Por: André | 19 Setembro 2014
No contexto da atual conjuntura mundial, “o colapso econômico pressente-se próximo e os grandes poderes transnacionais vão afagando a opção militar como cada vez mais ‘necessária’”, escreve Andrés Piqueras, professor de Sociologia da Universidade Jaume I de Castellón, em artigo publicado no jornal espanhol Público, 11-09-2014. A tradução é de André Langer.
E termina o artigo perguntando: “Os grandes falcões dos Estados Unidos estão dispostos a levar uma guerra devastadora à Europa. Eles têm sua lógica e razões. Mas os líderes europeus, quais são suas razões para continuarem esse terrível jogo suicida?”
Eis o artigo.
Na dramática conjuntura mundial que temos pela frente, confluem dois processos de enorme gravidade. Por um lado, a Segunda Grande Crise do capitalismo, que se arrasta com altos e baixos desde a década de 1970 e que parece não encontrar caminhos para a retomada do capital produtivo (razão pela qual o sistema empreendeu esta louca deriva financeira). Por outro lado, o colapso da hegemonia econômica dos Estados Unidos e o consequente declínio do dólar como moeda de troca internacional.
Diante disso, a hegemonia mundial enfrenta e oferece ao mundo duas possibilidades: 1) ou uma coordenação com as potências asiáticas na busca de uma moeda internacional participada por diferentes moedas nacionais, e inclusive materializada com relação ao ouro ou alguma fonte de energia como o petróleo, ou 2) declarar guerra contra boa parte do mundo para manter a liderança dos Estados Unidos, graças ao poderio militar.
A primeira opção na realidade está bastante afastada, pois supõe não apenas a ilusão de relações internacionais baseadas na cooperação, senão que o descontrole financeiro e a geração de capital fictício a que chegou o capitalismo torna cada vez mais difícil a conexão entre a dinâmica de acumulação financeira atual e a economia real. Sendo assim, o colapso econômico pressente-se próximo e os grandes poderes transnacionais – a potência mundial que os sustenta e os Estados de segunda fila a ela subordinados, com os da União Europeia (de agora em diante chamados como assistentes) – vão afagando a opção militar como cada vez mais “necessária”.
Vejamos. Onde esses poderes intervieram até agora semearam a destruição e deixaram o caos atrás de si. O Grande Plano na Ásia Central e Ocidental, assim como também em grande parte da África, consiste em esquartejar os Estados não dóceis, de maneira que atrás não resta nada parecido a uma institucionalidade central que possa ter um controle do território, populações e recursos. Terras arrasadas nas mãos de “senhores da guerra”, muitas vezes destacando como principal poder a Al Qaeda ou alguma de suas ramificações. Territórios barbarizados sem Estado (Iraque, Afeganistão, Líbia, Somália, Congo, República Centro-Africana...). Em quase todos eles ganha cada vez força, como não podia deixar de ser de outra forma diante da destruição das sociedades civis, o chamado “islamismo radical”. Esta é a manifestação mais palpável hoje do fascismo transnacional, e foi possibilitado quando alimentado e muitas vezes ajudado a criar-se pelas potências autodenominadas “ocidentais”, ou alguns de seus mais diretos “aliados”, como Israel ou os países do Golfo, especialmente a Arábia Saudita (ver o magnífico livro de Gilles Kepel, Jihad. Expansão e declínio do islamismo), certamente este último país continua financiando o Estado Islâmico (também não se deve perder de vista os artigos de Nazanín Armanian neste mesmo jornal), enquanto que os amigos “ocidentais” dizem agora combatê-lo.
Os Estados Unidos descobrem “de repente” a maldade do Estado Islâmico (mostrando-nos todo tipo de imagens e notícias assustadoras a este respeito) para reordenar geoestrategicamente a zona. O apoio aos curdos iraquianos objetiva a divisão do Iraque em pequenos Estados dependentes (à imagem do que se fez na Iugoslávia), enquanto que os bombardeios seletivos estadunidenses são realizados nas zonas em que se encontram os oleodutos e fontes de petróleo, para que nenhum grupo armado lhes tire a exclusividade da usurpação. Também pretende legitimar-se um corredor de bombardeios sobre a Síria, atacando por fim de forma direta o Exército sírio, dado que parece que seus exércitos privados e os milhares e milhares de mercenários treinados, apetrechados e financiados por ele mesmo e os assistentes (mais a Arábia Saudita e outros países do Golfo), não se bastam por si mesmos. Esses fascistas transnacionais “comeram” há tempo a verdadeira oposição síria, e realizam na prática a incumbência que o fascismo sempre teve: ser o elemento de choque do capital contra as forças populares, o cavalo de batalha daquele para a destruição social.
Por isso, hoje a Síria é um dos lugares chaves onde se joga o destino contra as forças de destruição fascistas, cujo objetivo passa igualmente pelo esquartejamento do Estado sírio (e com isso de passagem, cortam-se os oleodutos que chegam da Ásia central ao Mediterrâneo, nos quais está implicada a Rússia). Derrubada a Síria, Israel ficaria praticamente como o único Estado na zona (além das bárbaras monarquias do Golfo, aliadas). É o projeto do Grande Israel como dono de toda a Ásia Ocidental.
Outro lugar vital onde se joga a luta contra o fascismo transnacional é a Ucrânia.
Enquanto os nossos doutrinadores meios de difusão de massas insistem em nos proporcionar imagens de russos malvados, o certo é que na Ucrânia houve um golpe de Estado contra o presidente eleito nas urnas, com grupos financiados pelos Estados Unidos e assistentes e com o apoio das organizações nazistas locais. Assim, se na Europa fez necessário uma Guerra devastadora e cerca de 60 milhões de mortos para nos livrarmos do nazismo, os Estados Unidos no-la trouxeram de volta novamente em poucas semanas (cortesia do “país da Liberdade”).
Com isso, os Estados Unidos tratam de separar a Europa da Rússia (com a obsessão, além disso, de dividir a Rússia da sua enorme reserva energética – na realidade a grande reserva do mundo – a Sibéria), assim como colocar a ameaça militar nas próprias portas de Moscou. Este caminho leva a Europa, por sua vez, a ficar “isolada” do mundo asiático em crescimento e ancorada ao obstáculo dos países anglo-saxões em decadência. Ao contrário, uma integração ou coordenação com a Rússia, como muito bem sabe a classe capitalista alemã, poderia proporcionar de sobra à Europa a energia de que tanto necessita, a via dos mercados asiáticos, assim como segurança militar (os europeus não necessitariam realizar esses enormes gastos com armamentos propostos pelos Estados Unidos).
Isto para não mencionar a própria Ucrânia, onde o Tratado de Livre Comércio com a Europa, que por um mínimo de dignidade o presidente eleito, Yanukóvich, negou-se a assinar, acabará de desfazer uma economia já em estado de coma: desastrosas semeaduras de primavera, cultivos de vegetais arruinados, quase total falta de crédito, graves problemas com o gás, aumento vertiginoso dos preços dos carburantes. Ninguém está dando nenhuma ajuda econômica à Junta de Kiev, apesar das promessas do Fundo Monetário Internacional e da União Europeia. A condição para isso é que “tenha o controle de todo o seu território”. É, por isso, muito provável que logo vejamos autênticos levantamentos populares nesta República.
A Rússia, por sua vez, aguenta como pode o aguaceiro. E mesmo que seja por seus próprios interesses, enfrenta o fascismo transnacional na Europa (fascismo ocidental – cristão) e na Ásia (fascismo oriental – islâmico). Conseguiu, por enquanto, frear suas vitórias na Ucrânia e na Síria e colabora há algum tempo com o que resta do Estado do Iraque no combate ao fascismo islâmico (tente-se comparar também o Afeganistão que existia aliado da antiga URSS e o atual, após a intervenção do “Ocidente”).
Não se trata de uma relação de “bons e maus” (a Rússia é hoje um país capitalista a mais), mas de chaves geoestratégicas que estão ligadas a questões chaves. Enquanto as economias dos Estados Unidos e assistentes vão perdendo ancoragens de dominação e se veem mais e mais necessitadas dos recursos alheios, a Rússia e a China manejam juntas a maior parte dos recursos do mundo e suas economias, no momento, têm melhores perspectivas de futuro. É por isso que alguns estão interessados na guerra global e outros não. Exatamente o contrário do que nos mostram os nossos meios de intoxicação de massas. Por isso é imprescindível situar-se dentro desses parâmetros em cada conflito. Por isso é fundamental, na luta contra o fascismo, manter o cessar-fogo na Ucrânia; e, por isso, os Estados Unidos e assistentes farão de tudo para boicotá-lo.
A Rússia e a China não cessam de estabelecer entre si diferentes acordos e convênios, assim como de expandir suas redes nos grandes mercados asiáticos, construindo o principal núcleo econômico do mundo. A Organização de Cooperação de Xangai é apenas um exemplo disso.
Pelo contrário, em casa, cada vez parece mais certo que se não mudar radicalmente o rumo econômico e político, logo sofreremos outro cataclismo financeiro, e preparem-se porque desta vez os Estados já consumiram todos os botijões de dinheiro que tinham para apagar o fogo (e transferir o nosso dinheiro para o mundo financeiro-bancário e, em conjunto, ao Grande Capital).
Os grandes falcões dos Estados Unidos estão dispostos a levar uma guerra devastadora à Europa. Eles têm sua lógica e razões. Mas os líderes europeus, quais são suas razões para continuarem esse terrível jogo suicida?
Diante do fascismo transnacional que recruta população lumpenizada sem cessar, onde ficou o internacionalismo dos povos?
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O fascismo transnacional e o demônio russo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU