30 Julho 2019
"Há tempo para evitar a tragédia da desigualdade que advirá da reforma", escreve Eduardo Fagnani, professor do Instituto de Economia da Unicamp, em artigo publicado por Plataforma Política Social, 05-07-2019.
Previdência: o jogo não acabou[1]
O debate honesto e tecnicamente qualificado proporcionado por dezenas de especialistas do campo progressista serviu de subsídio para ação parlamentar. Embora minoritária, a bancada oposicionista foi intransigente na defesa dos interesses da sociedade. Essa postura possibilitou que o texto original da PEC n. 6 de 2019 sofresse alterações substantivas na Comissão Especial e na votação em 1º turno na Câmara dos Deputados. Pela pressão dos movimentos sociais, os deputados abortaram as medidas mais indecentes que ameaçavam a proteção previdenciária da população mais vulnerável com destaque para:
• A correção monetária dos benefícios previdenciários e assistenciais voltou a constar do texto constitucional.
• O gatilho demográfico para a elevação da idade mínima – que poderia elevar a idade mínima para 67/64 anos para homens e mulheres no início da década de 2030 – foi rejeitado.
• A introdução do regime de capitalização individual para o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) foi adiada.
• As propostas deploráveis na Previdência rural e no Benefício de Prestação Continuada (BPC) foram rechaçadas.
• O tempo de contribuição exigido das mulheres para o acesso à aposentadoria parcial foi rebaixado de 20 para 15 anos; e para o acesso à aposentadoria integral, de 40 para 35 anos, ainda excessivo em relação aos parâmetros internacionais.
• O tempo de contribuição exigido para os homens terem direito à aposentadoria parcial caiu de 20 para 15 anos (apenas para quem é filiado ao RGPS até a entrada em vigor da nova Emenda Constitucional).
A “redução de danos” foi vitória limitada da sociedade expatriada que continua sacrificada, especialmente os sem emprego, os subocupados, os desalentados que já não procuram emprego, os portadores de deficiência, os inválidos e as viúvas entregues à própria sorte. É ultrajante que a “vitória” dos governistas – que é derrota da civilização – tenha sido comemorada com entusiasmo por muitos parlamentares e pela mídia corporativa.
A resultante da tramitação do projeto até o momento é que as medidas abjetas do “saco de maldades” implícito na proposta original foram parcialmente atenuadas, mas o seu núcleo excludente permanece intacto.
É particularmente grave a manutenção dos dispositivos que dissolvem o modelo de sociedade pactuado em 1988, após mais de duas décadas de luta pela redemocratização do país. Esse processo, em marcha acelerada desde 2016, concentra sua fúria, agora, para sepultar a Seguridade Social, que é o principal mecanismo de proteção, de redução de desigualdades e de combate à pobreza do país.
Nesse sentido, destacam-se dois pontos que, em geral, não têm sido objeto da atenção do campo progressista:
• A desfiguração do Orçamento da Seguridade Social que asfixiará o financiamento do RGPS (urbano e rural), do SUS, do BPC (e demais programas de Assistência Social) e do Seguro-desemprego e Abono Salarial. Sem financiamento, esses direitos sociais garantidos pela Constituição serão letra morta.
• A “desconstitucionalização”, que pode dissipar o modelo de sociedade pactuado 1988, mediante leis complementares e, posteriormente, mediante leis ordinárias, medidas provisórias e, mesmo, mediante atos normativos do Ministério da Economia: a reforma da Previdência será processo continuado.
A reforma não será feita onde ela é necessária. Estão fora dela os Estados e Municípios e os militares, policiais militares e bombeiros militares. Restou reformar, então, o que tem sido objeto de repetidas reformas nas últimas décadas. É o caso do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) dos servidores federais civis.[2] Também é o caso do RGPS[3] que pode requerer ajustes pontuais, mas, definitivamente, não requer reforma estrutural. Entretanto, de forma também paradoxal, quem de fato pagará a conta são os “privilegiados” que recebem benefícios próximos de R$1.300,00. Esse conceito de “riqueza” talvez explique o fato de que 74% da economia estimada (em dez anos) virá da extinção de direitos no RGPS, BPC e Abono Salarial.
Para buscar tal economia, o texto aprovado mantém intacto um conjunto de regras de acesso inalcançáveis para o trabalhador de baixa renda, exposto a um mercado de trabalho precário, inseguro e desfavorável ao emprego formalizado de longa duração.
Mas o jogo não acabou. Agora a reforma tramitará na Câmara dos Deputados e no Senado. Com o propósito de subsidiar a ação social e parlamentar para essa nova etapa, procura-se, a seguir, identificar os pontos considerados execráveis, porque altamente lesivos aos interesses dos mais pobres, que se trabalha para conseguir que sejam rechaçados pela ação social e parlamentar.
Contra o debate desonesto que tem sido impingido aos trabalhadores brasileiros, temos insistido em que o propósito velado do governo não é reformar a Previdência, mas destruir o modelo de sociedade pactuado em 1988. Trata-se de projeto acalentado desde 1989, que foi aprofundado a partir de 2016 e passou a avançar em marcha forçada desde o início de 2019. A investida original, cujo núcleo continua praticamente intacto, visa a destruir a Seguridade Social em quatro atos:
1. A dissolução do Orçamento da Seguridade Social: sem recursos financeiros, não há como garantir direitos.
2. A desconstitucionalização: a reforma da Previdência poderá ser processo continuado.
3. A transição da Seguridade para o Seguro Social: adiada para o RGPS e mantida para o RPPS.
4. A transição da Seguridade para o assistencialismo: o núcleo excludente foi mantido, e as ameaças permanecem.
A seguir, cuidamos de analisar esse processo pelo qual aconteceu de restarem essas questões, mesmo depois das discussões e da tramitação do projeto na Comissão Especial e até no plenário da Câmara dos Deputados.
A ideia original de se fazer a “segregação contábil” do Orçamento da Seguridade Social (Art. 195 da Constituição Federal) foi mantida no texto aprovado, mas com nova redação: “rubricas contábeis específicas”.[4] O propósito é que sejam identificadas as receitas e as despesas vinculadas a ações das áreas que compõem a Seguridade Social (Saúde, Previdência, Assistência e Seguro-desemprego). Essa medida, associada à ideia de que se deve “preservar o caráter contributivo da Previdência social”, é grave, porque pode acabar com o sistema de financiamento tripartite da Previdência praticada no Brasil desde os anos 1930, constitucionalizando-se a visão inconstitucional, praticada desde 1989, de que a Previdência é financiada apenas pelos empregados e empregadores.
Suspeita-se, ainda, que a intenção velada do governo seja também incluir no item “Previdência” (inscrito na Seguridade Social) o RPPS (civil e militar). Essa suspeita tem fundamento, pois essa prática inconstitucional é prática da área econômica desde 2016. O desprezo à Constituição é flagrante, dado que a Constituição de 1988 trata separadamente de cada um dos três regimes previdenciários: A Seguridade Social figura no Título VIII – Da Ordem Social (Capítulo II – Da Seguridade Social); o RPPS, figura no Título III – Da Organização do Estado (Capítulo VII – Da Administração Pública); e a Previdência dos Militares figura no Título V – Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas (Capítulo II – Das Forças Armadas). A inclusão desses setores na Seguridade Social demandará mais recursos, o que pode explicar o dispositivo aprovado que objetiva pôr fim à Desvinculação das Receitas da União (DRU) e às isenções fiscais sobre as fontes de financiamento da Seguridade Social.
Por outro lado, a destruição do Orçamento da Seguridade Social também pode advir dos projetos de Reforma Tributária que tramitam no Congresso Nacional, cujo objetivo é reduzir a carga de impostos, desonerar as empresas jurídicas e “simplificar” a tributação do consumo. A destruição virá da extinção dos tributos que estão constitucionalmente vinculados ao financiamento da Educação e da Seguridade Social que serão substituídos por novo tributo sem qualquer vinculação. A concretização dessas mudanças fragilizará o financiamento da educação e o Orçamento da Seguridade Social, afetando a sustentação dos gastos em setores como Previdência Social (urbana e rural), Assistência Social, Saúde e Programa Seguro-desemprego.
Na mesma perspectiva de dissolução do Orçamento da Seguridade Social se coloca a Proposta de Emenda Constitucional sobre a “Reforma do Orçamento” que esta sendo concebida pela área econômica. O propósito do chamado “Pacto Federativo” é extinguir todas as vinculações constitucionais de fontes de financiamento do gasto público. Com isso haveria suposta “descentralização de recursos a favor de Estados e Municípios”.
O texto aprovado é mera compilação de “medidas transitórias” que terão validade até que a verdadeira reforma seja feita por dezenas de leis complementares, cuja aprovação é mais fácil porque não requerem quórum qualificado de 308 votos (Câmara) e 49 votos (Senado) em dois turnos de votação em cada casa. Não é improvável o cenário no qual as regras previdenciárias poderão ser alteradas por leis ordinárias, medidas provisórias e atos administrativos do Ministério da Fazenda. A reforma da Previdência poderá converter-se em processo continuado.
No caso do RGPS delegam-se a leis ordinárias a fixação da maioria dos parâmetros de concessão de benefícios do RGPS, com destaque para:
• No caso do BPC, “os critérios de vulnerabilidade social” serão definidos por lei complementar – o que poderá abrir a possibilidade de novos retrocessos impostos por quórum menor de votos parlamentares.
• No caso das pessoas com deficiência e dos trabalhadores que exercem atividades “com efetiva exposição a agentes nocivos químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde”, todas as regras serão definidas por lei complementar.[5]
• O texto veda a acumulação de aposentadorias e pensões, além de estabelecer diversas regras transitórias, que serão definidas por lei complementar.[6]
• No caso do Abono Salarial, o acesso será limitado a quem ganha R$1.364,43 (e não dois salários-mínimos, segundo a lei vigente), mas trata-se de medida transitória (“até que lei defina o valor”) e poderá ser objeto de novas restrições de direitos.
• A questão da inclusão dos trabalhadores com rendimento inferior ao salário-mínimo – que tende a se ampliar com a reforma trabalhista – não foi equacionada e será objeto de lei complementar.[7]
• As regras dos “Benefícios não programados” (Auxílio-acidente, Auxílio-doença e outros, nos casos em que se comprove incapacidade temporária para o trabalho) também serão definidas por lei complementar, sendo que o texto abre a possibilidade de que esse atendimento seja feito pela iniciativa privada.
A proposta original objetivava fazer com que a Seguridade, baseada na solidariedade social, transitasse para o Seguro Social, pela introdução do regime de capitalização individual, que transfere para o indivíduo a responsabilidade pelos riscos da sua vida laboral.
Por ora, essa proposta foi adiada. “A capitalização pode não entrar neste texto inicial, mas nada impede que seja aprovada no próximo semestre. O PDT, por exemplo, tem uma ótima proposta de capitalização, apresentada e debatida desde o período eleitoral”, escreveu Rodrigo Maia no Twitter.
Por outro lado, o regime de capitalização (Previdência complementar) para os servidores públicos da União, dos Estados e dos Municípios foi mantido no texto aprovado, o que acrescenta a possibilidade de que esses fundos também venham a ser geridos por “entidade fechada de Previdência complementar” ou por “entidade aberta de Previdência complementar”, que é instituição da iniciativa privada ligada ao sistema financeiro, abrindo para a iniciativa privada a exploração deste mercado milionário, de duas dezenas de Estados, o Distrito Federal e mais de cinco mil municípios.
Mantidas as regras da proposta original, poucos brasileiros teriam proteção previdenciária (que exige tempo de contribuição) e haveria uma corrida em massa para a proteção assistencial (que não exige contribuição). Antevendo essa tendência, a PEC n. 6 de 2019 ergueu, previamente, um muro de contenção fiscal, rebaixando o valor do benefício do BPC, de R$998,00 para R$400,00. Esse valor poderia ficar “congelado” por longo período, pois o indexador e a periodicidade do reajuste seriam definidos por lei complementar. Esse trânsito é a Seguridade Social que se degrada para o assistencialismo – com uma massa de idosos vivendo com benefícios próximos a R$250 ou R$300. A Comissão Especial não acatou esse insulto à cidadania pretendido no BPC, embora, como mencionado, tenha sido aprovada a regulamentação por lei complementar, o que deixa aberta a via para novos retrocessos.
Entretanto, o texto aprovado mantém intacto o núcleo excludente da reforma do RGPS, porque preserva regras de acesso que desconsideram a dura realidade do mercado de trabalho e equivalem às adotadas em países desenvolvidos, cuja realidade é distante daquela vivida em país desigual e regionalmente heterogêneo como o Brasil. Consequência disso será a morte antes da aposentadoria, ou a formação de uma legião de “inaposentáveis” ou, ainda, na melhor das hipóteses, a fuga para o assistencialismo (BPC), cujas regras finais ainda serão objeto de lei complementar.
Dentre as medidas consideradas inaceitáveis, porque altamente lesivas aos interesses dos trabalhadores e que foram mantidas, destacam-se:
• Aposentadoria parcial para poucos: o tempo de contribuição de 20 anos (RGPS) para os homens foi mantido para os ingressantes no mercado de trabalho após a aprovação da PEC n. 6/2019
O tempo mínimo de contribuição ao INSS exigido para os homens terem direito a aposentadoria parcial caiu de 20 para 15 anos, apenas para filiados ao RGPS até a entrada em vigor da PEC n. 6/2019. No caso do filiado após a edição da lei, os 20 anos de contribuição estão mantidos. Essa elevação trará dificuldades para a aposentadoria. Hoje, os trabalhadores que se aposentam por idade só conseguem contribuir, em média, com 5,1 parcelas por ano, em função do desemprego, da informalidade e da rotatividade. Com essa média, serão necessários 48 anos para se completarem 20 anos de contribuição.
• A aposentadoria integral será inalcançável
O texto manteve a exigência de 40/35 anos de contribuição (homens/mulheres) para o acesso à aposentadoria integral (RGPS). Como mencionado, estudos revelam que os trabalhadores só conseguem contribuir, em média, com 5,1 parcelas por ano. Logo, no caso dos homens, para completar 40 anos de contribuição, serão necessários 94 anos. No caso das mulheres, exige-se 35 anos de contribuição, o que também é inalcançável para a maioria das brasileiras.
• O rebaixamento do valor dos benefícios: o trabalhador contribui por um período maior e recebe benefício menor
Atualmente, o cálculo para definir o valor das aposentadorias considera média salarial do trabalhador de 80% dos maiores salários desde julho de 1994, descartando os 20% menores. No texto aprovado, a base de cálculo passa a considerar a média de 100% dos salários de todo o período contributivo, o que rebaixa o valor da aposentadoria e das pensões. Além disso, o segurado que completa 15 anos de contribuição terá valor de benefício equivalente a 60% da média salarial. Em suma, o trabalhador contribui por um período maior e recebe benefício menor.
• As regras de transição são corrida de obstáculos insuperáveis
Todas as regras de transição são muito duras e severas, pois, de modo geral, requerem o acúmulo de 105 pontos para o homem (65 anos de idade e 40 anos de contribuição, por exemplo) e 100 pontos para as mulheres (65 anos de idade e 35 anos de contribuição). Observe-se que, no caso dos homens, os 105 pontos passam a contar em 2028 e, no caso das mulheres, os 100 pontos passam a valer a partir de 2033. Assim, os homens passam dos atuais 96 para 105 pontos (um acréscimo de 9 pontos em 10 anos); e as mulheres passam dos atuais 86 para 100 pontos (um acréscimo de 14 pontos em 14 anos). Trata-se de uma difícil corrida de obstáculos, pois todo ano aumenta a pontuação exigida.
• Exclusão no BPC
Atualmente, o BPC é um pagamento assistencial, de um salário-mínimo, para idosos a partir dos 65 anos ou para deficientes físicos em condição de miserabilidade. O texto aprovado inclui na Constituição o critério de elegibilidade do BPC: “Para os fins do disposto no inciso V do caput, considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a um quarto do salário-mínimo”. Ao constitucionalizar esse critério (disposto em lei complementar), o texto impede que duas pessoas da mesma família tenham acesso ao benefício.
• Pensão por morte inferior ao salário-mínimo para quem tem “renda formal”
A pensão por morte para os segurados do INSS que não tenham “renda formal” (emprego com carteira assinada, algum benefício do INSS ou contrato de aluguel) volta a ter valor equivalente ao salário mínimo. Para quem tenha “renda formal”, a pensão por morte poderá ser menor que o salário mínimo, como estava definido na PEC n. 6.
• Não se pode acumular pensão e aposentadoria
O texto veda a acumulação de mais de uma pensão por morte deixada por cônjuge ou companheiro, no âmbito do mesmo regime de Previdência social.
• Regras duras para a aposentadoria das pessoas com deficiência
As regras de acesso das pessoas com deficiência que não estão em “condições de miserabilidade” foram endurecidas. O texto veda a adoção de requisitos ou critérios diferenciados para concessão de benefícios. Passa-se a exigir idade mínima de 65/62 anos (homens/mulheres) mais tempo de contribuição que varia acordo com o grau de deficiência, definido após o trabalhador ser “previamente submetido à avaliação biopsicossocial realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar”. Após essa avaliação, os benefícios serão concedidos, desde que o segurado (homem ou mulher) comprove: 35 anos de contribuição, no caso de deficiência avaliada como “deficiência leve”; 25 anos de contribuição (“deficiência moderada”); e 20 anos de contribuição (“deficiência grave”).
• Aposentadoria por invalidez, de primeira e de segunda classe
O texto modifica o conceito atual de “invalidez” para “incapacidade temporária ou permanente para o trabalho e idade avançada”. Considera-se 100% dos salários de contribuição desde julho de 1994 para calcular o valor do benefício. No caso da invalidez ter ocorrido fora do local de trabalho, o segurado terá direito a 60% dessa média, com acréscimos, caso tenha contribuído por mais de 15 anos (2% a mais no valor por ano excedente). Nas hipóteses de acidente de trabalho, doenças profissionais e doenças do trabalho, o valor da aposentadoria será de 100% da média salarial.
• Abono Salarial: exclusão de quem ganha mais que R$1.364,43
Hoje, o Abono Salarial é acessível para quem ganhe até dois salários-mínimos. O texto aprovado reduz o acesso para quem ganhe até R$1.364,43 – o que exclui cerca de 20 milhões de brasileiros. Além disso, o Abono poderá ter valor menor do que 1/12 do salário mínimo por mês trabalhado.
• “Benefícios não programados” poderão ser geridos pelo setor privado
“Benefícios não programáveis” como pensão por morte, o auxílio doença (incapacidade temporária), a aposentadoria por invalidez (incapacidade permanente), o salário-maternidade, entre outros, poderão ser atendidos pelo setor privado, abrindo uma enorme avenida para a privatização do sistema. Atualmente, mais de 40% das despesas do RGPS são relacionadas aos benefícios não programados, dentre os quais se destaca a pensão por morte.
• O trabalhador que recebe menos que o salário-mínimo mensal continua sem proteção previdenciária na velhice
Pela Constituição Federal, o tempo de contribuição somente é reconhecido quando a contribuição previdenciária incidir sobre salário igual ou superior ao salário mínimo. O segmento dos que têm salários inferiores ao salário-mínimo tende a se ampliar com a implantação da reforma trabalhista, que institui diversas modalidades precárias, que não asseguram esse piso (como, por exemplo, o contrato por horas de trabalho). A inclusão previdenciária desse segmento não foi definida e será objeto de lei complementar.
• É justo exigir idade mínima para trabalhadores que exercem “atividades prejudiciais à saúde”?
A aposentadoria especial é concedida a quem trabalha com exposição a agentes químicos, físicos ou biológicos, em condições prejudiciais à saúde. O texto aprovado introduz uma mudança de grande monta: as regras atuais vigentes na Constituição Federal tratam das atividades que prejudicam a saúde conforme as categorias profissionais que apresentam diferentes graus de periculosidade. O texto aprovado refere-se a “atividades (…) exercidas com efetiva exposição a agentes nocivos químicos, físicos e biológicos prejudiciais à saúde, ou associação destes agentes, vedados a caracterização por categoria profissional ou ocupação e o enquadramento por periculosidade”. Atualmente, não se exige idade mínima, o que é correto nesses casos, e exige-se tempo mínimo de contribuição variável (15, 20 ou 25 anos), dependendo da atividade profissional. O texto aprovado exige idade mínima, o que é um despropósito, pois o trabalhador pode ficar doente e incapaz para o trabalho a qualquer tempo, dependendo do grau de periculosidade da atividade que exerce.
Em síntese, as medidas aprovadas não mudam a essência da proposta original do governo, que continua muito ruim para uma sociedade constituída por expatriados dos frutos da riqueza que contribuem para gerar. Em última instância, o governo aposta na morte do cidadão trabalhador, antes da aposentadoria. Essa é a via velada pela qual se pretende fazer o ajuste fiscal. Quem viver, vagará pelas ruas como zumbi sem proteção, somando-se aos milhões de desempregados, desalentados e subempregados. Hoje, 15% dos trabalhadores com mais de 60 anos são “inaposentáveis”.[8] Caso as novas regras sejam aprovadas, esse contingente crescerá de forma exponencial nas próximas décadas.
“Estão sapateando em cima do túmulo de classes sociais empobrecidas que estão nas ruas, desempregadas. E ficam rindo. Isto aqui é a perda de uma dura conquista constitucional. O texto constitucional [atual] foi votado com muita luta, com muita dureza, por décadas” – bradou a deputada federal, Jandira Feghali (PCdoB-RJ), diante da comemoração entusiástica da tropa de choque do governo.[9]
A tramitação da “reforma” da Previdência evidencia que o real problema do Brasil não é algum inexistente “déficit” da Previdência. O problema é o déficit de democracia e o déficit de capitalismo: o sistema político não representa a sociedade, e o capitalismo requer consumidor. Postas as coisas na perspectiva correta e com o objetivo de alcançar o melhor – não o pior – para os brasileiros pobres, o ministro Paulo Guedes tem alguma razão, quando diz que “nós somos 200 milhões de trouxas, explorados por duas empreiteiras, quatro bancos, seis distribuidoras de gás, uma produtora de petróleo”.[10]
Observe-se que o “combate aos privilégios” se resume aos supostos “privilegiados” das classes subalternas. Se houvesse debate, os brasileiros poderiam saber que as alternativas para o equilíbrio financeiro da Previdência requerem maior contribuição das classes sociais que detêm a riqueza financeira.
Nesse sentido, a recomposição da capacidade financeira do Estado passa, sobretudo, pelo crescimento da economia (o que requer, dentre outros fatores, a reforma do regime fiscal que impede a adoção de políticas fiscais ativas)[11]; pela redução dos juros cujo patamar está na contramão do que é praticado no mundo (o que requer a reforma financeira)[12]; pela maior taxação da renda e do patrimônio, e não o consumo, que penaliza os mais pobres (o que requer reforma tributária que corrija o vergonhoso caráter regressivo da tributação); pela revisão dos incentivos fiscais; e pelo combate à sonegação:
• Atualmente pagamos cerca de R$500 bilhões de juros por ano, mais de cinco anos da ‘economia’ que governo espera da “Nova Previdência”.
• É tecnicamente possível ampliar a tributação da renda, patrimônio e transações financeiras em cerca de R$ 357 bilhões, mais de três anos da economia da reforma da Previdência.[13]
• O Brasil é uma das sociedades mais desiguais do mundo e o sistema tributário contribui para ampliar essas desigualdades. Estudo realizado por Sergio Gobetti e Rodrigo Orair[14], com base nos dados das declarações de imposto de renda, conclui que o topo da pirâmide social, formado de 71.440 pessoas com renda mensal superior a 160 salários mínimos, concentra 8,2% do total da renda das famílias; esse topo ganhou, em média, R$ 4,2 milhões em 2013; e pagou apenas 6,7% de imposto de renda sobre esse montante, considerando os tributos recolhidos sobre os rendimentos financeiros e outras rendas tributáveis. Esse topo da pirâmide social tem aproximadamente 70% dos seus rendimentos isentos de tributação. Com isso, a alíquota efetiva do Imposto de Renda da Pessoa Física desses verdadeiros privilegiados é de 6,7% (enquanto o trabalhador é descontado na fonte em 27,5% do seu salário).
• Com as isenções tributárias concedidas para as classes de alta renda, somente o Governo Federal (mas, também Estados e Municípios), anualmente, abre mão e deixa de arrecadar cerca de 20% de suas receitas. Em 2017, o montante de isenções totalizou R$406 bilhões, mais de quatro anos de ‘economia’ da “Nova Previdência”.
• A sonegação de impostos é estimada em cerca de R$600 bilhões anuais, mais de cinco anos de ‘economia’ da “Nova Previdência”. A sonegação não é tratada como crime. Ao contrário, é premiada por sucessivos programas generosos de “refinanciamento”.
• Por que então penalizar os mais pobres (beneficiários do RGPS, do BPC e do Abono Salarial), se há alternativa de se arrecadar mais e, ao mesmo tempo, fazer justiça fiscal e social?
A tarefa fundamental é evitar, usando o limite das nossas forças, a tragédia da destruição da Seguridade Social, que é o principal mecanismo de redução da pobreza e da desigualdade. Ainda restam pontos inaceitáveis, porque altamente lesivos aos interesses dos trabalhadores, que aprofundarão a desigualdade que está em toda parte e é a maior chaga brasileira: desigualdade da renda; desigualdade de acesso à justiça; desigualdade regional; desigualdade de acesso à segurança; desigualdade de acesso à saúde, ao saneamento, à mobilidade, à cultura e por aí vai. As desigualdades do Brasil são, portanto, uma procissão de desigualdades. Sem falar na desigualdade de gênero, na desigualdade racial. O Brasil é um país de longo passado escravocrata que não conseguiu resolver sequer as desigualdades do século 19. Hoje, a taxa de desemprego de uma mulher negra no Brasil é três vezes maior do que a taxa de desemprego de um homem branco, só para ficar nesse exemplo. Outro exemplo? A brutal assimetria entre o assassinato de pretos e brancos: de cada dez brasileiros assassinados, sete são negros.
Mas o resultado do jogo até aqui não é o resultado final. Em agosto e setembro, a “reforma” ainda tramitará na Câmara dos Deputados (segundo turno) e no Senado (dois turnos). Há, pois, uma derradeira possibilidade para que a sociedade reaja no sentido de impedir a consumação dessa catástrofe humanitária à vista.
Resta, ainda, tempo de luta e tempo de resistência.
[1] Esse artigo é baseado no post scriptum do livro “Previdência: o debate desonesto” que será lançado pelo autor em agosto de 2019 (Editora Contracorrente).
[2] Ver, especialmente, as Emendas Constitucionais n. 20/1998, n. 42/2003 (que acabou com a integralidade e a paridade), n. 45/2005 e n. 70/2012 (que impõe o teto de benefício de R$5.839,45 para o servidor que ingressou na carreira partir de 2012).
[3] Problemas que houvesse aí já foram equacionados por reformas anteriores, iniciadas no início da década de 1990, visando a regulamentar a Constituição de 1988, passando pela Emenda Constitucional n. 20 de 1998 e por diversas outras medidas legais adotadas nas décadas subsequentes.
[4] Art. 194, VI.
[5] Art. 201, § 1º.
[6] Art., 201, §15: “Lei complementar estabelecerá vedações, regras e condições para a acumulação de benefícios previdenciários.”
[7] Art. 201, § 8º.
[8] “Os inaposentáveis: o limbo da Previdência Brasileira”. El País, 10/05/2019.
[9] “Oposição convoca sociedade a lutar para que o plenário barre a reforma da Previdência”. Jornal GGN, 05/07/2019.
[10] “Somos 200 milhões de trouxas explorados, diz Paulo Guedes sobre o Brasil”. Folha de S.Paulo, 04/07/2019.
[11] CARVALHO, Laura. A reforma do regime fiscal. Folha de S. Paulo, 25/7/2019.
[12] AUSTERIDADE E RETROCESSO – Finanças públicas e política fiscal no Brasil (2016). São Paulo: Fórum, 21. Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES); GT de Macro da Sociedade Brasileira de Economia Política (SEP); e Plataforma Política Social, setembro.
[13] ANFIP/FENAFISCO (2018). A Reforma Tributária Necessária – Justiça fiscal é possível: subsídios para o debate democrático sobre o novo desenho da tributação brasileira / Eduardo Fagnani (organizador). Brasília: ANFIP: FENAFISCO: São Paulo: Plataforma Política Social. 152 p. ISBN: 978-85-62102-30-1
[14] GOBETTI, S. e ORAIR, R. (2016). Progressividade tributária: a agenda negligenciada. Brasília: IPEA (Texto para Discussão, 2190).
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Previdência: o jogo não acabou - Instituto Humanitas Unisinos - IHU