05 Março 2020
“As leis civis legislam para todos os cidadãos, não somente para os cristãos. Nossas direitas costumam ter uma tendência de atropelar alguns problemas com grandes palavras morais, sem nenhuma complexidade, sem nenhuma casuística, sem nenhuma atenção aos casos-limite. E a esquerda deveria levar em conta que esse tema é muito escorregadio”, escreve José I. González Faus, jesuíta, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 01-03-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em primeiro lugar há que se levar em conta que o que agora será discutido no Congresso espanhol é uma lei de ética civil, não de uma ética, por assim dizer “religiosa”. Um cristão para quem o corpo humano é um templo de Deus e está destinado a uma vida transformada e divina, não pode ter da morte o mesmo conceito que um não crente.
E as leis civis não legislam para os cristãos, mas sim para todos os cidadãos. Mas o que o cristão deve saber é que muitas condutas permitidas pelas leis civis – por exemplo, pagar um salário injusto – não são permitidas a ele, independentemente de serem legais.
Em segundo lugar, esse tema se enredou desnecessariamente, como tantos outros problemas, por erros de linguagem. Não cabe falar de morte digna ou indigna: a dignidade está na pessoa humana (por necessitada ou dependente que possa chegar a ser), não em como se morre. A morte de Jesus, ou a de dom Oscar Romero ou a dos mártires jogados às feras, não foram mortes indignas: em todo caso a indignidade estava nos atores dessas mortes e não em seus pacientes.
Creio, pois, que mais que falar do direito “a morrer dignamente” devemos falar de obrigação de “ajudar-dignamente” a morrer, quando isso for necessário. A venda de armas, que tão tranquilamente praticamos, contradiz todas nossas apelações a essa morte “digna”.
Tampouco me agrada a palavra eu-tanásia (“boa morte”). É certo que essa expressão se usou na piedade cristã; porém era para aludir a uma morte “em graça e não em pecado”. Fora disso, nenhuma morte é boa e prefiro o verso do cantor Raimon: “per a la vida s’ha fet l’home i no per a la mort s’ha fet”.
Está claro que somos limitados e que a morte é expressão de nosso limite e parece contradizer Raimon. Porém, o problema está em que, em nossa vida limitada, bate como uma pretensão de uma vida infinita que não se dá na vida animal. Dionisio Ridruejo, ao ver morrer um grande amigo seu, na loucura da División Azul (exército de voluntários espanhóis apoiadores da Alemanha Nazista na Segunda Guerra), escreveu um poema que contém este verso: “sinto a vida em mim sem transferência, sem entrega possível”.
A partir desses pressupostos, creio que o problema deve se formular melhor nesses termos: direito “a morrer sem dor insuportável” (e já sabemos até que ponto pode ser às vezes insuportável a dor). E ademais: “morrer para evitar uma vida instalada no desespero perpétuo”.
Para o primeiro dos casos, pode ajudar um princípio que a moral cristã tradicional qualificava como “princípio de duplo efeito”. Há muitos séculos, Tomás de Aquino escreveu “nada impede que de um mesmo ato se sigam dois efeitos, ainda que somente um esteja na intenção do agente e o outro não seja pretendido. Porém, a moralidade dos atos vem daquilo que se pretende com eles, não do que se pode seguir sem querê-lo e per accidens” (2ª 2ae, LXIV, 7, c). Dito isso para aplicá-lo a nosso assunto: na vida há situações-limite nas quais já não se deve lutar contra a morte, mas sim contra a dor; se a luta contra a dor acarreta a morte, pois, o que vamos fazer?
Isso resulta em um aviso para muitas crueldades terapêuticas que se objetiva ao enfermo dolorido, bem seja por empenho médico de triunfar naquele caso, ou por fazer avançar a ciência, ou por crueldade de parentes que não querem perder aquela pessoa, ou por qualquer outro motivo. Esses casos eram mais frequentes antigamente e hoje creio que ganhamos consciência frente a eles. Porém, fica ainda o dado de que hoje, muitas vezes, a medicina não alarga a vida, mas sim retarda a morte. E não significam o mesmo.
Devo esclarecer que esse princípio do duplo efeito o enuncia o Aquinate para ações individuais. O que hoje, na política, se chama hipocritamente “danos colaterais” (como lançar uma bomba atômica para terminar antes uma guerra, ou causar milhares de mortes para libertar o Iraque de um suposto tirano ou de supostas armas, deixando ainda o país muito pior do que estava), não pode apelar a esse princípio.
Porém, o dito até agora somente afeta o que seria uma morte “sobrevinda”. Ficam outros casos de morte “infligida” indireta ou diretamente, isto é: seja ajudando o enfermo a fazê-lo (“suicídio assistido”), ou matando-o diretamente quando ele já não pode matar a si mesmo. Dito brutalmente: ajudar a se matar, ou matar. E, com certeza, sempre e somente a pedido totalmente livre do doente.
Creio que assim se situa onde está o que discutir na lei. Não vou dar resposta a essas perguntas. Somente me limitar a uma advertência para cada uma das posturas.
Permitam-me uma lembrança que vivi de perto. Cerca de dez anos atrás, o Instituto Borja de Bioética (então dirigido pelo médico jesuíta Francesc Abel) publicou uma breve nota na qual ele argumentava que, nos casos de uma morte iminente e dor insuportável, era legítimo descriminalizar (ele não disse legalizar) a ação oclusiva direta. Prescindia dos casos em que não havia quase morte e também aqueles em que não se tratava de matar diretamente, mas de fornecer ao enfermo (que ainda podia usar alguma coisa) os meios de suicídio (drogas ou qualquer outra coisa). Esse passo mínimo rendeu ao autor uma série de acusações e rejeições incríveis, como afastá-lo como capelão de algumas freiras de vida contemplativa a quem presidia diariamente a Eucaristia. Eu acho que essas reações eram muito menos cristãs do que aquilo que elas queriam desaprovar. E isso deve nos alertar.
Nossas direitas costumam ter uma tendência de atropelar alguns problemas com grandes palavras morais, sem nenhuma complexidade, sem nenhuma casuística, sem nenhuma atenção aos casos-limite, a ponto de dar a sensação de que o que eles estão procurando não é praticar a moralidade, mas tirar proveito disso para derrubar o governo... Já quanto à questão do aborto, ouvimos dizer que algumas associações “pró-vida” pareciam se importar apenas com a vida intrauterina. Que após o nascimento abortem o desenvolvimento humano de tantas pessoas, parecem não se importar. E hoje em dia estamos ouvindo que quem governa na Espanha é o senhor Oriol Junqueras (social-democrata e liderança do movimento independentista catalão)... por favor!
A esquerda deve ter em mente que esse é um problema muito escorregadio. Não apenas pelo ditado bilíngue de que “a lei é armadilha”, mas porque o que chamamos de pecado original pode ser definido como uma forte tendência de que todo ser humano precisa tirar proveito da necessidade e da dor do outro para seu próprio benefício. E esse princípio é constitutivo do sistema capitalista: é por isso que ouvimos proclamar que “o privado funciona melhor que o público”. Não porque seja sempre assim (que também valerá apenas para dez por cento da população), mas porque a saúde, a educação, a moradia, a necessidade de amor e comida de outras pessoas, podem ser uma fonte de grande renda própria. Já ouvimos nesses dias de coronavírus sobre o “negócio” das máscaras. Pois cuidado para que a lei não se torne uma maneira astuta de “herdar logo o velho que nunca morre”, ou nos libertarmos do cansaço de tantos cuidados, ou coisas semelhantes. Daí a importância de garantir a decisão totalmente livre do paciente. E se um governo que se diz “progressista” for mais cuidadoso em universalizar os cuidados paliativos e subsidiar a lei de dependência, é muito provável que as situações limítrofes mencionadas neste documento sejam muito mais raras.
Quando, no livro de Gênesis, Yahweh diz a Adão que ele pode dispor de tudo, exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal, ele está dizendo a ele que é dono de tudo, exceto do humano (pois o conhecimento do que é bom e o que é ruim é o que distingue o homem do animal). Somente após esse esclarecimento surge a criação de algo humano como Eva. Acreditar que você possui o humano é querer ser como Deus e isso significa a morte do homem.
Tendo dito tudo o que já disse, não tomo uma posição, mas deixo estas anotações para o leitor, e concluo esse decálogo após uma reflexão o mais limpa e altruísta possível.
Eu terminei este artigo quando me deparei com um artigo do grande Marciano Vidal, no qual ele cita estas palavras da Utopia de São Tomás Morus, que, segundo ele, despertam perplexidade. Na Utopia se passa que: “Se a doença não é apenas incurável, mas um tormento e um martírio contínuo, os padres e as autoridades dizem ao homem que isso é um fardo para os outros e insuportável para si mesmo... e que ele não deveria hesitar em ir para a morte porque a vida para ele é um tormento”. (Marciano diz que cita um artigo do ano 2002 da revista Razón y Fe. Não tive tempo de verificá-lo).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“A eutanásia serve para ajudar o ser humano. Não para dispor do humano”. Artigo de José I. González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU