao inserir no mapa a área da fazenda de Souza e sobrepor os focos de incêndio detectados pelos satélites da Nasa de 2015 a 2019, é possível observar dezenas de focos nos últimos cinco anos.
A Flona do Jamanxim é dominada por conflitos agrários, grilagem de terras, garimpos e extração de madeira ilegal desde que área de proteção ambiental foi criada, em 2006. Produtores rurais argumentam que a Flona do Jamanxim foi estabelecida em áreas que já estavam sendo exploradas. O ICMBio, entretanto, estima que 67% dos ocupantes da Flona entraram pouco antes ou logo após a criação da área. “O que se vê, ano após ano, é uma tentativa de diminuição dessa área, como se fosse uma unidade malquista pela população local”, analisa o procurador Oliveira, do MPF.
Durante o governo de Michel Temer, políticos ligados à bancada ruralista articularam uma redução da área protegida. Depois de pressão de ambientalistas e de uma campanha que contou com a participação de celebridades como a modelo Gisele Bündchen, Temer vetou a medida. Após o veto, o Planalto tentou reduzir novamente a área protegida, desta vez por meio de um projeto de lei enviado ao Congresso, que aguarda a criação de uma comissão temporária para analisar a proposta.
Inúmeras serrarias estão em operação nas margens da BR-163, principalmente nos distritos Castelo dos Sonhos e Cachoeira da Serra, que fazem parte da cidade de Altamira. É comum encontrar caminhões velhos, sem placas de identificação e com o motor e parte mecânicas expostas. Remetem aos veículos da ficção pós-apocalíptica Mad Max – filme de 1979 dirigido por George Miller – que, na realidade do Sudoeste do Pará, são usados para transportar toras de madeira extraídas ilegalmente de áreas de reserva.
Na Vila Izol, distrito de Novo Progresso, um bar tem três suásticas pichadas na parede ao lado de uma propaganda de cerveja. “Se você quiser transar com uma índia, tem que agarrar ela com força e jogar no chão”, diz um senhor ao repórter, sem ser perguntado sobre o assunto. Com uma cuia de chimarrão em uma mão e um rádio-transmissor na outra, o senhor com sotaque gaúcho passa os dias sentado na porta de um hotel recém-construído, na margem da BR-163, em Cachoeira da Serra. Ele faz parte de uma rede de informantes, que avisa aos madeireiros sobre o trajeto dos veículos de fiscalização.
Ao sair da rodovia e entrar na área da Reserva Biológica Nascentes Serra do Cachimbo, a paisagem é um pouco diferente da Flona Jamanxim, já que montanhas se destacam por entre a planície amazônica. O que não muda, entretanto, é a presença dos bois em um local que deveria ser preservado.
A fazenda de André Fernando Ferri é um exemplo: são centenas de animais em um pasto consolidado. O sucesso como pecuarista em uma área protegida faz de Ferri um freguês dos fiscais do ICMBio. São pelo menos R$ 36,3 milhões em multas. Uma delas, aplicada em agosto de 2015, foi por queimar 425 hectares.
Parte das multas aplicadas estão fora da área que ele registrou no Cadastro Ambiental Rural (CAR), mas os fiscais do ICMBio sustentam que, mesmo assim, o desmatamento e as queimadas foram realizados para atender o interesse de Ferri.
O CAR é um cadastro feito pelo próprio produtor com o objetivo de auxiliar na regularização ambiental da propriedade. O registro, contudo, pode ser usado para ludibriar a fiscalização. É comum na região, segundo o procurador Oliveira, que os grandes proprietários de gado façam contratos de arrendamento com os desmatadores.
Dessa maneira, os desmatadores assumem o risco e cadastram o CAR, pois contam com a impunidade. Levantamento do Infoamazônia e The Intercept Brasil mostra que apenas 3,3% das multas aplicadas pelo Ibama foram pagas desde 1980. Nenhum dos casos citados nesta reportagem teve o processo administrativo concluído e as multas quitadas.
A fazenda de Ferri fica ao lado de outra da família, que pertence a empresa Paranazão Transportes, de Loanda, no Paraná, cujo sócio-administrador é seu irmão, Edner Aparecido Ferri. A Repórter Brasil fez contato com André Ferri, mas quando começou a fazer as perguntas sobre as multas ele desligou o telefone e não atendeu mais. Ao ser procurado pelo Whatsapp, ele bloqueou o número da reportagem. Ferri nunca foi encontrado pelo ICMBio para receber as notificações.
Próximo dali, há uma extensa área recém-queimada. A suspeita dos fiscais do ICMBio é a de que a responsável pelo crime é Nair Rodrigues Petry, candidata derrotada a vereadora em 2016 pelo PSDB em Guarantã do Norte, no Mato Grosso, com o nome político de Nair Brizola.
Em agosto, Petry afirmou em entrevista ao Globo Rural que quem estava queimando a reserva eram os fiscais ambientais. Ao ser questionada pela Repórter Brasil se foi responsável pela queimada, ela nega e volta a colocar a culpa nos fiscais do ICMBio.
Petry já havia sido multada, em 2005, por queimar 70 hectares, e foi novamente autuada em agosto do ano passado por queimar novamente a área. Ela publicou em uma rede social um anúncio que estaria vendendo lotes no local. Ao ser questionada pela reportagem, ela nega. “Nunca fiz esse tipo de coisa. Ali é minha vida, porque foi a única coisa que me restou do divórcio”, disse.
A explicação de Petry é que ela já tinha a posse da área antes da criação da Reserva Biológica, em 2005. “Ninguém é bandido. Ninguém está entrando ali. A gente até pagou pelo lote na época que a gente entrou, porque não era reserva. Eu tenho documento de direito de posse”, afirma.
Ao ser perguntada sobre o que pretende produzir na área, Petry responde: “Futuramente, a única coisa que dá para a gente fazer é pasto”.
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Desmatadores em série, lotes à venda e pastos: o que flagramos em áreas de preservação da Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU