15 Janeiro 2020
O bispo de Quilmes e presidente da Cáritas Argentina toca em todos os temas e diz que “na Igreja há pessoas que não se dão conta da emergência que há”. Contribui também o bispo-auxiliar Marcelo Margni.
A entrevista é publicada por La Tecla, 12-01-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Alguém afina o órgão da Catedral, um dos mais antigos da Argentina; cinco pessoas rezam durante a hora da sesta; o bispo titular da diocese de Quilmes e presidente da Cáritas, Carlos José Tissera, convida para conhecer o templo, para diante da tumba de dom Jorge Novak e busca um lugar onde não se escutem os agudos sons do órgão para nos falar sobre pobreza, política, a própria Igreja e temas como o aborto.
Na sua opinião, por que a Argentina chegou a essa situação social?
São as más políticas, às vezes muito focadas exclusivamente nas finanças; políticas que não tiveram como centro o desenvolvimento integral das pessoas, mas sim o benefício de algum setor da sociedade. Isso que vivemos com a falta de fontes de trabalho gerou também um enfraquecimento do tecido social. O que seria algo temporário, com os planos sociais, chegaram para ficar. E no último Governo, é certo que os planos sociais aumentaram, porém, isso é algo que, mais que nos orgulhar, denota uma falta de políticas públicas onde se garantissem os direitos mínimos de qualquer ser humano.
Agora se abre uma esperança?
Eu entendo que sim, pelo que escutei de tantas pessoas que estão sentadas nessa mesa (do Conselho Federal contra a Fome). Há um desejo de todos de colaborar com ideias e colocando à disposição renúncias a certas vantagens que possam dar as políticas econômicas para aprofundar políticas de bem-estar social, colocá-la ao serviço das políticas públicas sociais para toda população, começando pelos mais pobres, que necessitam e que não têm para comer. Nunca havíamos pensado que poderíamos chegar aos níveis de fome a que se chegou ultimamente.
É somente pela política econômica para que um país como este tenha mais de 40% dos pobres e mais de 50% das crianças sofrendo com problemas de alimentação?
A economia é uma parte, porém algumas coisas que estão na Constituição Nacional, como o fato de comer, de trabalhar, de ter uma casa, ter acesso à educação, à saúde, que foram se deteriorando muito. A questão dos alimentos é uma das coisas, porém também ocorre que a economia baseada nada mais que em matérias-primas não é suficiente para esse país, tem que contemplar o valor agregado de nossos produtos exportáveis, que é o que traz divisas e cria fontes de trabalho.
Juan Grabois disse que “não há mais margem”. Concordas?
Não sei em que contexto ele disse; ele está em contato com a realidade dos mais pobres, porém até o próprio presidente disse que isso não poderia esperar mais. Eu estou de acordo com o plano de Cartão Alimentício, porém não pode ser o único; esse cartão é uma parte. Inclusive não chega a muita gente, porque há muitos que nem sequer têm documentos. Então, aí está a tarefa dos municípios, que são os que estão mais próximos dessas populações. Uma criança não somente tem que se alimentar bem, mas também ir à escola, ter suas vacinas, seu controle de peso e de tamanho, necessita viver em um lugar digno. Há crianças que crescem, como dizemos, à boa-nova de Deus, e não tem onde apoiar um caderno para fazer os deveres, nem conhecem um banheiro. E tudo isso, também, se une ao poder aquisitivo e ao trabalho, que é articulador na vida de uma sociedade.
Como está a Cáritas Argentina?
A Cáritas está acompanhando o povo com seus voluntários, que são milhares em todo o país, e temos alguns projetos que se articulam com os diferentes governos. Aspiramos que isso se mantenha. Na Igreja temos, e é preciso dizer com muita humildade, pessoas que não se dão conta da emergência que há no país, e a Cáritas tem isso muito claro. Por alguns membros na Igreja, por causa do pensamento sobre os pobres e do desenvolvimento dos povos, o papa Francisco é mal visto. Essas são as coisas que tem a Igreja e deve procurar a busca de caminhos para nos darmos conta de que não podemos pregar o Evangelho em meio a tanta gente que tem sua pança vazia.
A ajuda que a Cáritas recebe do Estado é suficiente?
O que a Cáritas recebe é uma gota d’água no mar, nunca é suficiente. Cáritas Quilmes, por exemplo, está assistindo dez mil crianças, porém o que estamos recebendo, tanto de contribuições nacionais como provinciais, chega a cobrir apenas a cinco ou seis mil crianças, o resto é pelas contribuições dos fiéis. Porém, é certo que muitos dos que doam, ultimamente estão prejudicados pela mesma crise. Por isso há muitas capelas ou paróquias que não podem pagar a luz.
Há setores da Igreja que estão preocupados com coisas mais mundanas que a pobreza?
Sim, há alguns setores, um tanto ideologizados, que pensam que se preocupar com os pobres é coisa de certo partido político. Então acreditam que quando um bispo ou um padre está se dedicando a essas coisas, denunciando essa realidade, está fazendo política, ainda que eu pense que todo ser humano faz política. Penso que há setores muito cômodos, porém não somente neste tema social, mas sim na mesma tarefa evangelizadora. Por isso ficamos fechados em certos grupos, não fomos à grande massa do povo para ver suas necessidades. Há alguns anos, a Igreja na América Latina via como cresciam os evangélicos e os bispos começaram a se lamentar porque perdiam fiéis; e esta gente dizia que recebiam o povo porque em suas igrejas não eram recebidos, que não se sentiam parte. Por isso também é preciso um mea-culpa nosso.
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Argentina. “Nunca pensamos chegar a esses níveis de fome”, afirma dom Tissera, presidente da Cáritas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU