12 Agosto 2017
"Até hoje, nenhum caso teve solução e os mandantes dos crimes continuam impunes" escreve Sucena Shkrada Resk, jornalista, em artigo publicado por EcoDebate, 11-08-2017.
A rota da violência no campo no estado de Mato Grosso entre 1985 e abril de 2017, transita do trabalho escravo a vítimas fatais. Resultou em 136 mortes, em 46 dos 141 municípios, e 87 tentativas de assassinato, como destaca levantamento feito pela Comissão da Pastoral da Terra (CPT). Entre as vítimas, estão principalmente camponeses, posseiros, assentados, lideranças religiosas e sindicais, indígenas e quilombolas. Até hoje, nenhum caso teve solução e os mandantes dos crimes continuam impunes. Nos últimos três anos, a situação tem se agravado e em 2017, o quadro ficou ainda pior com a chacina de nove trabalhadores rurais, na gleba Taquaruçu do Norte, em Colniza, a 1.065 km de Cuiabá, no dia 19 de abril deste ano.
Neste período, foram nove chacinas, com 55 mortos, principalmente nas regiões norte e noroeste do estado. Além de Colniza, em Alta Floresta, Aripuanã, Jauru, Juína e Terra Nova do Norte. Até o ano passado, foram denunciados 8.547 casos de trabalho escravo ou análogo no estado.
“Quando existe iminência de morte o estado deveria agir para resolver o conflito de terra”, cobra Inácio José Werner, coordenador do Projeto Fóruns de Incidência Socioambiental e Garantia de Direitos do Centro Burnier Fé e Justiça. Segundo ele, em especial na região Norte, acontece a morosidade principalmente da Justiça Federal, quanto a sentenças de áreas devolutas; e na competência do estado, da Vara Agrária”, avalia.
O que se tem observado desde 2015, é que os grupos mais vulneráveis são os de sem-terra e de quilombolas. Houve uma ascendência de casos, na Baixada Cuiabana e na região sul do estado.
Givânia Maria da Silva, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), avalia que esta violência (contra quilombolas) no campo está ocorrendo em MT e em outros estados do Brasil, de forma progressiva.
“Recentemente duas lideranças foram mortas na BA, e há pouco mais de um mês, outras duas vítimas também no PA. Isso é fruto da ausência de ação que já era tímida com relação à reforma agrária e reconhecimento do território quilombola. Se antes a gente reclamava que até 2015, andava a passos lentos, agora não há passo nenhum. Os trabalhadores são mortos e há uma impunidade, pois não se apura e não se investiga. Isso tem demonstrado que no Brasil não está sendo realizada, de fato, a justiça para proteger os trabalhadores do campo e das periferias das grandes cidades”, diz. Em todo o Estado, atualmente há 70 comunidades quilombolas reconhecidas e três tituladas.
Segundo levantamento realizado pela CPT, entre o período de 1995 e 2016, ocorreram em MT, 837 casos de violência no campo, envolvendo 162.986 famílias, relacionados à ocupação e posse. Cristiano Cabral, coordenador regional da CPT, em Mato Grosso, explica que é importante diferenciar que há dois tipos de violência associados. “Nas regiões, em que o capital tecnológico não chegou, é predominantemente física; já nas mais desenvolvidas, como Sorriso, Sinop e Rondonópolis, é jurídica”, compara.
No mesmo período, ocorreram as denúncias de 8.547 casos de trabalho escravo ou análogo no estado. “Como existe um processo migratório, avaliamos que estes números estão subdimensionados, pois muitos casos não estão registrados nas estatísticas”, afirma Cabral. As vítimas que sofrem ameaças também ficam à mercê da incerteza. “Não existe serviço de proteção oficial no estado. A burocracia é muito grande. Ao mesmo tempo, retirar toda a identidade de uma pessoa também é uma violência emocional”, acrescenta.
De acordo com dados do Ministério do Trabalho e da CPT, entre 1995 e 2014, cerca de 6 mil pessoas foram libertadas da escravidão em Mato Grosso. O estado foi o segundo no país (em números de vítimas) depois do Pará, com aproximadamente 12,8 mil pessoas libertadas.
O Fórum dos Direitos Humanos da Terra, em Mato Grosso, criado no ano de 2011, com cerca de 30 organizações não governamentais, tem apontado por meio de relatórios, de dois em dois anos, a situação de perdas neste contexto. Já produziu três documentos e neste semestre está concluindo o quarto relatório.
“O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de MT, em dezembro de 2014, coletou cerca de 500 propostas para o Plano Estadual de Direitos Humanos da Terra, na VI Conferência Estadual. Dessas foram apontadas 16 prioridades em março de 2016, e até hoje o governo estadual não o colocou em vigor”, cobra Werner.
• Propor a instituição da Ouvidoria Estadual dos Direitos Humanos, com independência e autonomia política, com ouvidor ou ouvidora com mandato e eleição coordenada pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana – CDDPH, assegurando equipes de servidores qualificados, materiais e orçamento para seu pleno funcionamento;
• Implantar e/ou implementar um sistema de monitoramento de resíduos de agrotóxicos em água potável, no ar, na chuva, sangue e urina de trabalhadores e moradores de áreas próximas a monoculturas, no leite materno em bancos de leite humano e nos alimentos;
• Agilizar a regularização das terras/territórios das populações tradicionais de Estado de Mato Grosso, remanescentes de quilombos, terras indígenas, posseiras, ribeirinhas, retireiras e demais grupos sociais vulneráveis, garantindo o cadastramento, a demarcação e a titulação conforme a especificidade de cada população;
• Garantir a proteção do patrimônio natural das unidades de conservação, terras/territórios povos indígenas, quilombola, povos e comunidades tradicionais, implementando mecanismos de fiscalização e combate as queimadas e ao desmatamento no entorno das mesmas;
• Apoiar o desenvolvimento de políticas públicas destinadas a promover e garantir a educação em direitos humanos nos povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais assegurando condições de ensino e aprendizagem com qualidade social.
“Foi uma construção histórica, desde 1998. Encaminhamos o plano aprovado pela conferência ao governador Pedro Taques. A Procuradoria Geral do Estado o devolveu para que o Conselho indicasse recursos, responsáveis e fizesse o planejamento completo. Analisamos que isso não tem cabimento. E o devolvemos, como foi decidido pela conferência. Até agora o plano foi de gabinete em gabinete, sem que o Estado o assumisse sua parte. Avaliamos que os direitos humanos devem estar no planejamento estratégico do Estado”, cobra Witter.
Ao mesmo tempo, com o volume de casos de violações de direitos humanos no estado, em especial com agricultores familiares e povos e comunidades tradicionais, se observa que a gestão pública tem um longo caminho a percorrer para atingir a eficiência para ter êxito no eixo “I” da estratégia Produzir, Conservar e Incluir (PCI), compromisso que o governador Pedro Taques apresentou durante a Conferência das Partes das Nações Unidas para a Mudança do Clima (COP-21), realizada em Paris, em 2015. Um dos pontos neste item, que se refere à inclusão socioeconômica da agricultura familiar e das populações tradicionais, é a meta de realizar a regularização fundiária de 70% dos lotes da agricultura familiar até 2030.
O perfil do trabalho escravo ou análogo ao escravo foi mudando ao longo do tempo, em Mato Grosso, como esclarece Werner, do Centro Burnier. “Dos anos 70 aos 90, estava relacionado ao contexto das “picadas” que eram abertas por grileiros, que hoje são grandes proprietários.
Depois, houve um boom migratório de pessoas do norte e nordeste para o trabalho de corte de cana-de-açúcar. Chegou a acontecer o resgate de 1001 trabalhadores, na Usina Gameleira, no Araguaia e outros casos reincidentes, como em Poconé, nos anos 2000, na usina Alcopan, que fechou”, conta. A terceira fase, agora, ocorre nas áreas tecnificadas. “Em plantações de algodão e soja, e em derrubadas de matas para hidrelétricas, entre outras”, afirma. O município de Santa Terezinha chegou a ser considerado a capital do trabalho escravo no Brasil.
Os efeitos cumulativos devem ser dimensionados, de acordo com Werner. “Atualmente, nós do Centro Burnier e a CPT com apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT) desenvolvemos um trabalho na Comunidade Chumbo, em Poconé, que acompanho desde os anos 80. Mesmo após a usina ter fechado, os problemas continuam. O comércio local também fechou e mais de 50% dos trabalhadores estão desempregados, cerca de 90 famílias. O resultado foi a desestruturação dessas comunidades”, explica. As organizações não governamentais estão promovendo cursos de qualificação profissional para estas pessoas.
A Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae-MT), que está vinculada à Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos SEJUDH – MT, enfrenta um processo de burocratização, que dificulta seu funcionamento, de acordo com o coordenador de Incidência Socioambiental do Centro Burnier.
Foi a primeira a ser criada no Brasil e tem uma composição mista (sociedade civil, governo do Estado, órgãos governamentais federais). Para a operacionalização de suas ações, entretanto, foi instituído um fundo proveniente de recursos oriundos de condenações sentenciadas pela Justiça, por meio de Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), que passam pela Secretaria da Fazenda do Estado.
“Esses recursos não foram disponibilizados até agora pelo governo à comissão. Fomos informados em junho deste ano, pelo secretário de Estado de Justiça e de Direitos Humanos, coronel Airton Benedito Siqueira Júnior, que é hoje, da ordem de R$ 1,2 milhão”, afirma Werner.
Segundo ele, a sociedade civil e os órgãos governamentais federais, que integram a Comissão têm reivindicado desde o início, que o Governo do Estado libere os recursos. Entre os anos de 2013 e 2014, chegaram a se retirar da Coetrae-MT, retornando em 2015. “Há uma fragilidade no controle, porque não há uma conta específica do Fundo e não temos (sociedade civil da comissão) acesso direto a estas informações. Os valores seguem para a Fazenda estadual”.
Werner explica que o Plano Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo chegou a ser elaborado, com apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Financiou a contratação de uma consultora. Agora precisamos publicá-lo, o que deveria ter acontecido em janeiro de 2017”.
Teobaldo Witter, atual presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), em Mato Grosso, destaca que o fundo é essencial, porque é destinado a ações integradas em benefício das vítimas de trabalho escravo. “Ficamos sem resposta do governo sobre a liberação desses recursos. Os direitos humanos estão sendo tratados com desdém e desprezo, e as pessoas que poderiam ter uma vida um pouco melhor, ficam sem assistência”, desabafa.
Witter alerta que, historicamente, desde os anos de 1970, Mato Grosso apresenta um recorte acentuado de casos de conflitos no campo. “Este cenário está relacionado, especialmente, à lentidão da regularização de terras da União e de Terras Indígenas, ao avanço do agronegócio e à ação de jagunços contratados. A questão de fundo é a necessidade de reforma agrária justa”, analisa.
O presidente do CDDPH também se recorda que já na década de 1960, na região de Aripuanã, centenas de indígenas foram mortos, ao serem envenenados, no caso conhecido como massacre do paralelo 11. Mais uma dizimação que não foi solucionada. “A pistolagem, grilagem e bandidagem no campo continua agindo até hoje, na certeza de sua a impunidade” avalia.
Werner, do Centro Burnier Fé e Justiça, faz uma retrospectiva ao citar, que os primeiros registros no estado são na região do Araguaia, já mencionados pelo bispo Dom Pedro Casadáliga. Os relatos começam a ser sistematizado desde esta época, pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e pela CPT. “Na década de 80, um caso que se destacou foi em Mirassolzinho. Até hoje não se sabe quantas pessoas foram mortas. Os jagunços jogaram os corpos no rio”, diz.
Para Cabral, da CPT – MT, houve a institucionalização da violência no estado. “Em muitos casos, há policiais envolvidos, como pistoleiros ou milícias armadas e, inclusive, grileiros junto com deputados. E a especulação fundiária é grande, títulos sobre títulos”, afirma. A audácia dos criminosos chega ao extremo, com a destruição de cartórios.
Hoje as mais complexas demandas de conflitos que chegam ao CDDPH, de acordo com Witter, ocorrem em projetos de com posseiros e assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
“No Lote 10, em Nova Guarita, na Gleba Inhandu e na União Recanto Cinco Estrelas, na região Norte do estado, posseiros e assentados sofrem pressões de todos os tipos, com intimidações por meio de tiros nas casas, perseguição e ameaças de morte, incêndios em imóveis, corte de cercas, destruição de roças, entre outras. Essa região vive em clima de “chacina anunciada”. Isso pode acontecer se não forem tomadas providências”, explica. Ao mesmo tempo, a morosidade na apuração dos crimes pela política e o julgamento nas esferas da Justiça (estadual e federal) se tornaram crônicas, em sua avaliação.
“Já os casos de violência, que mais são registrados, no contexto de comunidades tradicionais pantaneiras, para além do racismo e discriminação, são as disputas pelos territórios (compreendendo o território para além da terra), com a utilização de armas de fogo, muitas vezes utilizadas para persuadir, intimidar, e até mesmo matar. Infelizmente não temos dados pontuais, tendo em vista que muitas comunidades também entram na estatística de agricultores familiares ou até mesmo com múltiplas identidades”, esclarece Claudia Pinho, da Articulação social da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneiras, que atua em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul).
A história de persistência quanto à apuração do assassinato do líder camponês Henrique Trindade, em Capão Verde, a 60 km de Cuiabá, no Alto Paraguai, se tornou um caso emblemático ao ganhar projeção internacional, porque chegou ao âmbito da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
“O agricultor foi morto em 4 de setembro de 1982. Atiraram nele, dentro de casa, quando estava na presença de toda família, com crianças e esposa grávida. Ele fugiu para o mato. No dia seguinte, seu corpo foi localizado crivado de balas”, conta Witter. Conforme denúncia do Ministério Público Estadual (MPE), uma patrulha chefiada pelo delegado de Diamantino, junto com um policial, e três jagunços contratados por um fazendeiro teriam sido responsáveis pelo crime.
Os anos foram passando e nenhum encaminhamento ocorreu para a solução do caso. O judiciário de Mato Grosso, simplesmente, protelou a prática da justiça, até arquivar o processo, 24 anos depois. Em homenagem ao agricultor, foi criado o Centro Henrique Trindade, e seu assassinato foi levado para a instância da OEA, em 1998. Mesmo assim, nada foi feito aqui no Brasil. O processo chegou a ser arquivado. Mas houve uma reviravolta. Um novo documento com denúncias foi aceito por unanimidade na instância internacional, naquele ano, em 2007.
“A OEA acionou o governo brasileiro. Houve a definição de uma indenização de US$ 15 mil para cada integrante da família de Trindade, que deixou uma mulher e cinco filhos, como também de o Estado ter uma ação de incentivo à educação no campo e de educar melhor seus policiais nas ações, além de um pedido público de desculpas”, conta Witter.
O governo brasileiro passou a responsabilidade ao estado de Mato Grosso e mais um período se passou, até que entre 2009 e 2010, deu início ao que ficou acordado. “Foi construída uma escola em Capão Verde e um curso de agronomia começará a ser ministrado pelo Instituto Federal de Diamantino. Também foi criada uma ouvidoria da polícia, mas ainda não foi efetuada a indenização”, diz o presidente do CDDPH.
Apesar de ainda estar longe de uma solução, Witter analisa que a experiência de luta no caso de Henrique Trindade abriu um precedente importante para novas posturas frente aos desafios na área de direitos humanos.
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As diferentes facetas do retrato da violência no campo em Mato Grosso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU