Por: Vitor Necchi | 23 Março 2018
Em uma noite na qual seria discutida a violência contra quem vive ou trabalha fora dos espaços urbanos, a referência a um assassinato cometido em uma metrópole marcou o início das atividades. O professor Fernando Ferreira Carneiro pediu um minuto de silêncio em memória da vereadora Marielle Franco, executada a tiros em 14 de março, no Rio de Janeiro. “Ela não é uma pessoa qualquer. É uma mulher que emergiu da Favela da Maré, se formou em sociologia, fez mestrado, conseguiu se eleger sem esquecer sua base, sendo coerente com os princípios da defesa dos direitos humanos”, salientou. Para Carneiro, ela defendia não apenas jovens e mães cujos filhos morreram, mas também famílias de policiais que perderam seus entes nesta guerra. “E ela foi brutalmente silenciada neste contexto da intervenção e do estado de exceção que temos vivido principalmente após o golpe em 2016.”
A homenagem antecedeu a conferência Múltiplas faces da violência contra as populações do campo, floresta e das águas e as alternativas democráticas, proferida na noite de terça-feira. O evento integra o Ciclo de estudos e debates: Violências no mundo contemporâneo. Interfaces, resistências e enfrentamentos, promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Conforme Carneiro, o desafio para a saúde pública nos anos 1980 era combater a mortalidade infantil, cujos índices se assemelhavam aos da África. No momento, o desafio é enfrentar a violência. O número de pessoas que morrem no Brasil em decorrência da violência é maior do que na Síria, que está em guerra. “Vivemos uma situação praticamente de guerra, uma epidemia, gerando traumas, mortes, insegurança, e isso faz mal à saúde”, alertou. “É um tema intersetorial que quem não é especialista vai ter que entender um pouco. Somente uma grande rede de intelectuais e ativistas é capaz de enfrentar isso. Não dá para deixar apenas com os especialistas.”
A primeira imagem que Carneiro apresentou em sua conferência ainda estava relacionada a Marielle. Sobre a fotografia de uma manifestação ocorrida na Cinelândia que reuniu milhares de pessoas protestando contra a execução da vereadora, constava a frase “Quiseram te enterrar, mas não sabiam que era semente”. Em seguida, introduzindo o tema da noite, resumiu em três eixos sua fala: determinação social da violência em sua relação com a saúde; a violência no campo, na floresta e nas águas; e a violência contra as mulheres.
Ao tratar da determinação social da violência, Carneiro disse que ela decorre de múltiplas faces, de condições socioeconômicas, culturais e ambientais. Há fatores que estão no plano individual, associados a idade e sexo, por exemplo, que impactam a vulnerabilidade das pessoas. Isso passa também pelos estilos de vida, pelo plano das comunidades e suas redes sociais, que fazem com que uma pessoa seja mais vítima de violência do que outra. “Temos vários níveis de violência, até chegar à estrutural, à violência de Estado, à violência de grandes corporações”, explicou.
Há quem simplifique e reduza a violência, culpabilizando o plano individual. Para exemplificar essa situação, Carneiro lembrou das mulheres que são responsabilizadas pela violência que sofrem por usar minissaia, sem que a responsabilidade recaia sobre a sociedade machista e patriarcal. “Ao analisar cada caso de violência, devemos entender os diversos níveis de complexidade, que são determinantes para entender os contextos geradores”, ressalva.
Carneiro anunciou que trataria não da violência nas cidades, mas da que atinge uma parcela invisibilizada, a chamada população rural que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, representa em torno de 17% dos habitantes do país. Ele destacou que se estima haver uma grande subestimação desse dado, pois são as câmaras de vereadores que determinam os extratos populacionais considerados rurais e urbanos. A arrecadação de impostos é maior em zonas urbanas, e isso explica a tendência de se diminuir o reconhecimento da porção rural dos municípios. Há projeções de que o índice mais fidedigno chegue a 35% ou 40%.
Partindo dos dados do IBGE, Carneiro destacou que municípios onde a população rural predomina em mais de 50% da área se concentram principalmente nas regiões Nordeste, Norte e Sul. Nelas ocorre a expansão das fronteiras agrícolas no Brasil e, ao mesmo tempo, se verifica a maior incidência de desmatamento e de mineração. Neste contexto, as populações rurais do Norte e do Nordeste são consideradas empecilhos ao desenvolvimento.
A chamada população do campo, da floresta e da água é formada pelos povos e pelas comunidades que têm seus modos de vida, de produção e de reprodução social relacionados predominantemente com o campo, a floresta, o ambiente aquático, a agropecuária e o extrativismo. Entre eles, estão camponeses, agricultores familiares, trabalhadores rurais assalariados e temporários que residam ou não no campo, trabalhadores rurais assentados e acampados, comunidades de quilombolas, populações que habitam ou usam reservas extrativistas, populações ribeirinhas, populações atingidas por barragens e outras comunidades tradicionais.
Em 2003, os movimentos sociais que representam essas populações começaram a debater ativamente com o governo federal políticas de saúde, que foram aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde em 2008, mas acabaram publicadas apenas em 2011. Trata-se da Portaria Nº 2.866, que instituiu, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), a Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (PNSIPCF).
No início dos debates, essas populações eram chamadas “do campo”, mas a denominação foi questionada pelos extrativistas, os “herdeiros de Chico Mendes”, conforme Carneiro. Eles não se consideravam rurais, nem camponeses. Alegavam que se a floresta fosse derrubada, o trabalho deles perderia sentido. Ao se dizerem extrativistas, afirmavam que precisavam da floresta em pé. Portanto, se intitulavam “povo da floresta”. Chegou a ser cunhado o termo florestania, em alternativa a cidadania que, no entendimento deles, se refere a quem vive na cidade. Isso impactou o debate e as políticas decorrentes.
Perto de 2010, mulheres pescadoras e marisqueiras disseram que não eram rurais, nem da floresta. Consideravam-se “mulheres da água”, o que levou a nova atualização das categorias e da política, que passou a se chamar Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas. Imbuídos do mesmo princípio, os participantes da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (Confrem) diziam que eles não têm território, mas maretório. “Esses conceitos não vieram da academia, mas dos movimentos sociais”, destaca Carneiro.
Em atenção ao tema da conferência, a violência enfocada se refere à população que não vive nas cidades. Parte dos dados apresentados por Carneiro provêm do relatório Conflitos no Campo Brasil 2016, da Comissão Pastoral da Terra – CPT, que desde a década de 1980 sistematiza os dados relativos à violência no campo e, desde 2002, os conflitos por água também.
Carneiro explicou que o relatório apresenta, de forma sintética, os retrocessos em curso e que se acentuaram a partir do golpe de 2016. Há um conjunto de medidas provisórias, projetos de lei, propostas de emenda constitucional e decretos que afetam diretamente povos e comunidades do campo. Além disso, foram nomeadas para altos cargos pessoas abertamente contrárias aos direitos dos povos indígenas, quilombolas e outras comunidades camponesas.
“Por exemplo, na Funai [Fundação Nacional do Índio] estão militares contrários aos índios, e no Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], latifundiários contrários à reforma agrária”, critica. “São os lobos tomando conta dos cordeiros.” Outro fato que agravou a situação foi a extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que cuidava dessas agendas. “Era mínimo, mas pelo menos havia onde bater na porta.” E à frente do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento está o maior produtor de soja do mundo, Blairo Maggi.
O governo Temer ainda extinguiu ministérios e autarquias que deviam se preocupar com os direitos humanos e diminuiu os recursos para órgãos responsáveis por garantir algumas políticas sociais, entre eles o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, do Ministério do Trabalho e Emprego, que fiscaliza trabalho escravo. Segundo as estatísticas, esse crime diminuiu. Para Carneiro, o que diminuiu, na verdade, foi o combate.
O professor citou ainda a violência cometida pelo Estado e o bloqueio na mídia de informações relativas a esses povos. Isso se expressa em mandados judiciais que enquadram movimentos sociais como organizações criminosas (Lei 12.850/2013), na atribuição da responsabilidade pelo conflito às vítimas de agressões e a tentativa de desqualificação das vítimas.
O resultado desse cenário são números preocupantes. Em 2016, o relatório da CPT apontou 61 assassinatos, mais de cinco por mês – nos últimos 25 anos, apenas em 2003 essa marca foi ultrapassada, com 73 assassinatos. Outros dados que constam do documento: nesse ano, houve 1.079 ocorrências de conflitos por terra (o número mais elevado nos 32 anos de registros da CPT), 172 conflitos por água (maior número desde 2002, quando a CPT iniciou esse tipo de registro) e 1.536 conflitos no campo (categoria mais abrangente do que o por terra).
Carneiro apresentou os dados da violência em alguns biomas. Na Amazônia, onde está 12% da população brasileira, ocorrem 57% dos conflitos. No Cerrado, estão 24,1% das localidades envolvidas em conflitos. “O que está em jogo é a pilhagem, a usurpação dos recursos naturais presentes nesses territórios por meio de desmatamento ilegal, mineração clandestina, hidrelétricas – somente no rio Tapajós estão previstas mais de cem – e hidrovias”, esclarece.
Para dar uma ideia da expansão do agronegócio, o professor informou que o Cerrado é responsável por 57,1% da produção da soja no Brasil. Outro dado refere-se aos aquíferos, pois é sobre esses imensos reservatórios subterrâneos de água que o agronegócio cresce. “Quando exportamos soja, exportamos água também”, destaca. Somente o Brasil detém 12% da água doce do planeta, e culturas como da soja e do milho exigem uso intensivo desses mananciais. A irrigação para agricultura é responsável pelo consumo de 70% da água do Brasil. “Não é coincidência que as grandes corporações estejam de olho nos aquíferos subterrâneos”, alerta.
Ao tratar da violência (sexual, doméstica e outras) contra as mulheres residentes em áreas rurais, Carneiro trouxe dados sistematizados pelo Ministério da Saúde, que passou a tratar a notificação dessas agressões como obrigatórias. Onde houve o maior registro de agressões foi em Brasília. Ao analisar o dado, Carneiro reconheceu a dúvida se de fato lá houve mais agressões ou, por outro lado, as mulheres estão mais empoderadas e têm mais recursos para denunciar. As estatísticas são muito altas também em São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Acre.
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea realizou uma pesquisa com as cerca de 700 mulheres rurais ligadas à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – Contag que participaram da edição de 2011 da Marcha das Margaridas. O intuito foi tentar entender a razão da violência contra elas. A primeira pergunta tratou de violência moral: 58% das mulheres disseram que já sofreram ameaças, xingamentos e insultos; 39% sofreram caladas; 31% denunciou. Em 35% dos casos, a violência foi cometida pelo cônjuge; em 8%, ocorreu dentro do próprio movimento social. Ao serem questionadas se já se sentiram desrespeitadas em um serviço público ou em seu direito, 56% responderam sim. A expulsão de casa ocorreu com 11% delas, e 6% declaram que já foram mantidas presas.
Ao apontarem as causas das violências sofridas, as mulheres indicaram machismo (29%), alcoolismo (19%), a certeza da impunidade (16%) e a sensação de que elas são culpadas (9%). Apenas 46% das mulheres rurais conhecem, em seus municípios, algum serviço que as apoie em caso de violência. Entre as urbanas, o índice é de 58%.
Os dados apresentados na conferência pareceram mais graves quando Carneiro citou algumas declarações das mulheres entrevistadas. Uma delas dormia no galinheiro para fugir da violência do marido. Outra sofreu calada durante 23 anos. Uma outra sofreu agressões, tapas, socos e ameaças com arma de fogo durante 15 anos, na frente dos oito filhos, e seu martírio durou até o momento em que teve coragem para relatar os fatos a uma enfermeira e conseguir sair desse ciclo de sofrimento. Os relatos são pungentes: “Meu marido me agredia com revólver e faca enquanto eu segurava os filhos nos braços”, “Tenho uma filha fruto de um estupro pelo cônjuge, e contei a ela o que aconteceu”, “Eu tive que tirar uma trompa e um ovário por causa de uma DST contraída por conta de violência sexual cometida pelo meu cônjuge”.
Se Carneiro começou sua conferência acerca das violências cometidas contra populações do campo, da floresta e das águas homenageando a vereadora Marielle, terminou citando um provérbio africano: “Sozinho vou rápido, juntos vamos longe”.
Fernando Carneiro | Foto: Susana Rocca
Fernando Carneiro é graduado em Ciências Biológicas pela UniversidadeFederal de Minas Gerais – UFMG, especialista em Vigilância em Saúde Ambiental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Ciências da Saúde pelo Instituto Nacional de Salud Pública de México e doutor em Epidemiologia pela UFMG. Realizou estágio pós-doutoral no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Foi consultor dos ministérios do Meio Ambiente e da Saúde e servidor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Coordenou a área de Epidemiologia Ambiental da Secretaria de Saúde de Minas Gerais e foi coordenador geral de Vigilância em Saúde Ambiental do Ministério da Saúde. Foi professor e chefe do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade de Brasília – UnB. Atualmente é pesquisador da Fiocruz Ceará.
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