04 Setembro 2019
Ao final, os impactos da crise climática e do desmatamento sobre a falta de chuvas, mais a oposição das populações rurais e indígenas frente à expansão energética, estão deixando em xeque a construção e operação de hidrelétricas na Amazônia brasileira.
A reportagem é de Aldem Bourscheit, publicada por InfoAmazônia, 06-08-2019.
Mudanças do clima e respeito tardio a questões socioambientais podem frear a construção de grandes hidrelétricas na Amazônia.
Construir barragens para produzir eletricidade é uma política pública desde a Ditadura Militar (1964-1985) brasileira, mas o protagonismo das hidrelétricas está perdendo posições nos planos oficiais de geração de energia. Ao mesmo tempo, aumentam o uso de fontes alternativas e de combustível fóssil. A pergunta que paira é se os impactos da crise do clima e do desmatamento sobre o regime de chuvas e os prejuízos a populações rurais e indígenas finalmente colocam em xeque a construção e a operação de hidrelétricas na Amazônia.
Informações da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) mostram que há 221 hidrelétricas operando na Amazônia – 27 de grande porte, 102 médias e pequenas e 92 microgeradoras. Outras 35 estão em construção ou rumo às obras. Na região, há desde gigantes como Belo Monte, a terceira maior no mundo em capacidade para geração de energia, a uma profusão de pequenas usinas.
As barragens se concentram no Arco do Desmatamento, grande faixa onde lavouras e pastagens tomaram o lugar da floresta. Existem ainda 251 locais mapeados com potencial hidrelétrico, o que na base do governo chama-se “Eixo Inventariado.” Considerando todos os aproveitamentos hidrelétricos, a base de dados da Aneel contabiliza como possíveis 686 usinas nos rios da Amazônia. Confira no mapa.
Nas últimas duas décadas, a participação de hidrelétricas na geração brasileira caiu de 90% para os atuais 64% e esse índice deve chegar a 50% em 2027, segundo projeções oficiais. Até lá, a produção de eletricidade deve saltar 40%, passando de 156 Gigawatts para 216 Gigawatts (GW). Isso acontecerá com uma maior geração por pequenas e médias hidrelétricas, fontes solar, eólica e biomassa, bem como por termelétricas a gás natural. Esse combustível é extraído do Pré-Sal, grande e profunda reserva marinha de petróleo, entre os estados do Espírito Santo e de Santa Catarina.
Os planos do governo federal preveem ampliar a geração com a força do sol em quase 20 vezes, passando de menos de 500 Megawatts para quase 9 GW, enquanto o aproveitamento das fontes eólica e gás natural mais que dobrarão, passando de pouco mais de 12 Gigawatts para cerca de 27 GW e 23 GW, respectivamente. Vento e sol respondem hoje por 7% da eletricidade consumida no país, enquanto o gás natural soma menos de 11%.
Gráfico elaborado por InfoAmazônia
Em entrevista ao InfoAmazonia, o secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia, Reive Barros, afirmou que o governo quer diminuir os custos de distribuição e produzir energia mais perto do consumo. Para isso, prevê ampliar a geração de eletricidade fora da Amazônia e usar mais gás natural em termelétricas, que hoje queimam principalmente diesel e óleo combustível.
Reive Barros, secretário de Planejamento e Desenvolvimento Energético. Foto: Foto: Bruno Spada | Ministério de Minas e Energia
Para Danicley Aguiar, da Campanha da Amazônia do Greenpeace, o modelo de grandes hidrelétricas se tornou ultrapassado pelos prejuízos sociais e ambientais que provoca ao alimentar centros consumidores distantes da Amazônia e indústrias que devoram enorme quantidade de energia para elaborar e exportar produtos primários, como alumínio, aço, petroquímicos, papel e celulose.
Mesmo com as grandes hidrelétricas perdendo força na produção nacional de eletricidade, dados colhidos pela reportagem junto à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) mostram que médias e grandes usinas seguem em construção ou nos planos oficiais para a Amazônia. O Ministério Público Federal e organizações não governamentais afirmam que essas obras prejudicarão pescadores, pequenos agricultores e indígenas.
24-11-2015 – Brasília – Índios do Xingu fazem protesto durante coletiva da presidenta do Ibama, Marilene Ramos, sobre o enchimento do reservatório da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. Foto: Marcello Casal Jr | Agência Brasil
As maiores obras em curso são: Colíder (300 Megawatts) e Sinop (400 MW), no Mato Grosso.
Até o fim da próxima década, as principais hidrelétricas planejadas são as de Tabajara (400 MW), em Rondônia, Castanheira (140 MW), no Mato Grosso, e Bem Querer (650 MW), em Roraima.
Para depois de 2027, o planejamento oficial não descarta as usinas de Alta Floresta (127 MW), Couto Magalhães (150 MW) e Jatobá (1,65 GW), no Mato Grosso e no Pará.
Além disso, pressões políticas do Governo Bolsonaro podem desengavetar os projetos de São Luiz do Tapajós (8 GW) e de Marabá (2 GW), no Pará, e de São Simão Alto (3,5 GW) e Salto Augusto Baixo (1,5 GW), entre o Mato Grosso e o Amazonas. Também pode receber sinal verde um linhão pra transmissão de energia entre as capitais Manaus (AM) e Boa Vista (RR). A obra cortaria uma terra indígena Waimiri-Atroari, já afetada pela abertura da rodovia BR-174 e pela construção da hidrelétrica de Balbina, nos anos 1980.
Desde sua campanha à presidência, Bolsonaro promete acelerar o licenciamento ambiental de hidrelétricas e não esconde seu desprezo pelos impactos que essas obras provocam em populações indígenas e tradicionais, bem como na conservação da natureza amazônica. Em maio deste ano, defendeu a emissão de licenças para pequenas geradoras em até três meses, no máximo.
Assessores políticos e membros do governo engrossam o coro favorável às hidrelétricas. Em 2018, o general da reserva Oswaldo Ferreira, encarregado de infraestrutura na campanha de Bolsonaro, pediu novos estudos para São Luiz do Tapajós, cujo licenciamento foi arquivado, dois anos antes. O atual secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, general Maynard de Santa Rosa, propõe usinas no Rio Trombetas (PA).
Ignorados pelo planejamento oficial, a crise do clima e o desmatamento pintam um cenário cada vez mais desfavorável à geração de eletricidade na floresta tropical brasileira. A Amazônia é a segunda grande região natural do planeta que mais pode sofrer com as alterações climáticas, logo atrás do Ártico, revelou uma publicação de organismos não governamentais e das Nações Unidas.
Um dos impactos das alterações climáticas sobre a Amazônia é reduzir a quantidade de água disponível em rios e outros mananciais. É o que revela um estudo oficial publicado em 2015, no governo Dilma Rousseff, e uma pesquisa do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e do WWF-Brasil. O trabalho mostrou que rios, lagos e alagados perderam 350 quilômetros quadrados anuais de espelho d’água, nas últimas três décadas.
Fogo destruindo a floresta e lançando gases de efeito estufa na atmosfera, em 2018. Foto: Daniel Beltrá/Greenpeace
Conforme as pesquisas, o fluxo de água do Rio Xingu cairá de 25% a 55%, reduzindo pela metade os esperados 11 GW de geração pela usina de Belo Monte. Já as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio, em Rondônia, produzirão uma fração dos menos de 4 GW projetados para cada barragem, apontam informações do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC). Sem grandes reservatórios, essas usinas operam basicamente com o fluxo natural dos rios.
“Infelizmente, as últimas hidrelétricas (construídas na Amazônia) não armazenam água de um ano para outro. Isso reduz o uso de fontes intermitentes e aumenta a opção por termelétricas a gás natural. Energias solar e eólica precisam do complemento de ‘fontes firmes’, como usinas com grandes reservatórios ou termelétricas”, explicou o secretário Reive Barros, do Ministério de Minas e Energia.
Com 30 anos de pesquisas sobre clima, Carlos Nobre (68), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), lembra que secas e cheias na Amazônia são influenciadas pelas temperaturas dos oceanos Pacífico e Atlântico e por circulações atmosféricas de grande dimensão e altitude. Segundo ele, a mudança do clima e o desmatamento já afetam o funcionamento deste sistema natural. E se nada for cumprido do Acordo de Paris, um novo clima poderá se instalar na Amazônia nas próximas décadas.
Rio Tapajós, na região da Terra Indígena Sawré Muybu, do povo Munduruku, no Pará. Foto: Rogério Assis/Greenpeace
Cerca de 18% da cobertura vegetal da Amazônia já foram eliminados, ou mais de 750 mil quilômetros quadrados. A área equivale ao tamanho do Chile. No entorno da megausina de Belo Monte, quase 1.800 quilômetros quadrados foram desmatados, em 5 anos. As perdas são 40% maiores do que o Imazon estimou para a região sem a hidrelétrica.
Imagem aérea da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. Altamira, Pará. 30/03/2015. Foto: Fábio Nascimento | Greenpeace
Mesmo que rios amazônicos sejam um “prato cheio” para novas hidrelétricas, seis em cada dez gigawatts que poderiam ser gerados na região afetariam áreas protegidas, como terras indígenas e quilombolas, parques nacionais e outras reservas ambientais. Pelos impactos que provocariam na floresta e populações nativas, a usina de São Luiz do Tapajós (PA) e o linhão de Manaus (MA) a Boa Vista (RR) estão paralisados.
“De 30 GW a 40 GW poderiam ser explorados fora de áreas protegidas na Amazônia, mas o planejamento para novas usinas hidráulicas é limitado porque o setor vive um dilema com licenciamentos, consultas a indígenas e arranjos econômicos cada vez mais complexos. Mas, as empresas estão reagindo positivamente a esse cenário e diversificando seus investimentos, em outras regiões e fontes de geração”, ressaltou o presidente do Instituto Acende Brasil, Cláudio Sales.
No Brasil, há quase 24.100 barragens, acumulando rejeitos da mineração ou água para geração de energia, irrigação e outras atividades, mostra um levantamento da Agência Nacional de Águas (ANA). Entre a década de 1970 e 2012, a vida de um milhão de pessoas foi afetada pela construção e operação dessas estruturas. Impactos de grandes usinas, como Belo Monte, no Pará, e Santo Antônio e Jirau, em Rondônia, não pesam nas estatísticas pois foram construídas nos anos seguintes.
Nove em cada dez hidrelétricas na Amazônia geram de até 1 Megawatt a 30 Megawatts. Apesar do tamanho, impactos desse conjunto de hidrelétricas podem estar sendo ignorados, afirmam pesquisadores brasileiros e estrangeiros que analisaram um conjunto de hidrelétricas no Rio Cupari (PA). Segundo eles, os efeitos colaterais associados de um grande número de pequenas usinas ameaça a saúde da floresta e dos rios, a vida selvagem e de comunidades indígenas e rurais.
Conforme o governo, os impactos cumulativos provocados pela construção de hidrelétricas foram avaliados para bacias de rios amazônicos como Tocantins, Teles Pires, Juruena, Jari e Aripuanã. Mas, as avaliações oficiais não descartam a construção de usinas que provocarão maiores impactos nas populações e nos ambientes naturais e diretrizes importantes para a redução desses prejuízos são deixadas de lado no licenciamento e nas obras, disse Pedro Bara, pesquisador do Instituto de Energia e Meio Ambiente.
“Rejeitar a construção de determinadas usinas faria sentido para uma análise de impactos cumulativos em bacias hidrográficas, mas a metodologia da avaliação oficial é fraca. O fecho do trabalho são diretrizes para o setor elétrico e recomendações para outros setores, que podem ser cobradas no licenciamento. Ao mesmo tempo, diretrizes importantes não viram realidade, como para a redução de impactos sobre peixes, onde a informação disponível é pobre, em especial para espécies migratórias”, alertou.
Apesar dos prejuízos sociais e ambientais provocados pelas hidrelétricas, o doutor em Física pela Universidade de São Paulo, José Goldemberg (91) afirma que, sem grandes usinas, a energia nuclear, o gás natural ou o carvão seriam as alternativas para abastecer o crescimento econômico e populacional brasileiros. Mas essas fontes trazem outros riscos e podem aumentar as emissões de gases que aquecem o planeta.
Gráfico elaborado por InfoAmazônia
O governo planeja investir pelo menos R$ 156 bilhões em geração e distribuição de energia no país, até 2027. Desse pesado investimento, R$ 108 bilhões servirão a linhões e subestações para transmissão de eletricidade até os centros consumidores. Recursos públicos são a principal fonte de financiamento desses cobiçados projetos. Informações oficiais revelam um emaranhado de empresas nacionais e estrangeiras envolvidas com as hidrelétricas na Amazônia.
O gigantesco e lucrativo negócio das grandes usinas envolve bancos como Bradesco, JP Morgan e Citibank, ambos dos Estados Unidos, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e Banco do Brasil, além de fundos de previdência brasileiros e estrangeiros, como a americana BlackRock. A maior administradora de fundos do planeta tem bens econômicos estimados em quase R$ 23 bilhões.
Da construção da megausina de Belo Monte, no Pará, participaram cerca de 70 empresas de 14 países, mostra balanço do Greenpeace. A lista traz acionistas e construtoras, fabricantes de turbinas, geradores e outros equipamentos, companhias de seguro e resseguro, bancos e fundos de investimento e pensão. Inicialmente orçada em R$ 16 bilhões, a obra chegou ao fim devorando R$ 32 bilhões. Desse total, R$ 25 bilhões (80%) foram custeados com recursos públicos.
Empresas e governos de países como China, França, Bélgica, Japão, Qatar, Estados Unidos, Holanda, Itália e Noruega participam da construção de hidrelétricas na floresta tropical. A China Three Gorges investiu nas usinas de Cachoeira Caldeirão (AP), Santo Antônio do Jari (AP/PA) e São Manoel (MT/PA). A estatal chinesa detém a maior usina e a maior produção global de hidroeletricidade. Já a Noruega tem ações da EDP São Paulo e das Centrais Elétricas Brasileiras (Eletrobras). O país é o principal doador do Fundo Amazônia, iniciativa que, desde 2008, aplicou R$ 3,2 bilhões na redução do desmatamento.
Os dados oficiais também mostram que a Eletrobras responde por 54% da geração de energia a partir da Amazônia. Logo atrás vêm o braço de participações do BNDES (BNDESpar), a franco-belga Engie, a Companhia Energética de Minas Gerais e a espanhola Iberdrola (gráfico acima). Também participam desse mercado as empresas e até membros das famílias Odebrecht, Queiroz Galvão, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez.
Essas empreiteiras estão envolvidas na Lava Jato, que investiga empresários e políticos por fraudes em licitações públicas, lavagem de dinheiro e outros crimes em 49 países, na Europa, Américas, África e Ásia. A obra de Belo Monte movimentou cerca de R$ 140 milhões em propinas, apontou a operação. A Odebrecht usou subornos para abocanhar obras em 33 países, mostrou um levantamento do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos.
“O esquema de propinas e conluios políticos deixa evidente que as obras das hidrelétricas são a fase mais rentável dos projetos e interessam muito às empreiteiras”, avaliou Alessandra Cardoso, assessora em Planejamento, Monitoramento e Avaliação do INESC.
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Amazônia livre de grandes hidrelétricas? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU