12 Dezembro 2018
O aplicado gestor racional, viciado em planejamentos fidedignos, cedeu diante da emoção mais genuína de seu país: a raiva popular. O Rei não perdeu seu trono, mas, sim, sua estabilidade. A rebelião dos coletes amarelos contra a reforma tributária do diesel colocou fim à ilusão de que um país poderia ser administrado como um banco ou um organismo financeiro. Assim como em 1789, ano da Revolução Francesa, a revolta de 2018 tem como sinal uma veste: coletes amarelos.
A reportagem é de Eduardo Febbro, publicada por Página|12, 11-12-2018. A tradução é do Cepat.
Em 1789, o núcleo do exército que impulsionou a Revolução que derrubou a monarquia era chamado de sans-culottes, os “sem calções”. Na França do Século XVIII, os nobres e os burgueses usavam ‘cullotes’, os pobres não. Vestiam-se com calças listradas e isso os distinguia claramente da aristocracia. Os sem calções decapitaram a ordem monárquica e, no Século XXI, os coletes amarelos retiraram Emmanuel Macron do trono.
Os sem calções da Revolução francesa eram artesãos, operários e camponeses. Os coletes amarelos são artesãos, pequenos comerciantes, microempresários, agricultores e trabalhadores diversos. Não é exatamente o mesmo povo, mas, sim, a mesma exigência: o fim da acumulação de riquezas e privilégios fiscais nos bolsos de uma minoria, o fim de um modelo onde a sociedade de baixo paga pela de cima. A Revolução Francesa configurou nossa modernidade. É legítimo, então, perguntar-se: o que anuncia esta insurgência popular dos coletes amarelos para um mundo milimetricamente controlado pelos analistas financeiros, a especulação, a desigualdade, os algoritmos e os oportunistas espiões da internet que roubam à vontade as intimidades dos perfis humanos?
Os coletes amarelos se vestiram com a cor de todos: ricos ou pobres, com carros de luxo ou modestos, o colete é obrigatório em cada veículo, desde a lei de 2008. Com sua roupa, transcenderam a divisão de classes. As referências à monarquia de antes da Revolução Francesa são constantes em suas denúncias e grafites. “Fora o Rei Macron”, diz um grafite pintado em uma das ruas adjacentes aos Campos Elísios. Na Praça da Bastilha, outro slogan: “não é possível apertar o cinto e abaixar as calças ao mesmo tempo”.
“Macron é um Rei e acabará decapitado como os reis”, afirma Murièlle, uma pedicure do sul do país, ex-eleitora de Macron. Esse perfil abertamente insurgente contra a casta acendeu todas as ilusões dos movimentos políticos opostos. A esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon viu neste protesto a premissa da revolução cidadã com a qual sonha seu movimento. A extrema-direita de Marine Le Pen enxergou a rota da insurreição contra o sistema globalizado que nos governa. Cada um apresentou o seu, entre o Che e Mussolini.
De Bruxelas, onde está preparando “a internacional populista”, o ex-conselheiro de Donald Trump, Steve Bannon, saiu dizendo: “os coletes amarelos são exatamente o mesmo tipo de pessoa que elegeu Donald Trump e votou em favor do Brexit. É um conflito mundial”. Também não faltou o próprio Trump. Em um Twitter, o presidente norte-americano disse: “as pessoas estão gritando que querem Trump”.
Eles, os autênticos protagonistas, permanecem inclassificáveis e, até agora, irrecuperáveis politicamente. O amarelo de seus coletes juntou todas as correntes em um mesmo fluxo. Não são a favor de um modelo, de uma ideologia, de um partido político, mas contra este modelo. Não vieram propor outra coisa: rebelaram-se contra estas coisas que os submetia à desigualdade tributária. A insurgência foi suculenta e violenta e se articulou em torno de uma única figura: Emmanuel Macron.
Nas eleições presidenciais de 1995, o ex-presidente conservador Jacques Chirac ocupou o imaginário político com um diagnóstico implacável extraído do pensamento da esquerda: a fratura social. Quase um quarto de Século depois, Macron, com suas medidas desiguais e seu estilo depreciativo às questões populares, pagou o preço dessa fratura. A realidade oferece com generosa eloquência uma leitura singular. Todos estavam dormindo: nem o centro, nem a direita, nem a socialdemocracia, nem a extrema-esquerda ou a ultradireita, nem os meios de comunicação, ninguém adivinhou que na infinita galáxia social havia uma estrela a ponto de explodir. Hoje, todos correm atrás de sua luz.
Os novos sem calções não viviam retirados do mundo em seus campos e sua França provincial. Eram os residentes menos atendidos da fratura social. Saíram de sua fratura para fraturar a base injusta da construção social em curso. Primeiro, surgiram do pior inimigo da democracia, as redes sociais. Seus três personagens iniciais oferecem um retrato de sua composição social.
A explosão original foi ativada no último 10 de outubro por Eric Drouet, um caminhoneiro que foi protestar no Facebook contra a alta do combustível. Uma semana depois, acompanhou-lhe uma hipnoterapeuta, Jacline Mouraud, que denunciou nas redes “a caça” contra os automobilistas. Quatro dias depois, em Change.org, uma microempresária de 30 anos, Priscillia Ludosky, lançou uma petição contra o preço dos combustíveis. A pólvora acendeu na sequência: mais de um milhão de adesões para Drouet, Jacline Mouraud recolheu seis milhões e meio e Priscillia Ludosky cerca de um milhão e meio. Em dez dias, os grupos explodiram no Facebook. Foram criados quase 300 grupos de apoio, que já totalizam mais de três milhões de usuários.
Os partidos políticos e o governo não os viram chegar. Os bloqueios das estradas começaram quase no anonimato. O primeiro aconteceu no dia 17 de novembro. A raiva contra a tributação ecológica aplicada aos combustíveis, que equiparou o preço do diesel, mais barato, com o da gasolina comum, juntaram-se outras reivindicações mais políticas como o questionamento global do sistema, a denúncia da desigualdade, os cortes das aposentadorias ou a perda do poder aquisitivo.
No dia 27 de novembro, já com as pessoas nas ruas, Macron disse: “acredito que podemos transformar a cólera em solução”. A raiva acabou transformando-o. Agora, começará a furiosa etapa da recuperação deste movimento. Os populismos de extrema-direita descobriram um capital eleitoral que desconheciam. A esquerda radical captou que os coletes eram uma entrada para o mundo popular que, em grande parte, ainda os rejeita. Dos sem calções, em 1789, aos com coletes no Século XXI.
A França abraçou a cor amarela e nesse meio surgiu a temática ecológica e a pergunta: quem paga pela proteção do planeta? Macron transferiu o custo para as classes médias baixas. Estas lhe responderam com um não categórico. E os grandes ricos, e as indústrias poluidoras? Essa é, em nosso planeta comum, a questão e o desafio mais decisivo que os coletes amarelos apresentaram à França e ao mundo.
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A veste da rebelião. Os "sans-culottes" ontem, com os "gilets jaunes" hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU