19 Março 2018
O assassinato da vereadora Marielle Franco não foi um caso isolado. “Defender direitos humanos no Brasil é uma atividade de risco”, diz a coordenadora de pesquisas da Anistia Internacional Renata Neder.
A entrevista é de Roberta Jansen, publicada por O Estado de S. Paulo, 18-03-2018.
Ela aponta os riscos desse tipo de crime à democracia e a importância de descobrir não só os executores, mas os mandantes para desmontar o esquema de violência contra defensores dos direitos humanos.
O Brasil é um dos recordistas mundiais em assassinatos de ativistas de direitos humanos. Neste contexto, a execução de Marielle Franco não é exatamente uma exceção. Qual a situação desses crimes no país e por que eles ainda ocorrem?
O Brasil é um país perigoso para defensores de direitos humanos. Defender direitos humanos no Brasil é uma atividade de risco. Sobre o caso da Marielle em particular, há algumas coisas a serem ditas. Antes de ser vereadora, ela era uma defensora de direitos humanos. Construiu sua trajetória na defesa das mulheres negras, dos direitos dos moradores de favela à segurança pública. Tanto na Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa quanto em seu trabalho pessoal, ela documentava e denunciava vários tipos de violação aos direitos humanos e também a violência policial. Ela tinha uma longa trajetória como defensora dos direitos humanos e colocou o seu mandato de vereadora a serviço da defesa dos direitos humanos. Não por acaso foi nomeada relatora da comissão da Câmara que monitora a intervenção federal.
Existe um padrão para os assassinatos de defensores de direitos humanos no Brasil?
No Brasil, a maioria dos defensores é morta em conflitos por terra. E a gente identifica alguns padrões que se repetem. Em geral, os assassinatos são precedidos por ameaças. Em geral também essas ameaças são denunciadas às autoridades que não as levam a sério, não investigam a denúncia, não atuam. E aí a ameaça se concretiza. Por isso chamamos de “ataques letais, mas evitáveis”. Como o caso Chico Mendes (líder ambientalista morto no Acre em 1989). São padrões que se repetem no campo e também na cidade.
O caso da Marielle não segue muito esse padrão...
Sim, no caso da Marielle, o relato da família, dos assessores e dos amigos é que ela não tinha recebido nenhuma ameaça.
Os crimes são investigados?
Esse é um outro problema do Brasil, onde, em geral, os homicídios não são investigados. Mesmo quando o caso tem muita repercussão leva anos para ser julgado. E no caso de haver uma prisão, em geral é dos executores, de quem aperta o gatilho, mas não do mandante. É muito raro que os mandantes sejam identificados e responsabilizados, o que, na prática, significa que o esquema de violência contra determinados grupos não é desmontado.
A execução de uma vereadora em plena região central do rio foi apontada por muitos especialistas como um atentado à democracia. A senhora concorda?
Acho que são vários atentados a democracia. Quando um defensor de direitos humanos é assassinado, o crime é também um ataque ao Estado de Direito. É como se estivessem dizendo que não aceitam a resolução de conflitos de forma legal, não aceitam as regras do jogo democrático, rompem com o pacto democrático. No caso dela, que ocupava um cargo público, era uma vereadora, é um desafio também às instituições. O assassinato de uma vereadora é algo muito grave, não pode ser banalizado. Se o Estado não der uma resposta à altura, abre-se uma porta muito perigosa para um aumento generalizado da violência. Porque se nem a morte de uma vereadora é elucidada, imagina o que pode acontecer com grupos menos visíveis. Não se trata apenas de um questão de justiça com Marielle.
Por que a questão dos direitos humanos ainda é tão polêmica no país? A morte de Marielle suscitou vários comentários raivosos nas redes sociais acusando-a de ser “defensora de bandidos”. Por que uma noção tão básica como essa ainda é tão mal interpretada?
Não acho que seja polêmico. Acho que há um mau entendimento. As pessoas precisam sair das polarizações, dos extremismos, das respostas fáceis e se abrirem para o diálogo qualificado. Em geral, as pessoas que dizem essas coisas não sabem o que são os direitos humanos. E essa incompreensão leva ao estigma de que defender direitos humanos é defender direito de bandidos e à criminalização dos defensores. Os direitos à moradia, à educação e à alimentação são direitos humanos. Precisamos romper esse ciclo com informação qualificada. Uma outra questão mais delicada é que o País é muito atingido pela violência; são mais de 60 mil homicídios por ano. É natural que o cidadão exija políticas segurança pública. O problema é que a tendência é a de apresentarem soluções rápidas e fáceis que não são necessariamente as mais efetivas.
Como assim?
Por exemplo, foram 61 mil homicídios em 2016 e a resposta de muitos parlamentares é aumentar a pena para quem comete homicídio. Só que o impacto disso sobre a segurança é nenhum, porque, no Brasil, somente 5% a 8% dos crimes são investigados. Mais de 90% dos crimes não são investigados no País, então ninguém vai ser preso nunca, não faz diferença. O que tem impacto é investigação e também políticas de prevenção focalizadas nos grupos mais expostos à violência. Estatisticamente, a chance de uma mulher branca, de classe média, do Sudeste ser assassinada é muito menor do que a de um jovem negro da periferia de Fortaleza. Mas essas coisas não têm muita visibilidade. As ações mais visíveis são escolhidas.
Como uma intervenção federal na segurança do Rio?
O modelo que sempre foi usado é o da ostensividade, não da investigação. O foco é no confronto, na polícia que sobe na favela para combater o varejo do tráfico de drogas ilícitas e trocar tiros com grupos criminosos. E esse modelo não reduziu o tráfico, não diminuiu a violência, não tornou a cidade mais segura. Foi esse modelo que fez a gente chegar aonde chegou. E o modelo proposto pela intervenção não é diferente, é o da militarização, do confronto, da lógica da guerra, do uso das forças armadas para o policiamento.
O Brasil ainda tem dificuldade de aceitar e respeitar as minorias?
Historicamente e estruturalmente o Brasil é marcado pelo machismo, pelo racismo, pela LGBTfobia, por todas essas discriminações. Nesse sentido, de fato, Marielle era uma pessoa muito simbólica. Mas disso também resultou o tamanho da mobilização decorrente de sua morte, em várias cidades, em outros países.
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‘Defender direitos humanos é atividade de risco no Brasil’ - Instituto Humanitas Unisinos - IHU