10 Abril 2019
“A teologia católica acadêmica deve desencadear uma onda de projetos de pesquisa de longo prazo, coordenados e sistemáticos que possam ajudar a Igreja a enfrentar a crise dos abusos sexuais. Ela deve preparar ferramentas para o pensamento da Igreja: não apenas em prol da prevenção, mas também para se encontrar a coragem para corrigir os erros teológicos que contribuíram para os abusos sexuais.”
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado em La Croix International, 09-04-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A separação entre a administração da Igreja (a hierarquia) e seu departamento de pesquisa e desenvolvimento (teólogos) é um dos mais sérios problemas enfrentados pela Igreja Católica.
Thomas Reese, ex-editor-chefe (1998-2005) da revista jesuíta America, identificou esse problema ainda em 1996, em seu livro “O Vaticano por dentro” (Ed. Edusc, 1998).
E, embora o livro tenha sido publicado há dois pontificados, a premissa de Reese permanece verdadeira. De fato, a situação está ainda pior agora do que há quase 25 anos.
Um dos efeitos da última fase da crise dos abusos católicos, que começou em 2018, é que ela nos ofereceu alguma perspectiva histórica sobre a dicotomia entre administração e pesquisa da Igreja.
A crise dos abusos sexuais está há muito tempo em andamento. Ela se tornou pública em meados dos anos 1980, e o seu ponto de virada foi em 2001-2002 nos Estados Unidos. Isso abriu os olhos de muitos para o que havia acontecido naquele país norte-americano e para o que estava prestes a acontecer em outros países também.
A história moderna da crise dos abusos sexuais na Igreja Católica também solidificou uma certa narrativa eclesiológica: a saber, estamos lidando com uma crise sistêmica causada pelos padres abusivos e catastroficamente mal gerida pela hierarquia episcopal.
Essa narrativa é verdadeira e agora impossível de desfazer. Mas é apenas parte da verdade.
Por mais impopular que seja dizer isto, a Igreja fracassou também em outro modo de lidar com o fenômeno. Isso diz respeito aos seus setores intelectuais e acadêmicos; isto é, o pessoal de pesquisa e desenvolvimento, ou os teólogos.
Se olharmos para a história das grandes catástrofes em organizações complexas, como crises de saúde pública ou colapsos industriais, a análise de falhas determina a responsabilidade dos formuladores de políticas e dos gestores.
Mas também aponta para os departamentos de pesquisa. Corrigir uma crise exige avanços políticos, mas também mudanças na pesquisa.
A Igreja Católica está passando por uma crise que, em poucos meses, produziu a espetacular desgraça de quatro cardeais em quatro países diferentes – George Pell na Austrália, Philippe Barbarin na França, Donald Wuerl nos Estados Unidos, e Ricardo Ezzati no Chile.
Nós fixamos o nosso olhar na hierarquia, e com razão. Mas ninguém está olhando para o papel do departamento de pesquisa na resolução dessa crise – isto é, a intelligentsia teológica que se encontra nas nossas universidades e academias católicas (e pontifícias) em todo o mundo, incluindo aquelas dos departamentos de Teologia e de Ciências da Religião dessas instituições.
No entanto, as coisas começaram a se movimentar nesse setor. Várias faculdades e universidades católicas nos Estados Unidos, por exemplo, começaram a promover iniciativas para dar sentido à crise dos abusos. A maioria delas tem sido na forma de debates públicos ou de conferências de alto perfil.
Mas esses painéis públicos não serão capazes de mudar os termos da conversa ou fazer uma contribuição intelectual para ela, algo que as universidades devem poder oferecer. Uma exceção parece ser a recente decisão da Universidade de Notre Dame (Indiana) de lançar uma série de projetos de pesquisa de longo prazo sobre a crise.
Mesmo assim, nenhum grande centro ou instituto católico procurou investigar sistematicamente os diferentes aspectos da crise dos abusos e como ela afeta todas as disciplinas teológicas: Escritura e tradição, história, liturgia, eclesiologia, sacramentos e soteriologia.
O único que chega perto disso é o Centro de Proteção dos Menores da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, dirigido pelo Pe. Hans Zollner, SJ. Caso contrário, é difícil identificar no mapa-múndi um think tank de especialistas totalmente engajados no estudo da crise.
Isso não quer dizer que os teólogos não tenham dado nenhuma contribuição. Individualmente, alguns produziram importantes escritos sobre o assunto. Mas, até agora, não houve nenhum esforço sistemático e organizado por parte dos teólogos católicos para pensar a crise dos abusos sexuais.
Quando a magnitude da crise começou a se tornar pública, ela poderia e deveria ter provocado uma vasta reavaliação teológica, de maneira similar a quando novas fontes se tornaram disponíveis para lidar com questões intelectuais importantes para a vida da Igreja.
Foi o que aconteceu em 1998, quando o Vaticano abriu os arquivos do Santo Ofício e da Congregação do Índex de livros proibidos.
Universidades importantes promoveram grandes estudos sobre o novo material disponível, que, por sua vez, produziram coleções de monografias e dicionários, que fornecem respostas de autoridade e acadêmicas para questões históricas de longa data.
Mas isso não aconteceu desde a erupção da crise dos abusos sexuais na Igreja. Embora os teólogos católicos continuem dizendo que a crise representa um desafio existencial na vida da Igreja, ela não mudou muito a abordagem institucional da sua profissão, pelo menos como teólogos acadêmicos.
Há muitas razões para isso. Mas isso não se deve à preguiça ou à falta de conscientização dos estudiosos individuais. Pelo contrário, faz parte de um desenvolvimento institucional típico do período pós-Vaticano II.
As tensões entre o magistério e os teólogos, começando com a dissensão em torno da encíclica Humanae vitae de 1968, produziram uma alienação mútua.
Elas também deixaram os teólogos com temores razoáveis quanto à sua liberdade acadêmica. E é dentro desse paradigma que a teologia acadêmica continua operando.
Isso significa que a crise dos abusos sexuais ainda não foi um choque tão grande nesse setor particular da Igreja, que agora está passando por outro tipo de crise existencial.
Isso diz respeito à tendência das universidades afiliadas à Igreja de continuarem chamando-se de católicas, mesmo que tenham reduzido ao mínimo o número de cursos obrigatórios de teologia.
Há também razões que têm a ver com as origens históricas da teologia acadêmica. Hoje, a grande maioria dos teólogos católicos é formada por homens e mulheres leigos, mas até recentemente era uma profissão dominada por homens e clérigos.
Velhos hábitos são difíceis de morrer, e o clericalismo se encontra não apenas entre o clero. Historicamente, no mundo ocidental, os privilégios dos acadêmicos e do clero católico têm muito em comum e imitam uns aos outros.
Por exemplo, o fato de estabelecer a idade de aposentadoria para os bispos aos 75 anos foi proposto pela primeira vez durante o Concílio Vaticano II (1962-1965) e implementado alguns anos depois por Paulo VI. Ele se baseava no sistema universitário europeu.
Existem outros paralelos.
O modelo das carreiras episcopais que saltam de uma pequena diocese para uma maior e mais rica não é totalmente diferente das carreiras dos teólogos acadêmicos.
Nos tempos antigos, o bispo era descrito como “casado” com a sua diocese. Os teólogos acadêmicos (como eu) são agora profissionais no mercado do Ensino Superior. Nós não somos mais cristãos com um carisma particular que estão comprometidos com uma comunidade eclesial, que é o que uma universidade católica é.
A teologia acadêmica enfrenta uma série de pressões que vêm da Igreja, das faculdades e universidades católicas e, principalmente, das forças do mercado no Ensino Superior.
Dada a forma como o sistema de avaliação do corpo docente funciona (pelo menos nos Estados Unidos), é compreensível que os jovens teólogos relutem em se envolver em um campo de pesquisa como a crise dos abusos, que é realmente um campo minado por razões que vão do metodológico ao político (política da Igreja e política secular).
É menos compreensível que os teólogos e administradores estabelecidos das instituições católicas de Ensino Superior ainda não tenham tornado a crise dos abusos uma prioridade institucional e acadêmica.
A crise revelou um vácuo trágico na compreensão da Igreja sobre o fenômeno dos abusos, suas causas e consequências. A natureza abomina o vácuo, e esse vácuo agora está sendo preenchido por outros.
Por exemplo, há um trabalho historiográfico que não pode ser terceirizado para o sistema de justiça criminal, para a mídia ou para os jornalistas.
A Igreja precisa mais do que “o rascunho bruto da história” que o jornalismo oferece. A lacuna entre o jornalismo e a tradição da Igreja é mais ampla do que a lacuna entre a tradição da Igreja e a sua história.
Não é possível oferecer uma avaliação teológica de uma crise na tradição da Igreja sem fazer o trabalho historiográfico do seu contexto. Há um trabalho sendo feito sobre os abusos na história da Igreja e em outros campos.
Mas, se os estudiosos católicos continuarem a abordar essa crise individualmente, no contexto da superespecialização na academia que impede pesquisadores e estudantes de verem o quadro mais amplo dos problemas científicos, eles terão pouco impacto na compreensão da crise no catolicismo global.
Essa é claramente a maior crise da Igreja na nossa vida. A teologia católica acadêmica deve desencadear uma onda de projetos de pesquisa de longo prazo, coordenados e sistemáticos que possam ajudar a Igreja a enfrentar a crise dos abusos sexuais. Ela deve preparar ferramentas para o pensamento da Igreja: não apenas em prol da prevenção, mas também para se encontrar a coragem para corrigir os erros teológicos que contribuíram para os abusos sexuais.
Dada a história e a geografia globais da crise, as universidades católicas nos países de língua inglesa têm um papel especial a desempenhar.
Se eles não o desempenharem, então, talvez, os tecnocratas tenham razão quando dizem que a teologia católica na academia é uma relíquia do passado. Ela está meramente protegendo antigos privilégios e merece morrer – ou, pelo menos, ser marginalizada pelo Ensino Superior moderno.
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Universidades católicas não estão fazendo o suficiente para enfrentar a crise dos abusos sexuais. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU