24 Janeiro 2019
Para o cientista político José Luís Fiori, a eleição de Jair Bolsonaro é resultado de uma “operação complexa, envolvendo vários atores externos, com o objetivo fundamental de interromper a série de governos petistas do país”, uma ofensiva iniciada em 2012/2013 e que sofreu mudanças com a derrota de Hillary Clinton em 2016.
A entrevista é reproduzida por Outras Palavras, 22-01-2019.
No estilo Trump/Bolton/Mattis, Temer foi engavetado, e o ex-presidente Lula passou a ter confinamento militar. “Tudo indica que foi só depois da fragmentação definitiva das forças conservadoras tradicionais que se impôs um acordo do comando das Forças Armadas brasileiras com o sr. Bolsonaro, provavelmente no dia 7 de junho de 2018, um mês antes de ser sacramentada –com toda certeza– durante a visita do secretário de Defesa norte-americano, James Mattis, entre os dias 10 e 14 de agosto”.
É o que afirma o professor de economia política internacional da UFRJ, em entrevista ao Tutaméia. Na avaliação de Fiori, o governo teológico-militar não representa a solução para a crise que atravessa o Brasil. Traz um projeto econômico velho e ultrapassado, que acumula 70 anos de fracassos pelo mundo. E muitos de seus integrantes parecem ter tido “formação intelectual quase inteiramente limitada à convivência nos templos, nas academias de ginástica, e nos churrascos de amigos”.
Ele aponta que “não é impossível que esta experiência brasileira possa provocar um efeito inverso, como já aconteceu na história, quando a exasperação de uma ideia até o limite da caricatura acaba provocando uma reação contrária, que pode ser, neste caso, das próprias elites que apoiaram este projeto em troca de algumas patacas imediatas, e que depois se dão conta das consequências de longo prazo de sua irresponsabilidade histórica”.
Autor, entre outros, de “O Poder Global” (Boitempo, 2007), José Luís Fiori organizou obras essências para a reflexão do mundo contemporâneo como “Poder e Dinheiro” (com Maria da Conceição Tavares, 1997) e “O Poder Americano” (Vozes, 2004). Acaba de lançar pela Vozes “Sobre a Guerra”, uma coletânea de textos de pesquisadores sobre geopolítica, ética, economia e história.
Ao Tutaméia, o sociólogo e cientista político discorre sobre as mudanças radicais na política externa norte-americana e no tabuleiro de poder onde se destacam China e Rússia. E trata da “guerra ilimitada” – o novo formato de conflito no cenário global, que também afeta o Brasil.
Como serão as guerras neste século 21?
Todas as evidências arqueológicas e históricas indicam que a guerra, como forma organizada e violenta de solução dos conflitos entre os povos, pela imposição da vontade de uns sobre os outros, acompanha o Homo sapiens desde as primeiras civilizações e impérios. E não há nenhuma prova consistente de que elas tenham diminuído em quantidade ou violência, através dos séculos. Pelo contrário, os números indicam que sua intensidade e frequência se mantiveram constantes, e parecem ter aumentado significativamente depois do surgimento do sistema interestatal europeu, em torno dos séculos 15 e 16 da era comum. Um fenômeno que adquiriu ainda maior intensidade depois que a guerra também se transformou numa peça central da acumulação da riqueza capitalista dentro desse sistema e de cada um de seus Estados e economias nacionais. Em particular, no caso das grandes potências que lideraram este sistema de poder europeu, até sua completa universalização, no final do século 20. Deste ponto de vista, por mais lamentável que seja, deve-se prever, de forma realista, que as guerras seguirão existindo no século 21. Mas é possível que os Estados mais poderosos se utilizem com mais frequência de instrumentos de guerra econômica, cada vez mais sofisticada, precisa e destruidora, antes de lançar mão da guerra clássica. Onde se fizer inevitável, entretanto, ela deverá fazer uso de exércitos e de armamentos cada vez mais robotizados, hipersônicos, quânticos e espaciais. Por isso, se ocorrerem, deverão ser multidimensionais, multiespaciais e absolutas.
Alguns analistas falam na volta da Guerra Fria e de uma Terceira Guerra Mundial. Faz sentido pensar nesses termos?
É comum a utilização de expressões antigas, para dar conta de problemas e perplexidades que são novos. O problema é que essas expressões antigas costumam esconder aquilo que mais se quer conhecer, ou seja, o novo, o imprevisto, o desconhecido, que os homens vão criando, num caminho aberto e sem nenhum propósito ou teleologia conhecida. A Guerra Fria foi uma competição bipolar, ideológica, geopolítica e econômica, de alcance global, entre duas superpotências atômicas que defendiam e propagavam dois modelos socioeconômicos e duas visões do mundo opostas e excludentes. Diferentemente disto, a configuração geopolítica do mundo atual apresenta pelo menos seis características que são muito diferentes daquele período do século passado.
Quais são as diferenças?
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, no final da Segunda Guerra Mundial, a carta de criação das Nações Unidas foi assinada por cerca de 60 Estados nacionais independentes. Mas, durante o período da Guerra Fria, entre 1946 e 1991, o sistema internacional expandiu-se aceleradamente, e hoje, na segunda década do século 21, existem cerca de 200 Estados nacionais independentes em todo o mundo, não importa qual seja seu grau de soberania relativa. Nesta expansão, cabe destacar o caso da China, que transformou sua civilização e seu império milenar num Estado nacional e numa economia capitalista, integrando-se plenamente no sistema interestatal capitalista criado pelos europeus, sobretudo depois do fim da Guerra Fria.
A segunda diferença: durante boa parte do período da Guerra Fria até os anos 1970, pelo menos, a China se manteve relativamente à parte do eixo central do conflito. Agora ela é a segunda maior potência econômica do mundo, já ameaça a liderança tecnológico-militar norte-americana e é considerada a principal adversária dos EUA. Mas, ao contrário da URSS no passado, a China contemporânea não se propõe a difundir ideologias ou religiões nem impor modelos de vida ou organização socioeconômica.
Terceira diferença: a Rússia voltou a ser uma grande potência energética e militar. Hoje disputa sua zona de influência imediata e o próprio Oriente Médio, movida exclusivamente por seus interesses nacionais, sem fazer ou propor nenhum tipo de proselitismo ideológico ou religioso.
Quarta diferença: os EUA abandonaram sua política do pós-Primeira Guerra Mundial de apoio e promoção ativa de valores, regras e instituições de governança multilateral. Adotam agora, como bússola de sua política externa, o modelo westfaliano de solução dos conflitos internacionais através da competição e do uso agressivo do poder econômico e da ameaça militar como instrumento de defesa dos seus interesses nacionais.
Quinta diferença: nessa disputa geopolítica e geoeconômica, ao contrário do período da Guerra Fria, os EUA e a China possuem uma profunda interdependência econômica. E a Rússia dispõe hoje de uma capacidade tecnológica de resposta atômica, caso seja atacada, superior à dos EUA.
Sexta diferença: essas três grandes potências que lideram a dinâmica expansiva do sistema mundial na segunda década do século 21 estão envolvidas numa luta sem quartel. Mas são orientadas pela mesma bússola comum do seu interesse nacional e do seu nacionalismo econômico. Aliás, é a mesma bússola usada por todos os Estados nacionais que algum dia se propuseram a subir na hierarquia do sistema mundial, ou que se viram desafiados e resolveram defender sua supremacia regional ou global.
Nesse momento, Rússia e China estão aliadas em torno do objetivo de impedir a supremacia unipolar dos EUA ao redor do mundo. Depois que se intensificaram, nos últimos anos, as divisões e a luta interna do establishment norte-americano, aumentou o poder político e decisório dos militares sobre a política externa dos EUA. Assim mesmo, não é necessário nem provável que a aliança entre China e Rússia dure para sempre. Pelo contrário, o mais provável é que o caleidoscópio geopolítico e geoeconômico do sistema internacional gire a partir de agora ao redor desse triângulo, com configurações variadas, mas movido por uma mesma competição aberta e sem limites que deve provocar um salto tecnológico e militar jamais vivido pela humanidade. Algo inteiramente diferente do que foi a Guerra Fria.
A crise capitalista iniciada em 2008 provoca desdobramentos políticos: insatisfações crescentes, migrações, retóricas nacionalistas e a ascensão da extrema-direita. É possível pensar em um cenário de contínua desagregação que leve a um aumento nos conflitos pelo mundo?
Do ponto de vista estritamente geopolítico e geoeconômico, a crise de 2008 foi de fato o ponto de partida de algumas mudanças fundamentais no cenário internacional. Eu destacaria pelo menos quatro, entre muitas outras:
1.O início de uma escalada do conflito de que estávamos falando, entre Rússia, China e EUA, em particular depois da posse dos presidentes Vladimir Putin e Xi Jinping, em 2012 e 2013, e ainda mais, depois da posse de Donald Trump, em janeiro de 2017. Foi exatamente nesse momento que os EUA decidiram abandonar todo o sistema de regras e instituições criadas a partir da Segunda Guerra Mundial – por iniciativa ou com o apoio decisivo dos EUA– com o objetivo de regular e arbitrar os conflitos internacionais. Nesse novo contexto, a guerra ou a ameaça da guerra volta ser o grande instrumento de resolução dos conflitos entre os Estados.
2. Por outro lado, a integração dos mercados e o controle financeiro global criado pelos EUA, a partir dos atentados de 11 de setembro de 2001, e a partir das reformas e regras criadas depois da crise financeira de 2008, provocaram uma concentração gigantesca do poder bancário e financeiro – dentro e fora dos EUA – nas mãos do Fed, o banco central americano.
3. Mesmo que não tenha sido esse o objetivo imediato e explícito das novas regras, elas centralizaram no Fed o controle das operações diárias do chamado money market, no qual todo o sistema de crédito e sua vasta rede de pagamentos são testados e resolvidos diariamente, envolvendo todos os recursos mundiais que circulam pelo mercado norte-americano e que estavam sob controle dos bancos privados antes da crise de 2018.
Ou seja, o tempo dos mercados que se autorregulavam ficou para trás, substituído pela atuação direta e planejada do Fed, que esvaziou até o poder dos bancos europeus e de seu sistema de pagamentos interno, incluindo o Banco da Inglaterra. Com isto, os EUA monopolizaram uma verdadeira arma de guerra, de enorme precisão e capaz de atingir pessoas, instituições e Estados, indiferentemente, até sua rendição ou destruição. É esta arma que tem sido utilizada nos últimos anos contra todos os países que se transformam em alvo da hostilidade norte-americana, como no caso do Irã, ou mesmo da Rússia.
4. No entanto, o uso do seu poder financeiro, pelos norte-americanos, tem estimulado e apressado a construção progressiva, por parte dos concorrentes, de mercados de moedas e circuitos financeiros paralelos. Mercados e circuitos que ainda são muito frágeis, mas que apontam de forma explícita para a constituição de um sistema monetário internacional paralelo ao do dólar, que hoje é controlado pelos EUA.
Isto será possível? Alguém já disse que uma superpotência pode ceder em quase tudo, menos no controle da moeda de referência internacional. Mas, nesse novo contexto mundial, é muito difícil prever, sobretudo por conta do poder econômico e da gigantesca paciência diplomática dos chineses.
Muito se fala da “guerra” comercial entre EUA e China. Quais devem ser seus desdobramentos? A China é hoje o principal inimigo dos EUA? O embate pode extrapolar a esfera comercial?
As guerras comerciais são um fenômeno muito antigo. Mas também neste caso o uso de uma expressão milenar esconde o que há de novo na situação atual. Na verdade, a China é hoje o principal concorrente econômico dos EUA, mas sua disputa não é apenas comercial, é uma disputa pelo controle da “ponta tecnológica”, sobretudo onde ela afeta de forma imediata o avanço militar, no campo da inteligência artificial, da computação quântica e da comunicação. Esta competição não se dá no campo do comércio, mas no campo dos grandes acordos de investimento e na montagem das cadeias produtivas envolvendo empresas de alta tecnologia e de múltipla nacionalidade. E se dá também no campo estrito da espionagem industrial, tecnológica e militar, e na guerra cada vez mais intensa que vem sendo travada pelo controle das redes de informação.
A disputa mais visível pelas tarifas e pelo acesso aos mercados nacionais da China e dos EUA pode diminuir de intensidade através de acordos passageiros, mas não existe a menor perspectiva de que os dois países e outros mais envolvidos nessa “guerra tecnológica” possam chegar a algum tipo de acordo definitivo. As tréguas passageiras não eliminam a competição que está em pleno curso, e aqui reside talvez o maior perigo de um conflito armado entre a China e os EUA, caso estes –que ainda estão na frente– decidam em algum momento cortar o caminho dos chineses provocando um enfrentamento antes de serem ultrapassados pela China, o que deverá acontecer em alguns campos cruciais, num período máximo de 10 a 15 anos.
No terreno militar, a Rússia voltou a ter peso no mundo. Como avaliar a continuação desse movimento e as reações de EUA e China?
Hans Morgenthau, pai da teoria política realista americana, escreveu, logo depois da Segunda Guerra Mundial, que a principal causa das guerras era a vontade de revanche das potências derrotadas e decididas a recuperar sua posição ou território perdido na guerra. Depois de 1991, a Rússia perdeu cerca de 5 milhões de quilômetros quadrados do seu território, e cerca de 150 milhões de habitantes, e esta talvez seja uma das causas que explicam a rapidez com que os russos se recuperaram de sua derrota na Guerra Fria, refizeram sua infraestrutura militar e atômica, recuperaram seu lugar como megapotência energética e voltaram a ser uma grande potência militar dentro do sistema mundial em apenas 15 anos.
Hoje, além do mais, a Rússia já ultrapassou os EUA no campo da disputa hipersônica, e por isso é a única potência do mundo capaz responder a um ataque militar dos EUA ou da OTAN em poucos minutos e de forma arrasadora. Sua fragilidade, entretanto, reside na sua economia, que não seria capaz neste momento de sustentar uma guerra prolongada contra os norte-americanos. Mas o mais provável é que a Rússia acabe alavancando seu desenvolvimento econômico a partir do seu próprio potencial energético e de sua luta para manter sua vantagem tecnológica alcançada em alguns campos de sua defesa militar.
Neste momento, a Rússia compartilha com a China várias inciativas econômicas e geopolíticas, e não é provável que os EUA consigam repetir a mesma estratégia – só que invertida – que seguiram na década de 1970, aprofundando as divergências entre os dois países e isolando a União Soviética até o limite de sua dissolução. Só que agora para isolar a própria China que lhes foi extremamente útil no século passado.
Uma das consequências do golpe no Brasil pode vir a ser o esvaziamento dos Brics. Como China, Rússia, Índia e África do Sul reagirão a esse novo desenho?
Num primeiro momento, com surpresa, evidentemente, diante de tamanha cegueira ideológica e econômica dos brasileiros. Mas de fato, para eles, isto afeta muito pouco suas economias nacionais. Quem sai perdendo neste assunto é o Brasil, e só o Brasil.
No livro, o sr. fala em “guerra ilimitada”: “um tipo de guerra que não envolve necessariamente bombardeios, nem o uso explícito da força, porque seu objetivo principal é a destruição da vontade política do adversário através do colapso físico e moral do seu Estado, da sua sociedade e de qualquer grupo humano que se queira destruir. Um tipo de guerra no qual se usa a informação mais do que a força, o cerco e as sanções mais do que o ataque direto, a desmobilização mais do que as armas, a desmoralização mais do que a tortura”. Lendo esse trecho, pensei no Brasil dos últimos tempos. É possível dizer que o Brasil é agora alvo dessa “guerra ilimitada”? Por quê?
Olhando retrospectivamente, talvez se possa considerar o caso da implosão da URSS, nas décadas de 1980/90, como um caso pioneiro da nova fase de desenvolvimento desse tipo de guerra. Mas não há dúvida de que este conceito e estratégia foram sendo aperfeiçoados nas últimas décadas, como uma forma de ataque e fragilização por dentro dos países adversários, sobretudo quando o objetivo é a mudança de governos e regimes considerados indesejáveis. Foi assim na Europa Central e nos países árabes, e em alguns casos da América do Sul.
Do ponto de vista dos EUA e de alguns países europeus, a Ucrânia foi sem dúvida o caso mais bem-sucedido de guerra híbrida que logrou mudar um governo que era aliado da Rússia e que se transformou no seu principal inimigo dentro da Europa central; enquanto que a Síria, do ponto de vista desses mesmos países, talvez seja seu maior fracasso.
Na verdade, hoje a Síria já se transformou no caso paradigmático de uma tentativa fracassada de mudança de regime e de governo que começou em 2011, durante a chamada “primavera árabe”, e logo se transformou numa guerra híbrida e numa guerra civil que desembocou, finalmente, numa guerra internacional, com várias potências externas utilizando-se de forças e grupos étnicos e religiosos locais, uns contra os outros sem que estes países tenham conseguido mudar o regime ou governo da Síria. Neste sentido, aliás, a Síria também se transformou no caso paradigmático de um governo que resistiu e venceu a luta contra a intervenção externa, independente do juízo que se faça sobre este governo. Mas isto ao custo da destruição quase total do país, meio milhão de mortos, um e meio milhão de feridos e 5 milhões de refugiados.
O sr. acha que foi isto que também aconteceu no Brasil, começando pelas manifestações de 2013?
Acho que qualquer analista internacional mais ou menos objetivo dirá que sim, que foi isto que aconteceu também no Brasil na segunda década do século 21, ainda que numa escala e numa intensidade muito inferior. Mas, assim mesmo, tudo indica que foi uma operação complexa, envolvendo vários atores externos, com o objetivo fundamental de interromper a série de governos petistas do país, mesmo que não tenha se proposto, desde o início, o final que veio a ter.
A ofensiva começou em 2012/2013, e sua aposta inicial foi na vitória eleitoral do sr. Aécio Neves, em 2014. Mas, logo depois da sua derrota, o projeto mudou de estratégia. Foi necessário improvisar um impeachment, que culminou na formação de um governo inteiramente inepto e corrupto — o grande responsável pelo aniquilamento do sistema político e do estado e pela destruição ética da sociedade brasileira. E não é improvável que esta debacle do governo Temer tenha sido acelerada pela derrota e a perda de apoio dos golpistas brasileiros, da parte do governo Obama, depois da derrota dos Clinton nas eleições presidenciais de 2016.
Depois disso, a estratégia inicial foi redesenhada, no estilo Trump/Bolton/Mattis, com o engavetamento do sr. Temer e a prisão e confinamento de tipo militar do ex-presidente Luiz Inácio da Silva. E, ainda assim, tudo indica que foi só depois da fragmentação definitiva das forças conservadoras tradicionais que se impôs um acordo do comando das Forças Armadas brasileiras com o sr. Bolsonaro, provavelmente no dia 7 de junho de 2018, um mês antes de ser sacramentada –com toda certeza– durante a visita do secretário de Defesa norte-americano, James Mattis, entre os dias 10 e 14 de agosto.
O resto da história é conhecido, ainda que muitas pessoas ainda se perguntem quem foi que organizou o famoso episódio da faca de Juiz de Fora, ocorrido no dia 6 de setembro de 2018. Uma pobre faca que conseguiu esconder durante dois meses, e até o fim da campanha eleitoral, um candidato a presidente da República adulto e com mais de sessenta anos, mas que, segundo seus médicos, não podia falar nem aparecer em público, para não se estressar. Algo impensável se não fosse pelo peso dos seus apoiadores, e pela complacência quase carinhosa da imprensa brasileira.
Isto posto, na sua opinião, qual será já agora, desta eleição de Bolsonaro para o Brasil e para o mundo?
Esta eleição e este governo recém-instalado não representam o fim, nem muito menos a solução da crise que o Brasil está atravessando. Pelo contrário, considero que a pantomima eleitoral e o governo teológico-militar que foi instalado no país fazem parte da própria crise que deverá durar muito, talvez uma década ou duas, antes que o Brasil consiga finalmente construir e definir sua identidade, sua nova forma de convivência interna, e junto com isto, seus verdadeiros objetivos nacionais e soberanos, dentro do sistema internacional.
E para o mundo?
Pelo que leio e vejo, o que mais espanta as pessoas mundo afora não é a verborragia e o direitismo raivoso dos novos governantes brasileiros, que não é original e é quase todo copiado de modelos externos. O que elas se perguntam é como foi que um grupo tão exótico e provinciano conseguiu chegar ao comando de um país tão grande e tão complexo, e com uma elite tão ciosa do seu cosmopolitismo. Até porque, de fato, às vezes parece que muitos membros do novo governo tiveram sua formação intelectual quase inteiramente limitada à sua convivência nos templos, nas academias de ginástica, e nos churrascos de amigos.
Por isto, o que os analistas internacionais se perguntam é como que estas pessoas conseguiram formar uma coalizão teológico-militar que foi capaz de ganhar uma eleição presidencial num país de 210 milhões de habitantes, para depois se colocar a serviço de um projeto econômico velho e ultrapassado, que já tem mais de 70 anos de fracassos comprovados e acumulados ao redor de todo o mundo. E que hoje está na contramão de tudo o que está sendo feito na economia mundial. Inclusive nos EUA de Donald Trump, que é considerado uma figura quase divina por alguns membros mais delirantes do novo governo. E o que é mais extraordinário: tudo isto, com o apoio de alguns militares que ainda se consideram nacionalistas.
Assim mesmo, por paradoxal que possa parecer, não é impossível que esta experiência brasileira possa provocar um efeito inverso, pelo menos dentro do mundo eurocêntrico, sobretudo por conta das dimensões do Brasil. Não é impossível que aconteça aqui o que já aconteceu muitas vezes, através da história, quando a exasperação de uma ideia até o limite da caricatura acaba provocando uma reação contrária, que pode ser, neste caso, das próprias elites que apoiaram este projeto em troca de algumas patacas imediatas, e que depois se dão conta das consequências de longo prazo de sua irresponsabilidade histórica.
Nesta história toda, qual o papel que o sr. atribui ao poder judiciário brasileiro, e à própria prisão de Lula?
Meu tema de estudo, há muitos anos, é o “poder”, independentemente das instituições que o exercem ou deixam de exercê-lo. E, deste ponto de vista, ninguém em sã consciência pode acreditar que aqueles rapazes e moças de Curitiba fizeram o que fizeram, por si mesmos, sem estar sustentados por um poder superior ao deles, e externo ao próprio poder judiciário. E tudo indica que esta mesma força que “empoderou” estes moços de província, tenha sido aquela que acovardou os senhores da alta cúpula do judiciário brasileiro.
Isto ficou muito mais claro, é óbvio, no caso do julgamento e prisão do ex-presidente Lula, até porque o objetivo central de toda esta encenação, ou melhor, desta guerra de poder, foi exatamente a eliminação ou exclusão da vida política brasileira do líder petista. Por que? Por todas razões que já foram abundantemente listadas por quase toda a imprensa internacional, e que eu me permito não repetir aqui. Mas, em particular, porque as forças que sustentaram o capitão, na fase final da sua campanha, sabiam que seria impossível elegê-lo, se Lula estivesse livre. E agora, estas mesmas forças temem que o sr. Bolsonaro não consiga manter a compostura e interpretar o papel de governante, caso o ex-presidente apareça na sua frente livre, e de volta à liderança da oposição brasileira.
O sr. avalia que o Brasil poderá ser instrumento dos EUA para intervir na Venezuela?
Tudo indica que esta seja uma boa razão para explicar o entusiasmo com que os EUA participaram, e seguem participando, dessa trama teológico-militar brasileira.
Num dos seus artigos do livro “Sobre a Guerra”, o sr. fala da uni-polaridade mundial depois do fim da Guerra Fria e diz que os EUA sofrem hoje de uma “síndrome de Babel”, havendo decidido abdicar de sua “universalidade moral”, abandonando o velho projeto iluminista. O sr. pode explicar melhor essa ideia e suas implicações?
O “mito de Babel” conta a história dos homens que se multiplicam, depois do Dilúvio, unidos por uma mesma linguagem e um mesmo sistema de valores, propondo-se a conquistar o poder de Deus através da construção da Torre. E conta como Deus reagiu ao desafio dos homens, dividindo-os e dispersando-os, dando a cada nação uma língua e um sistema de valores diferentes, de forma que não pudessem mais se entender nem se fortalecer conjuntamente. Depois disso, na sequência da mesma narrativa histórico-mitológica, Deus abre mão de sua “universalidade” e escolhe um único povo em particular, como porta-voz de seus desígnios, como instrumento de sua vontade e realizador de suas guerras contra todos os povos que ele mesmo criou no momento em que decidiu dividir e dispersar a humanidade primitiva, em Babel.
Pois bem, nossa hipótese neste artigo do livro é que o sistema mundial – os EUA em particular – está vivendo e enfrentando a mesma “síndrome” na segunda década do século 21. Expliquemos melhor: a unidade básica de poder do sistema mundial no qual vivemos ainda segue sendo o “Estado nacional”, com suas fronteiras claramente delimitadas e soberania reconhecida pelos demais membros do sistema. Como dissemos anteriormente, esse “sistema interestatal” se formou na Europa, mais ou menos entre 1450 e 1650, e desde seu “nascimento” se expandiu de forma contínua, para dentro e para fora da própria Europa, na forma de grandes “ondas explosivas” que ocorreram, concentradamente, nos séculos 16 e 19, e na segunda metade do século 20. Nesses períodos, o sistema estatal europeu conquistou e/ou incorporou o território dos demais continentes, impérios e povos, que foram aos poucos adotando as regras de convivência internacional estabelecidas pela famosa Paz de Westfália, assinada em 1648, após o fim da Guerra dos 30 Anos.
Como já dissemos numa resposta anterior, na segunda metade do século 20 esse sistema se universalizou. Contribuíram para isto o fim do colonialismo europeu e a independência dos Estados africanos e asiáticos. Nossa hipótese é que foi exatamente o sucesso dessa universalização e convergência normativa do sistema interestatal, junto com o aumento do poder e da unidade dos Estados que questionam a centralidade americana usando suas próprias regras de jogo, que começou a ameaçar o poder global norte-americano, obrigando os EUA a darem esta guinada de 180 graus anunciada por Donald Trump.
Desafiados nos seus próprios termos, os Estados Unidos decidiram abdicar de sua “universalidade moral” dentro do sistema. Mas isto não significa que deixaram de considerar que seus valores nacionais são superiores aos dos demais, nem mesmo que deixaram de se considerar um “povo escolhido” com direito ao uso unilateral do seu poder, através da força e da promoção ativa da divisão e da dispersão de seus concorrentes, e do boicote a todo tipo de blocos políticos e econômicos regionais que possa lhe fazer sombra ou ameaçar seu poder global.
Ou seja, os Estados Unidos se assumem como um “povo escolhido” e ao mesmo tempo abdicam de sua “universalidade moral”, com o objetivo de consolidar sua condição ou pretensão a um “império militar” de escala global. Ou, pelo menos, essa é a hipótese que defendemos no referido artigo do livro. Uma hipótese histórica e de longa duração que não exclui outras formas de olhar para esta mesma mudança da estratégia norte-americana.
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Acordo tripartite que abriu caminho para Bolsonaro. Entrevista com José Luís Fiori - Instituto Humanitas Unisinos - IHU