20 Janeiro 2020
"Quem não entendeu, ou não quer entender, falou de "uma tempestade em um copo de água": o que há de estranho em discutir sobre o celibato na Igreja? Como sempre, as posições podem ser diversificadas, inclusive em um tema delicado, como o celibato. Mas quando se utiliza um tema marginal, tornando-o tão central, que a partir da definição de celibato desdobra-se uma visão do sacerdócio, do culto e da Igreja que nega tudo o que o Concílio Vaticano II afirmou e fecha tudo o que o Concílio abriu, então fica claro que a esta nostalgia agressiva deve ser imposto um limite: a negação sistemática do Concílio deve ser impedida de forma aberta e com autoridade".
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina, em Pádua, em artigo publicado por Come Se Non, 17-01-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eu tinha esperança. Sim, eu tinha esperança. As notícias que se sucederam próximo da publicação do livro me fizeram pensar (e ter esperança) que os ambientes em torno de J. Ratzinger, sua pequena corte, e o cardeal temerário, o tivessem induzido a assinar textos alheios, textos falseados, textos improvisados. Não. Esses textos estão ali no livro, mas não são dele. Em vez disso, o dele, o que se destaca no centro do livro e que constitui a única envergadura, é exatamente o dele: o estilo, a argumentação, a ousadia e a elegância são as suas, inconfundíveis.
Mas este é precisamente o drama. Neste texto, certamente marcado também pela fraqueza da idade e pela fragilidade do corpo, aparece com uma inalterada clareza uma "teoria do sacerdócio" que, construída indiretamente para defender a centralidade do celibato, na realidade orienta uma visão das Escrituras, da liturgia e da Igreja que é argumentada sem a menor referência às grandes constituições do Concílio Vaticano II. Todo o raciocínio, em todas as suas passagens, ocorre com as ferramentas conceituais e experiências já disponíveis na década de 1950: como se o tempo tivesse parado e como se o Concílio nunca tivesse existido. Mas vamos começar do começo.
As coisas tinham me parecido orientadas nessa mesma direção já em 2007. Em julho daquele ano, de fato, lendo o texto do Motu Proprio Summorum Pontificum, eu já tinha pensado que aquele documento, que pretendia "reabilitar" repentinamente toda a liturgia pré-conciliar, pudesse ter sido concebido apenas dentro de uma visão "suspensa" da história. De fato, podia ser aceito por uma Igreja que, recomeçando a celebrar com os ritos anteriores à reforma litúrgica, não conseguisse mais apreender toda a exigência e a autoridade daquela reforma. De fato, a reforma litúrgica foi a "primeira" reforma que resultou do Concílio Vaticano II, justificada precisamente por uma nova compreensão da Igreja e do sacerdócio. A saída de um modelo tridentino da Igreja como "societas inaequalis" e de "sacerdócio", como qualidade diferencial do clero tinha exigido referir a ação litúrgica a toda a assembleia, constituída por fiéis que no batismo são reconhecidos como profetas, sacerdotes e reis.
Se, em um determinado momento, quase 50 anos após o Concílio, uma providência pretendia pôr novamente em vigor justamente aqueles ritos que o próprio Concílio solicitara que fossem mudados, então surgia a dúvida de que aquela manobra significava não apenas "restaurar" o vetus ordo, mas também a antiga igreja clerical e o antigo sacerdócio exclusivo. Aquelas palavras de circunstância, que diziam ser absolutamente confirmada a reforma litúrgica dentro de um documento que a desmentia, voltaram a ecoar hoje, em muitas passagens do livro de Ratzinger-Sarah, onde se fala de "obediência filial" enquanto se quer apenas criar imensos obstáculos ao pai. Mas quando dois bispos falam como Pinóquio, a autoridade já foi perdida.
Muitos já observaram que a insistência - caricatural em Sarah, mais insidiosa em Ratzinger – sobre a qualidade "ontológica" do celibato para o sacerdócio contrasta abertamente com um texto conciliar como Presbyterorum ordinis 16. Mas se fosse apenas por isso, ainda seria pouco, mesmo que o fato de um Cardeal Prefeito de Congregação do culto e um Bispo emérito de Roma nunca mencionem o texto mais cheio de autoridade sobre o "celibato" ao falar sobre o tema, já deveria ser motivo de preocupação.
Mas a principal preocupação é que, ao falar de celibato, se descreve o sacerdócio, se propõe a exegese bíblica, se delineia o sentido do culto, se configura o espaço eclesial. E em tudo isso se procede "como se o Concílio nunca tivesse sido celebrado". Hermenêuticas bíblicas totalmente arbitrárias são propostas, pretendendo não levar em conta os resultados de décadas de estudos sobre o significado da relação entre sacrifício e sacerdócio, como se Dei Verbum nunca tivesse falado. Procede-se a uma identificação da "relação com Cristo" como se fosse o "específico presbiteral" e não o "comum batismal", como se Lumen gentium não tivesse relido a experiência eclesial acima de tudo como "comunhão do povo de Deus", como "corpo de Cristo", como "templo do espírito". Argumenta-se sobre o ato de culto como se a ação ritual fosse uma questão privada entre o padre e Cristo, e não envolvesse, originariamente, a assembleia reunida, sendo caracterizada por aquela "participação ativa" que Sacrosanctum Concilium coloca no centro da dinâmica ritual.
Em suma, o livro, não tanto nas palavras mais toscas do cardeal Sarah, mas nas expressões mais estudadas do teólogo Ratzinger, parece a\última consequência de um "dispositivo de bloqueio", de uma "remoção" e de uma negação. O Concílio Vaticano II, no livro, é mencionado apenas uma vez, mas, como sempre no último Ratzinger, apenas como motivo de preocupação. Para usar as metáforas que ele usou em 12 de outubro de 2012, da janela da Praça São Pedro: o Concílio era associado, em contraste com o "novo Pentecostes", ao "pecado original", às "ervas daninhas", ao "vento contrário", ao "peixe ruim". Também nesse texto o Concílio não aparece. Está calado. Aliás, é explicitamente e clamorosamente desmentido. O celibato ontológico é filho de um sacerdócio clerical que gera liturgia antiga e igreja tridentina. Qualquer alternativa parece "mentira" ou "corrupção".
Quem não entendeu, ou não quer entender, falou de "uma tempestade em um copo de água": o que há de estranho em discutir sobre o celibato na Igreja? Como sempre, as posições podem ser diversificadas, inclusive em um tema delicado, como o celibato. Mas quando se utiliza um tema marginal, tornando-o tão central, que a partir da definição de celibato desdobra-se uma visão do sacerdócio, do culto e da Igreja que nega tudo o que o Concílio Vaticano II afirmou e fecha tudo o que o Concílio abriu, então fica claro que a esta nostalgia agressiva deve ser imposto um limite: a negação sistemática do Concílio deve ser impedida de forma aberta e com autoridade.
Um pai pode ficar tão escandalizado com o filho que a ponto de repudiá-lo. Assim, me parece deva ser dito de J. Ratzinger, que tem tanta vergonha de seu filho "vaticano2" - porque o Concílio é e continua sendo seu filho - que ele nem mais fala dele. Aliás, faz de tudo para desmenti-lo e enlameá-lo. Mas o Concílio, apesar desse repúdio, foi por sua vez pai e gerou muitos filhos. Entre os quais também há Jorge Mario Bergoglio, que do Concílio é filho satisfeito, feliz e sorridente. Assim, entre os dois papas, a relação não é direta. Entre os dois está o Concílio Vaticano II. Do qual Bento foi pai, cheio de remorso, enquanto Francisco é filho, cheio de entusiasmo.
Respeitemos as biografias, é claro: a relação de paternidade nunca é linear. Mas a igreja deve caminhar. O sacerdócio comum dos fiéis, a liturgia participada e celebrada pela assembleia, a Igreja como povo de Deus são a irreversibilidade do Espírito. A nostalgia nunca foi capaz de magistério. A profecia, por sua vez, é animada e não se consegue pará-la. Muito menos pode ser interrompida pela ostentação hipócrita de uma falsa obediência de filhos ao pai, quando se trata apenas de pais que não querem, a nenhum custo, reconhecer seu filho e o seu neto: ou seja, o Concílio da natureza pastoral e o papa que vem do fim do mundo. Tendo manifestado da maneira mais clara esse visceral desejo de repudiar o Concílio Vaticano II, o livro "Do fundo de nosso coração" revela-se como um "de profundis" por esse design hostil, realmente pouco filial.
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“Do fundo do nosso coração” é um “de profundis”. Ou seja, o Concílio Vaticano II não é opcional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU