12 Dezembro 2019
Pobreza, estagnação e divida: eles herdam os escombros do pesadelo neoliberal. Precisam liderar a busca de alternativas, para a Argentina e região. Direita prepara sabotagem, e não descarta golpismo. Novo cenário abre-se na América do Sul.
O artigo é de Aram Aharonian, jornalista e comunicólogo uruguaio, diretor de SURySUR. Mestre em Integração. Fundador da Telesur. Preside la Fundación para la Integración Latinoamericana (FILA) e também do Centro Latinoamericano de Análisis Estratégico. A tradução é de Inês Castilho.
O primeiro tema que o novo governo argentino, encabeçado pelo advogado Alberto Fernández, de 60 anos, precisará enfrentar é o da governabilidade – a situação interna, condicionada por uma dívida externa monumental e pelo crescimento constante da fome e da pobreza nos últimos quatro anos.
Por isso, talvez, sua insistência na necessidade de um pacto social que, espera-se, crie condições para a decolagem, ao invés de ser causado pelo medo do que virá. Diferentemente do seu antecessor, o neoliberal Mauricio Macri, Fernández terá um país com paz social, o Congresso ao seu lado e algum tempo, antes que se apresentem os vencimentos da dívida.
Pouco antes de assumir, Fernández expôs sua posição sobre o que se passa na região, numa entrevista televisiva com o analista Pedro Brieger: “Para nós, a Bolívia não tem governo até que os bolivianos votem democraticamente. Um governo de fato não é um governo”, assinalou. E foi adiante: “Estou muito seguro de que o que está acontecendo na América Latina e de como estamos. E estou muito tranquilo”. Em seguida, explicou: “Nós não estamos sozinhos no continente. Estamos mais acompanhados do que nunca, pois o que se observa no Chile, Equador, Colômbia são movimentos populares que reclamam o fim das políticas conservadoras e, portanto, são povos que pensam como nós. Sim, chocam-se com governos que pensam diferente de nós”, disse Fernández.
“Os movimentos que se viu no Chile, na Colômbia, no Equador são impressionantes, de gente que reclama a instituição de políticas como as que nós propomos para a Argentina. Os que estão sozinhos são esses governos que perderam a sintonia popular e vivem crises”, assegurou.
Fernández prometeu “colocar a Argentina novamente em pé”, e traz como aval sua experiência como chefe de gabinete no governo de Néstor Kirchner (2003-2007) e durante o primeiro ano do governo de Cristina Kirchner (2008). Agora, ela será sua vice-presidente e dirigirá o Senado.
Os números resumem a dimensão da tragédia coletiva argentina: em quatro anos de Macri a inflação teve um acumulado superior a 300%; o valor do dólar cresceu seis vezes. Em produto econômico, o país regrediu 7,4%. A classe média encolheu de 30% para 25% da população total; a pobreza evoluiu de algo como 30%, quando o presidente que hoje deixa o posto assumiu, para mais de 40% este ano.
O salário médio real registra, no período, uma perda de aproximadamente 22%; medida em dólares, a queda está próxima de 50%. As aposentadorias sofreram perda média de 18%. A economia fechará este ano com uma queda de 3,1%, inflação em torno de 55%, pobreza perto de 40%, desemprego de 10,4% e depreciação do peso de quase 40%.
A dívida externa cresceu em cerca de 143 bilhões de dólares, dos quais mais de 88 bilhões deixaram o país no mesmo período. Fernández deve renegociá-la, tanto com o Fundo Monetário Internacional (44 bilhões de dólares recebidos desde 2018) quanto com outros credores. No total, a dívida externa da Argentina é superior a US$ 315 bilhões, cerca de 100% do Produto Interno Bruto (PIB).
Para a árdua tarefa da renegociação, Fernández escolheu Martím Guzmán, um colaborador do Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, que considera “imperioso” reestruturar os pagamentos do valor devido e dos juros.
Para as primeiras semanas de governo, os analistas preveem a manutenção do controle cambial imposto em outubro pelo macrismo, frente ao desastre produzido por suas políticas, enquanto se analisa uma nova lei orçamentária que realoque recursos para combater a pobreza – para Fernández um “imperativo moral”.
Enfrentar essa realidade será o prioritário. Para assumir os temas de dimensão global e sul-americana haverá tempo. É a primeira vez, desde 1946, que o peronismo encontra as três dimensões em estado crítico.
A complexidade dos problemas econômico-sociais é o principal problema dos argentinos em sua vida cotidiana e também com relação a suas perspectivas. As questões são variadas. Vão desde a estagflação, que já há vários meses acompanha a economia, a dívida externa impagável e o modo de inserção na economia mundial (para além de agroexportador), até a fome diária de que padecem milhões de argentinos.
Para isso será necessário pensar na ampliação do mercado interno, no estreitamento de relações com os mercados regionais na expansão produtiva de setores hoje pouco explorados das economias regionais – também com a implantação de novas tecnologias.
Já se anunciou a implementação do programa “Argentina sem Fome”, reclamado desde 2002 por organizações sociais, da Economia Social, Solidária e Popular. É interessante a criação de um “Cartão Alimentação”, através do qual seria creditada em nome dos beneficiários uma quantia em dinheiro destinada à compra de alimentos.
A situação o colocou à esquerda em relação aos outros governantes da região, o que pode servir como um mecanismo para isolá-lo, mas também para que a Argentina tenha uma posição digna e destacada. Fernández já se comprometeu a instalar provisoriamente o secretariado da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) na Argentina, após o despejo ordenado pelo presidente neoliberal equatoriano Lenín Moreno.
Um dos problemas será evitar que o vírus da disputa pelo poder e as diferenças políticas se instalem na cúpula do governo. Embora Alberto seja o presidente, não se deve esquecer que Cristina Kirchner deu a ele o lugar para garantir a vitória eleitoral, compartilhando-a com alguém mais próximo do peronismo tradicional e com um número significativo de líderes do Partido Justicialista, além da maioria dos governadores peronistas do interior.
Em 2002, Néstor Kirchner, assumiu a presidência com o alento do boom das commodities e o ressurgimento progressista de toda a região. Hoje, Alberto Fernández chega à presidência em meio à disputa geoestratégica entre os Estados Unidos e a China, e uma América Latina instável e explosiva, na qual Washington impõe seus critérios inclusive com golpes, rompendo todas as regras do jogo democrático.
Hoje, os governos neoliberais e endividados da região sofrem explosões sociais e vivem novos estágios de ingovernabilidade (Chile, Equador, Colômbia). Diante dessa realidade, passo a passo Washington insiste em criar e sustentar a interrupção abrupta e violenta (um golpe fascista, racista e genocida) de processos populares progressistas, como o da Bolívia, onde o sucesso macroeconômico mostrou que o “socialismo do século XXI” poderia ser aplaudido inclusive pelas agências internacionais de crédito.
A revista Crisis fala do quinto peronismo, depois dos de Juan Domingo Perón (1945-55 e sua esposa Isabel 1974-76), Carlos Menem (1989-99), Néstor e Cristina Kirchner (2002-2015).
Um dos principais recursos com que conta Alberto Fernández é sua habilidade como articulador e sua experiência no poder, como chefe de gabinete de Kirchner. Tal bagagem será necessária, para liderar os distintos estilos, ideologias e origens diversas que compõem não apenas a Frente de Todxs, mas também seu gabinete.
Perón repetiu Sócrates: a única verdade é a realidade. Fernández terá o acompanhamento esperançoso das ruas, num momento histórico pouco alentador da Argentina.
E, diante de si, terá uma direita que viveu um fracasso monumental na gestão macrista, fortalecida em sua passagem por um Estado que comandou, preparada para uma resistência ativa, dogmática. Disposta, se possível e as circunstâncias permitirem, a empunhar seu ás de espadas: a violência, numa região onde novamente se ouvem ruídos de botas.
Apesar do gigantesco mal produzido, Macri retira-se com 40% do eleitorado votando em suas políticas, o que ajuda aqueles que preparam conspirações futuras. Entre expressões de ódio e violência contra jornalistas, transcorreu no sábado, dia 7, o ato de despedida do presidente. Emissoras de televisão alinhadas ao macrismo não tiveram pudor ao transmitir os gritos de uma mulher que pedia que matassem a ex-presidenta Cristina Fernńdez. Outros agitavam bandeiras argentinas e cartazes onde se lia: “Isso apenas começa, ou Somos os que queremos um país normal”. Não faltaram as desqualificações para os peronistas: Negros de merda, delinquentes, bêbados.
A busca de equilíbrio para manter a unidade da aliança ditou o estilo sem estridências de Fernández e o levou a formar um gabinete em que estão representadas todas as tendências. “Quis que a unidade se reflita no governo”, disse.
Os nomeados para ocupar os 21 ministérios evidenciam: 1) o caráter “progressista” de sua composição; 2) a baixa quantidade de cargos ocupados por dirigentes provinciais; 3) a influência nula dos governadores não kirchneristas; 4) chama atenção o escasso número de mulheres (4 entre 21).
O número de 21 ministros chega a uns trinta, com a incorporação de secretarias e organismos de primeira linha. Neste segundo grupo, crescem a presença “albertista” – para proteger e ampliar as decisões e o arco de alianças pretendido pelo presidente – e os conselhos de Cristina, em especial nos setores sociais críticos como Segurança e Agricultura.
A presença de Guillermo Nielsen à frente da estatal petrolífera YPF define um objetivo muito claro: os campos petrolíferos de Vaca Morta devem cumprir o mesmo papel que teve a soja nos governos de Néstor e Cristina Kirchner, “salvar” a economia, incorporando muitos benefícios, vantagens e segurança do Estado para os investimentos estrangeiros
Conselheiros e membros do futuro governo estão confiantes de que o dinheiro que vão investir na economia nos primeiros meses permitirá recolocar em movimento o aparato produtivo estagnado, melhore o consumo e as expectativas do povo, sem que transborde a já grave situação inflacionária.
Isso deverá ser complementado com um princípio de acordo sobre a dívida externa (referente aos pagamentos previstos para março), que evite a moratória.
No poder legislativo, o peronismo é absolutamente hegemonizado pelo cristinismo: possui o grupo mais numeroso entre os deputados (121 dos 129 necessários para o quorum) e a maioria no Senado (42, de 72 senadores). No caso do Judiciário, este define suas próprias regras, num quadro de deterioração, lawfare e descrédito que tornará muito difícil a imposição de justiça com credibilidade.
Renasce a esperança na Argentina. Esperança no fim das desigualdades, na recuperação da justiça, no respeito pelo direito de todos e todas. Esperança em poder sorrir novamente e sentir-se parte da reconstrução. As pessoas enchem as praças e festejam o fim da degradação macrista.
Dizem que os novos governantes têm 100 dias de lua de mel com seus eleitores. Na Argentina, a realidade faz com que as mudanças devam se produzir antes dessa centena de dias, ainda quando tiveram começado o verão, as férias, o fim do ano…
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Argentina: o que esperar de Fernández e Cristina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU