26 Março 2019
“Proteger as crianças não é apenas se livrar dos maus padres. Precisamos também desenvolver uma triagem melhor dos candidatos ao sacerdócio.”
O comentário é do jesuíta estadunidense Thomas J. Reese, ex-editor-chefe da revista America, dos jesuítas dos Estados Unidos, de 1998 a 2005, e autor de“O Vaticano por dentro” (Ed. Edusc, 1998). O artigo foi publicado por Religion News Service, 23-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A cúpula do mês passado em Roma sobre os abusos sexuais infantis não abriu novos caminhos para aqueles que, como eu, vêm acompanhando essa crise há mais de 30 anos, mas deixou claro – de novo – que a crise dos abusos sexuais na Igreja Católica foi devastadora para as vítimas e para a Igreja como um todo.
Há três partes da crise que eu planejo abordar em três colunas sucessivas.
Primeiro, há o fracasso em proteger as crianças; segundo, o fracasso em responsabilizar os bispos; e, terceiro, a falta de transparência no tratamento da crise.
Proteger as crianças é uma obrigação fundamental de qualquer adulto, mesmo daqueles que não são pais. As crianças são vulneráveis, e o abuso é criminoso. É impossível não ficar tocado ao ouvir as horríveis histórias de sobreviventes de abuso, que podem ficar permanentemente marcados por essa experiência.
O abuso ocorre em outros lugares, é claro, incluindo escolas e lares de famílias, mas esse fato não é desculpa para o mau tratamento dado pela Igreja aos abusos.
O erro cometido por muitos bispos no século passado foi tratar o abuso como um pecado, e não como um crime. Se um padre se arrependesse e prometesse não fazer isso de novo, o bispo lhe daria outra chance, como se o abuso infantil fosse comparável ao fracasso no celibato com um adulto consciente. Frequentemente, terapeutas e psicólogos incompetentes apoiavam esse retorno ao ministério.
Os bispos foram tentados a salvar esses padres, especialmente aqueles que tinham apenas uma acusação contra si. Antes de 2002, os bispos às vezes simplesmente mantinham esses padres fora das paróquias e os restringiam ao trabalho administrativo ou a ministrar aos adultos.
É verdade que alguns desses padres nunca cometeram abusos novamente. Um padre alcoólatra pode acordar na cama com uma prostituta adolescente e ficar tão chocado com a experiência que entra no Alcoólicos Anônimos, para de beber e muda de vida. Mas ninguém pode garantir que um agressor não voltará a cometer abusos, e muitos padres, depois de serem transferidos para outra paróquia, fizeram exatamente isso.
Alguns eram criminosos em série do pior tipo.
O relatório de 2004 sobre o abuso do clero realizado por estudiosos da Escola de Justiça Criminal John Jay constatou que apenas 3,5% dos agressores (149 padres) eram responsáveis pelo abuso de 2.960 crianças, 27% das vítimas conhecidas na época. Cada um desses padres tinha mais de 10 acusações contra si. Por outro lado, 56% dos padres tinham apenas uma acusação contra si.
Os psicólogos explicam que existem diferentes tipos de abusadores. Há abusadores preferenciais que atacam crianças. E há abusadores oportunistas que atacam quem estiver disponível, sejam crianças ou adultos.
Foi apenas em 2002 que os bispos aceitaram que a melhor política era não permitir que qualquer abusador infantil continuasse atuando como padre. A Carta de Dallas, elaborada pelos bispos dos Estados Unidos em 2002, e as normas aprovadas pelo Vaticano estabeleceram a tolerância zero ao abuso por parte de padres. Ninguém que abusasse de uma criança poderia voltar ao ministério.
Ao implementarem a nova política, as dioceses também estabeleceram comissões de revisão leigos para ajudar os bispos a examinar as acusações contra padres. Não se trata mais apenas de clérigos policiando clérigos. Qualquer bispo que desconsidere a recomendação da sua comissão de revisão no sentido de remover um padre do ministério fará isso por sua conta e risco, porque o público e a mídia vão descobrir.
A maioria das pessoas quer que os padres abusivos não sejam apenas removidos do ministério, mas também demitidos do estado clerical (laicizados) e queiram que eles percam qualquer apoio financeiro da diocese. Outros temem que, se um agressor for expulso sem qualquer supervisão, ele continuará sendo um perigo para as crianças. Eles argumentam que é mais seguro que a Igreja continue a apoiá-lo em um ambiente onde ele não tenha acesso a crianças. A ameaça de perder esse apoio pode mantê-lo na linha.
Outra mudança importante na Carta de Dallas foi tornar obrigatória a denúncia às autoridades civis do abuso de uma criança. O abuso infantil é crime e deve ser tratado pelo sistema de justiça criminal. Nos últimos 20 anos, muitos Estados fizeram dos clérigos denunciadores obrigatórios de abuso. As dioceses que não denunciaram os padres estão agora sendo investigadas por procuradores gerais do Estado e outros promotores em todo o país.
Há alguma discordância sobre o que fazer se a criança abusada for adulta agora. Todos concordam que o sobrevivente de abuso deve ser encorajado a denunciar o crime, mas, se a vítima não quer que isso seja denunciado, o que a diocese deve fazer se o Estado não exigir tal denúncia? Algumas dioceses fazem a denúncia de qualquer maneira; outras respeitam a escolha da vítima, que agora é adulta.
Se o crime estiver prescrito, o padre não será processado, mas a Igreja precisaria remover o sacerdote do ministério em todo o caso.
Proteger as crianças não é apenas se livrar dos maus padres. Precisamos também desenvolver uma triagem melhor dos candidatos ao sacerdócio.
Infelizmente, não há testes que possam prever o abuso com precisão. Existem, no entanto, fatores de risco identificáveis, explica Thomas Plante, da Universidade de Santa Clara: “Problemas de controle de impulsos, lesões cerebrais, relacionamentos pobres com seus pares, personalidade antissocial, falta de conexões íntimas não sexuais com outros, abuso de álcool e de drogas, e um histórico de vitimização sexual”.
Esses fatores levariam a um mau padre, mesmo que ele não cometa abusos após a ordenação.
Plante observa que a homossexualidade não é um fator de risco, apesar das calúnias dos católicos de direita que querem culpar os gays pela crise dos abusos.
Desde 2002, a Igreja também instituiu verificações de antecedentes criminais para seminaristas, padres, professores, empregados da Igreja e voluntários que trabalham com crianças. Além disso, existem programas de treinamento para ajudar a prevenir o abuso, educando as pessoas sobre os limites e sobre como identificar abusos.
Ler a constante enxurrada de notícias sobre os abusos na Igreja Católica faz pensar se alguma dessas coisas está realmente fazendo algum bem.
Na verdade, há evidências de que essas medidas estão ajudando. O relatório do Grande Júri da Pensilvânia, do ano passado, listou 300 padres que haviam sido acusados de abuso, mas apenas dois estavam envolvidos com abuso nos últimos 20 anos. Todos os padres já estavam mortos ou fora do ministério. As histórias do relatório eram horrendas, mas também mostraram que o novo sistema está funcionando, não perfeitamente, mas certamente melhor do que no passado.
Muito frequentemente, os relatos da mídia sobre os abusos não registram esses marcos temporais. Muitas vezes, parece que nada foi feito. O relatório da John Jay, de fato, descobriu que o número de supostos abusos aumentou nos anos 1960, atingiu o pico nos anos 1970, diminuiu nos anos 1980 e, nos anos 1990, voltou aos níveis dos anos 1950.
Muito antes das revelações do Boston Globe em 2002, a quantidade de abusos havia diminuído drasticamente na Igreja. O que aumentou depois da cobertura do Globe foi o número de sobreviventes que se manifestaram, mas se tratava, na maior parte, de pessoas que haviam sido abusadas muito antes.
Eu diria que a Igreja nos Estados Unidos está fazendo um trabalho muito melhor do que no passado no sentido de proteger as crianças de abuso – um trabalho melhor, de fato, do que a maioria das outras instituições norte-americanas. Mas devemos continuar sendo vigilantes. Devemos insistir que os bispos façam o seu trabalho protegendo as crianças e, se não o fizerem, devem ser responsabilizados. Nós também devemos insistir que a Igreja em todo o mundo aja agressivamente para proteger as crianças.
Embora a Igreja dos Estados Unidos esteja fazendo um bom trabalho no sentido de proteger as crianças, ela não está se saindo bem ao responsabilizar as lideranças da Igreja quando elas não protegem as crianças. Ela tampouco se põe à disposição em relação ao histórico de abuso e de encobrimento na Igreja. Isso será assunto para as colunas posteriores.
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Um balanço da crise dos abusos sexuais do clero: o desafio de proteger as crianças. Artigo de Thomas Reese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU